Ícone do site Tribuna de Minas

Mulher, em iorubá, Obinrin

PUBLICIDADE

Qualquer pessoa, nesse lugar-comum que ocupamos pelo mundo, estampados em fotografias e telas a pintar, está em constante busca de si mesma. Quando morava em Juiz de Fora, há dez anos, era Lívia Lucas, agora retorna com o adjetivo Nêga, que esbanja fortaleza, religiosidade e pés nos chãos. Uma mulher que deixou Minas Gerais para viver e sobreviver o inesperado como imigrante, em terras bastante longes e culturalmente oblíquas.

Foi em sua passagem por Marrocos, onde trabalhou como musicista por três meses, junto a cantores latino-americanos, que começou seu processo de rupturas e recomeços. Ela trabalhava com Lazara Cachao, cubana, e Cristian Solíz, chileno, e em sua introspecção conectada com o mundo novo que vivenciava percebeu que Lívia não contemplava a força que estava dentro de si prestes a transparecer. Voltou para Barcelona, onde vive até hoje, e encontrou-se consigo mesma, transformando-se em Nêga Lucas e assumindo sua cor de fogo. “Eu podia ser nova, completamente nova, eu podia ser quem eu nem sabia que eu era, eu podia me descobrir através do outro, porque o outro era um papel em branco”.

PUBLICIDADE
Rupturas e recomeços: Nêga Lucas reflete sobre sua carreira no exterior, assume sua força e resgata suas raízes no novo trabalho audiovisual (Foto: Bárbara Landim)

Sua volta a Juiz de Fora, após três anos sem vir ao Brasil, é como um processo de reencontro e reconhecimento. O prefixo “re”, demonstra que Nêga afastou-se de tudo, permitiu se descobrir uma nova mulher e agora, voltando para o familiar, consegue perceber o movimento de mudança interno.

PUBLICIDADE

Musicista independente no Brasil e na Europa

O primeiro ponto de sua fala é o de desglamorizarão da Europa. Nêga luta por sua sobrevivência como imigrante, tentando viver de sua música, essencialmente brasileira. “A Europa explorou e roubou tudo de nós, povos latinos, africanos, e eu estou lá para pegar meu ouro de volta”, disse ela em entrevista à Tribuna.

PUBLICIDADE

Para explicar um pouco de sua experiência como musicista no Brasil e na Europa e sobre a resistência dos músicos independentes, Nêga Lucas utiliza uma analogia fazendo conexão entre territorialidade e identidade. Ela fala sobre os grandes latifúndios brasileiros arraigados em uma sociedade feudal, em que os territórios – que são em suma ocupados por uma multiplicidade humana – estão sob o controle de poucos, dos donos das terras. Utilizando suas palavras, tudo o que se produz no Brasil, para além do âmbito agrário, está nas mãos de grandes latifúndios, enquanto os artistas independentes buscam por pequenas terras para terem condições de plantar.

PUBLICIDADE

A cantora percebe que na Europa, lugar com menos abundância de terras amplas e recursos mais escassos, o artista independente consegue gerir o próprio espaço com pequenas terras mais bem distribuídas.”Temos menores produtores, pequenas empresas que conseguem gerir a própria carreira e levar adiante sem depender dessa luta por um espaço, dessa guerra incansável para conseguir mostrar o seu trabalho e mostrar que ele é bom”, explica ela. É como se houvesse menos latifúndios e maior número de pequenos produtores. Nêga ainda completa dizendo: “lá fora eu vivo da minha música, que sai de dentro de mim e o povo gosta, o povo contrata”.

A negritude e a religiosidade africana gritam em sua arte, indumentária e jeito de se expressar. A mulher negra artista resiste ao preconceito e surge com uma força interior capaz de enfrentar de cabeça erguida e virar o jogo da opressão. “Eu sinto uma segurança, um apoio entre as mulheres, eu sinto uma força vital para destruir preconceitos e barreiras e eu sinto que isso não tem freio mais não. É uma porta que abriu e que não se fecha, porque quando a gente entende com o corpo o que aconteceu com a gente e o que a gente pode, aí não há força que contenha”.

PUBLICIDADE

#ApareceuJosé

A cantora lança, neste domingo, um trabalho audiovisual que desenvolveu em sua passagem pelo Brasil, gravado em um terreiro de umbanda, no Bairro Floresta, em Juiz de Fora. Ela narra a história de um homem, José, que exala movimento, percussão e sincretismo religioso. O clipe foi pensado e roteirizado como se fosse um curta-metragem, a direção ficou por conta de Rafael Aguiar, da Picumã Filmes, com a ajuda de Nina Pinheiro, que fez a produção e direção de arte. O clipe está disponível no canal da Nêga Lucas no Youtube e também na página do Facebook da produtora Picumã Filmes.

“José” é uma produção musical em parceria com o músico italiano Alessio Bondì, nasceu solo no ano passado, dando vida a um personagem que muito emociona a cantora. “Foi uma canção que me trouxe de volta as minhas raízes tanto energeticamente quanto geneticamente”. Até que este ano, em Barcelona, antes de sua viagem, Nêga começou a ouvir tambores incessantes em sua cabeça e começou a desenhar as cores dos batuques imaginários que deram vida a José. A decisão de ser gravado no Brasil, embora sua banda esteja na Espanha, foi de poder ver seu irmão, Luiz Felipe Lucas – artista e ator – encarnar o personagem.

PUBLICIDADE

Poesia naïf

Naïf é criação ingênua, oriunda da simplicidade e espontaneidade não acadêmica e cartesiana. Uma palavra para descrever a arte rudimentar. Esse é o título da última obra de Nêga Lucas, composta por um álbum de composições autorais e um livro de poesias muito pessoais que escrevia para si. “O naïf é o que surge de mim, é o que sai do meu coração e do meu corpo. E é tão belo quanto qualquer manifestação artística”, explica Nêga. O disco também teve um processo de criação natural e intuitivo, então lhe vestiu bem o nome. Uma das faixas é uma declaração de amor, pura, para seus parceiros na música, seus Ogans, como ela diz. É uma poesia falada, a capella, toda recitada em Iorubá.

Sair da versão mobile