Na próxima terceira-feira, 13, Adhemar Oliveira planeja embarcar num ônibus em São Paulo rumo a Juiz de Fora. Chega na quarta. Chega para apagar as luzes que acendeu no dia 1º de setembro de 1999, com a exibição de “Mauá – O imperador e o rei”, do cineasta Sérgio Rezende, que reabriu o Palace após 15 anos de abandono. A frustração em ver os créditos finais do último cinema de rua de Juiz de Fora, porém, deu lugar ao regozijo de ver a cena que ajudou a construir. “A cidade mudou”, diz, para logo pontuar o imponderável: “Os cinemas de rua e o cinema de arte estão na contramão”.
Com mais de três décadas de atuação no cinema brasileiro, responsável pela programação de mais de cem salas país afora, Adhemar viu o silenciamento do cinema nacional nos anos 1980, seu renascimento na década seguinte, seu fortalecimento nos anos 2000 e as incertezas atuais. Sem abrir mão do espaço da arte, viveu a ampliação do número de salas, o boom dos complexos de shopping centers e o presente domínio da internet em detrimento dos lugares coletivos.
Sujeito e agente, Adhemar participou e interferiu, ajudando a repensar novas diretrizes para as salas cinematográficas do país, negociando com distribuidoras e auxiliando na escrita da história do mercado exibidor nacional. Peça fundamental para a recente cena cultural de Juiz de Fora, o homem por trás do Espaço Itaú de Cinema, incluindo a unidade da Rua Augusta, em São Paulo, e também por trás do Cinearte e do Cinespaço, despede-se do endereço de número 581 da Rua Halfeld com a certeza de que não restou vencido numa batalha na qual sempre permaneceu dominado.
“Vários festivais pediram, e estávamos abertos. Era parte da política nossa, apesar de todas as dificuldades”, recorda-se o homem que, criado nos parques de diversões do pai, nunca se pautou, exclusivamente, nas bilheterias. Em entrevista à Tribuna, por telefone, Adhemar reflete sobre a relevância dos cinemas de rua no país, sobre a mudança de costumes e mostra resignação ao encarar o interruptor. “Agora vamos pagar todos os débitos que existem e encerrar a empresa. Estou buscando os currículos dos colaboradores para a reinserção deles”, conta ele, somando cerca de 25 funcionários, incluindo os que trabalhavam na Fábrica de Doces Brasil, lanchonete responsável pelo café do cinema.
Tribuna – Pensou em algo especial para fechar as portas?
Adhemar Oliveira – É véspera de feriado. Estou pensando em pegar o ônibus e ficar aí ao longo do dia. Pelo menos para encerrar. Me pediram para exibir o documentário do Sepultura, que estreia na sexta seguinte, mas logo o Sepultura? (risos). Vai terminar com o Varilux. Ano passado Juiz de Fora foi a segunda cidade do país em número de espectadores, perdendo só para o Rio de Janeiro.
Como se comporta diante do fim do cinema?
– Foram mais de 15 anos à frente do cinema, sempre em atitudes de parceria, com a cidade, com os organismos locais, com a Prefeitura, com patrocinadores. Foi uma luta bastante grande para reabrir um cinema que estava fechado há mais de 15 anos e mantê-lo aberto. A cidade, ao mesmo tempo, foi vivendo uma mudança, aparecendo shoppings e outra postura urbana. Houve o leilão, e sempre soubemos que isso poderia ocorrer. Esse é o andamento comercial normal.
Considera natural esse ciclo?
– Não encaro como um empreendimento pessoal, nem só empresarial. Tenho vários empreendimentos, dentro e fora de shoppings. Em Juiz de Fora, já tive dois endereços. Hoje só tenho o Palace. Minha relação é com a cidade. Fui parar aí na discussão sobre a revitalização do Centro e acho que contribuímos para que aquela esquina tivesse um outro tipo de vida. A cidade pode não estar satisfeita com a programação que tem, com a quantidade de ofertas, mas mudou por ter mais salas de cinema, mais endereços.
Houve boa vontade política para que o cinema resistisse?
– Houve quando percebemos que ficamos 18 anos lá, o que é um bom tempo. Nesse tempo, o Palace supriu as necessidades. Se nesse tempo surgiram outros cinemas é um bom sinal, porque está encontrando plateias. No cinema de rua estou no ponto fraco dessa cadeia, porque qualquer atividade comercial no mesmo ponto bate o cinema, seja restaurante, seja loja. No shopping center o próprio cinema é subsidiado porque tem o papel de atrair pessoas para o centro comercial. No Palace, jogávamos com a questão de ser um atrativo para aquele lugar à noite, já que durante o dia já havia um movimento. Não me arrependo por esses 18 anos. Fui feliz. Passei por tudo, ganhei e perdi patrocínio. Mas brigar para continuar? Em quais condições? Não dá. É a cidade que precisa se posicionar e dizer para onde quer ir. Como agente econômico, sou apenas o condutor dos ideais da cidade.
Existia alguma possibilidade de negociação para a permanência do cinema?
– O nosso eixo é o trabalho cultural. A empresa Espaço de Cinema de Juiz de Fora foi criada aí e só existe aí e, como empreendimento comercial, não era vantajosa. Mantínhamos por uma questão de estratégia. Quem poderia movimentar era a sociedade. Se ela não se movimenta é porque acha que tem outras coisas a fazer. A própria forma como a cidade encara suas mudanças é um sintoma. Sempre achei que Juiz de Fora nunca tivesse shopping, porque é ímpar. Não há outra cidade no Brasil com esse modelo de Centro, com entrelaçamento de ruas e galerias criando uma pujança.
O Palace representava, também, um espaço de formação.
– Formação de plateia é um trabalho lento. Com a Prefeitura, nos últimos tempos, fizemos “Sessão cidadão”, “Clube do professor” e sessões infantis. Era um formato para tentar manter a sobrevivência do espaço enquanto criávamos público. Hoje o “Clube do professor” no Brasil inteiro tem 27 mil associados, numa atividade de formação de formadores de gente. Pensamos esse projeto para pagar o filme que exibimos, mas nunca fizemos isso, porque os distribuidores disputam entre si para passar para os professores. Então, custeamos a sala, funcionários, luz, limpeza. É um projeto que não é feito do dia para a noite. Isso é educação permanente. Apostamos nisso, mas, às vezes, fica economicamente inviável. É só murro em ponta de faca. Talvez a Prefeitura consiga colocar outros endereços trabalhando em programação de formação para suprir os desejos da cidade. Entra muita crença em nosso trabalho, tanto dos que realizam quanto dos que frequentam. É acreditar. Não é igreja, mas precisamos acreditar para fazer.
Encara o fim ao qual o Palace está sujeito como uma realidade para o futuro dos cinemas de rua no país?
– Tenho 30 anos de experiência com as salas de rua. Quando tem uma sala de rua, você é responsável pela segurança, pelo teto, pelo chão, pelo lixo, por tudo, o que provoca um custo alto. Ao mesmo tempo, ela tem as intempéries da liberdade, porque não está protegida por grades e está sujeita à percepção das pessoas em relação aos lugares. Nosso movimento aumenta ou diminui conforme essa percepção. Sempre me criei na rua e não olho para a rua com receio, mas como respiro. Já tive cinemas que precisaram batalhar muito para recuperar público por conta dessa liberdade da rua. Moramos num país com altos e baixos na segurança e no próprio urbanismo, e o cinema de rua reflete isso.
A internet, os serviços por streaming roubaram o público das salas?
– Não diria que um aplicativo ou outro roubou público. O que está mudando, e tenho buscado referências nos historiadores, é que antigamente você corria para o cinema para não perder o filme. Não havia o VHS, o DVD, nada. Depois vieram as mídias, e chegou um momento na internet em que temos a sensação de que se não ver o filme hoje, podemos ver amanhã. Isso desmobilizou o ímpeto da ida ao cinema. Existem vários caminhos para chegarmos a um filme, com a certeza de que conseguiremos assisti-lo. É preciso repensar as salas nessa nova ótica, de como atrair e como fazer. E não falo só no cinema de arte, mas no comercial também. Enquanto o filme comercial entra como um acontecimento em mil salas, retirando o que precisa em duas semanas, o filme de arte não vive isso. O Eric Hobsbawm (historiador britânico) aponta que a tecnologia deixou o ser humano mais ensimesmado, mais individualista. Ao mesmo tempo, essa tecnologia está liberando as pessoas para fazer um monte de coisas.
O próprio cinema brasileiro como linguagem parece enfrentar esse momento de indefinições.
– Estamos numa encruzilhada. As comédias parecem já se esgotar. O que vem por aí? Não sabemos. Mas percebo que todo o trabalho de séries está sugando boa parte das boas energias e dos bons pensadores, dos bons roteiristas, do bom cinema. E isso pode ser fatal. No Brasil, nosso universo é menor que o dos Estados Unidos, e já vemos vários talentos trabalhando no audiovisual que não vai para as salas de cinema. Vejo agora como um momento de mudanças muito grandes. É uma escuridão que abate o mundo.