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Torquato Neto: perigoso, divino, maravilhoso e paradoxal

Torquato Neto
Torquato
Poeta, compositor, cronista, ator, cineasta, Torquato Neto se matou um dia após completar 28 anos (Foto: Instituto Moreira Salles/Divulgação)
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Torquato Neto escreveu: “Sempre andei por um caminho/ Que não conhecia bem”. Ao conversar com o publicitário George Mendes, seu primo, responsável por seu acervo, e percorrer parte de sua trajetória, parece mesmo que esses versos contam sua história marcada por momentos indecifráveis e, ao mesmo tempo, vanguardistas. Por outro lado, o artista multifacetado também declarou: “Escute antes que todos se calem/ Não preste a mínima atenção ao que eu diga/ Mas por favor, não me esqueça”. E ele, realmente, não foi esquecido. Um artista que morreu jovem, aos 28 anos, possui uma obra que, a cada dia, aumenta mais e mais. Ao ter acesso ao material de Torquato, George conta que ele tinha 30 de suas músicas gravadas. Hoje, chega a cerca de 100. “Elas foram encontrando o seu próprio caminho.”

Em “Let’s play that”, a letra de Torquato diz: “Quando eu nasci/ Um anjo louco muito louco/ Veio ler a minha mão”. George conta que o artista “teve problemas para nascer, dificuldade para viver e acabou fazendo o que fez”. Seu parto, em 9 de novembro de 1944, foi feito com fórceps. Já sua morte aconteceu exatamente um dia depois de seu aniversário, em 10 de novembro de 1972. Depois de chegar da sua festa, ele se trancou no banheiro e ligou o gás. O que comprovou que aquilo não foi uma armadilha dos militares (os artistas ainda viviam sob a repressão da ditadura) foi a carta deixada por ele, que termina dizendo: “Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar”. Thiago, no caso, é o seu filho, que na época tinha 3 anos, com Ana Maria Silva de Araújo Duarte, com quem, inclusive, casou cedo.

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A marca definitiva de Torquato

Parece que tudo em sua vida foi precoce e paradoxal. Dez de seus 28 anos foram dedicados à arte. E, como disse George, “Torquato construiu uma obra instigante e inovadora para ser eterna, o que é um paradoxo pelo tempo em que viveu. Ele não queria ser esquecido, o que ele quis foi deixar uma marca definitiva”. De acordo com o primo, é possível traçar três espaços que influenciaram sua produção: a parte em que viveu entre Teresina (PI) e Salvador (BA); depois já no Rio de Janeiro – com períodos exilado – época da fundação da Tropicália; e, logo após, o breve período pós-tropicalista.

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Torquato morreu sem deixar nada publicado. Suas obras literárias puderam ser conhecidas a partir de organizações feitas por amigos, jornalistas e críticos que tiveram acesso ao acervo. Duas delas foram lançadas em 2012: os livros “O fato e a coisa” e “Juvenílias”. O primeiro reúne poemas escritos entre 1962 e 1964. Já o segundo tem suas primeiras poesias. George não soube dizer o que o impulsionou a se dedicar à arte desde cedo, mas lembra da admiração que Heli da Rocha Nunes e Maria Salomé da Cunha Araújo depositavam no filho. Essa “elevação”, como George chama, também foi motivo de muitos de seus temas. Em certos momentos, existia uma insatisfação de Torquato em relação a isso. Mas, ainda assim, ele era o cara que “andava de mãos dadas com a mãe pelas ruas de Teresina”.

No início dos anos 60, Torquato decidiu mudar para o Rio de Janeiro para cursar jornalismo. Apesar de não ter se formado, ele chegou a trabalhar em uma série de jornais na capital, como jornalista de cultura, mas, principalmente, com suas colunas. Como já conhecia os chamados “baianos”, principalmente Gilberto Gil, por ter estudado com ele ainda em Salvador, mas também Caetano Veloso, ele foi fundamental para dar a força necessária para o movimento da Tropicália. Muitas das ideias-chave do movimento partiram dele. No disco-manifesto “Tropicália ou panis et circencis”, duas músicas foram compostas por ele: “Mamãe, coragem” e “Geleia geral” (essa, inclusive, uma das fundadoras do movimento e que, posteriormente, veio a ser o nome de sua coluna no jornal “Última Hora”).

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Rebeldia, Brasil, morte e amor

Por seu enfrentamento e aparição, até pelo experimentalismo quase sem limites, George lembra que a versão mais pública de Torquato é a rebelde. A explicação para isso talvez venha do fato da recorrência de ditaduras em sua história. Ele nasceu já no final da ditadura de Getúlio Vargas e sua áurea juventude encontrou o mesmo cenário. “Marginália II”, gravada por Gilberto Gil, expressa esse sentimento do viver brasileiro: “Aqui é o fim do mundo/ Minha terra tem palmeiras/ Onde sopra o vento forte/ Da fome, do medo e muito/ Principalmente da morte”.

Apesar de vida e morte serem temas recorrentes de sua obra, como se não houvesse uma linha entre os extremos, o amor também está presente entre as composições, com tons principalmente melancólicos. Em “Pra dizer adeus”, por exemplo, clássico da MPB, o poeta se desnuda em declaração: “Como te contar/ Que o amor foi tanto/ E no entanto eu queria dizer/ Vem/ Eu só sei dizer/ Vem/ Nem que seja só/ Pra dizer adeus”.

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Mas é em sua carta para Ana Maria, em formato de pedido de casamento, que ele se entrega romântico, distanciando o que o artista se mostrava do que ele realmente é: “Ademais, meu amor é muito grande e não tem complicações, sou apenas egoísta, e dói-me pensar em repartir-vos até com vossa família e vossos amigos. Acho que vou fazer um samba explicando isso. Mais tarde. Agora quero dizer outra vez (nunca é muito) que a senhora é linda e que eu sou feliz como quê por vossa causa e culpa”. “Torquato, realmente, vestiu uma capa de vampiro. Em família, o estereótipo passava longe,” diz George.

Torquato é um vampiro, o escorpião, que George fala que “é um conflito, é a tensão, e não fugia de confusão, mas sempre com sorriso nos dentes”. Mesmo tendo sido a espinha dorsal da Tropicália, não tardou para não gostar dos rumos que ela foi levando. Mais uma vez: paradoxal. Inquieto. Por esse fator, também, ele experimentou de tudo um pouco: a poesia, o cinema, o jornalismo, um entre o outro, “subjetivo em tudo”, pontua George.

Recado dado e seguido

Sobre o porquê de ainda se falar, ouvir e reinterpretar o poeta marginal, despertando curiosidade de maneira recorrente, o primo não sabe explicar. Ele mesmo, com o acervo, faz esse trabalho de entender sua própria história, que é entrelaçada à do primo-ídolo. “Passei minha vida juntando os caquinhos para entender melhor o que eu via e vivia. Estou aqui até hoje”, confessa George. Torquato mesmo tentava se procurar por sobre seus pensamentos. O recado foi dado. O motivo da invenção é o motivo do ser poeta. “Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. Nada no bolso e nas mãos. Sabendo: perigoso, divino, maravilhoso”, ele começa em “Pessoal intransferível”.

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