“Fica com Deus.” Digo isso e me despeço de Padre Gaio. Digo, como faço com todos, em cada adeus meu. Como a dizer fique com a paz, com o que há de melhor, com as suas boas certezas… Haveria estranheza num gesto pretensamente religioso, não fosse meu aceno, primordialmente humano. Estranho seria uma fé alheia à humanidade. Assim, a aliança que Antônio Pereira Gaio, 83 anos, carrega no dedo anelar da mão esquerda não lhe distancia dos céus, mas o aproxima da terra. “Faço questão de usar minha aliança de bodas de ouro. E uso, também, no pescoço, a aliança da minha querida Miryam, como sinal de presença e fidelidade a ela”, explica-me o vigário paroquial da Catedral Metropolitana, com os olhos rasos d’água.
“Fui casado durante 52 anos com minha Miryam. Tivemos cinco filhos. O primeiro já foi para o céu, junto dela, e os outros estão aí, muito bem estabelecidos. Aposentei-me muito cedo, como professor do curso de letras da universidade, aos 50. Fiquei meio perdido e resolvi procurar o bispo para me oferecer a trabalhar na igreja”, conta. “Fui acolhido como diácono, que é o primeiro grau do sacramento e tem como função principal auxiliar o sacerdote, tendo a faculdade de abençoar casamentos e batizar, pregando sempre a palavra de Deus. Quando fiquei viúvo, ofereci-me como padre”, completa. Foi grande a insistência, até que Antônio voltou-se ao bispo indagando: “Não preciso depender da igreja, tenho uma boa aposentadoria, minha casa, meu carro, meu plano de saúde, e pode ficar tranquilo, porque não serei oneroso de modo algum. Como diácono, seu bispo, faço a celebração da palavra e porque não posso consagrar?”. Como resposta, Antônio recebeu uma caixa vermelha. Estavam ali os objetos do falecido irmão, um padre, que ele usaria em sua primeira missa como vigário, em 2010, aos 78 anos.
Papai e mamãe
O berço religioso, segundo ele, é “da criancice”. “Na adolescência, descambei um pouquinho, em vista da curiosidade da juventude, mas quando me dei conta, passei a viver plenamente o que meus pais me ensinaram, tanto que ofereci minha vida à igreja”, diz o sacerdote, um dos sete filhos de um casal humilde de São Mateus. “Sou muito aquinhoado por Deus, que me deu tempo para estudar. Fiz letras e também direito, além de mestrado em língua portuguesa. Mas não abro mão de dizer que meus melhores e maiores professores foram meu pai e minha mãe. Esses dois sustentaram meu crescimento, me deram formação e o sentido da vida, me colocando no mundo para ir à frente. Meu pai era um italiano analfabeto que trabalhava no bonde, e minha mãe, uma mulher semi-alfabetizada. Foram pais de verdade”, emociona-se o senhor de fala mansa, recordando-se da mulher que, “filha de capataz de fazenda, educada com a fartura do acesso aos alimentos”, sofria, depois, com a escassez de uma casa onde sobravam, apenas, as palavras. “Meu papai, muito trabalhador, sempre ganhou muito pouco. Lembro-me, tristemente, que nunca pude ter um uniforme na escola”, diz ele, que para estudar, viu o patriarca sugerir à Companhia Mineira de Eletricidade que fundasse uma bolsa de estudos, o que financiou a permanência de Antônio no seminário, por seis anos, até o alistamento militar.
No mundo, de estola
Dentro de casa, dois padres e uma freira como irmãos. Do lado de fora, um rebanho a conquistar. Antônio, graduou-se e foi dar aulas em escolas reconhecidas na cidade, como a Sebastião Patrus de Sousa e o Colégio Academia, além de ministrar disciplinas de língua latina e portuguesa na UFJF. “Passaram por mim muitos homens e mulheres que estão na sociedade prestando excelentes serviços. Tenho alegria em ver que eu, por pequeno que seja, contribuí com a formação deles. Ajudei a educar uma geração”, comenta, citando ex-prefeitos, ex-reitores, diretores de hospitais e outras figuras respeitadas. Hoje, Antônio educa de outra forma, usando a estola. “Tenho a plena consciência de como faço o bem pelo fato de já ter sido casado. Tanto é que, sempre que posso, falo das dificuldades do casamento, porque já vivi. Tenho que ser útil nas experiências que tive.”
‘Minha Miryam’
Quando já não era preciso alimentar os filhos Marcelo Antônio, João Batista, André, Fernando e Antônio Júnior, quando a casa restava vazia, Antônio buscou novo sentido. “Minha esposa adoeceu, precisou fazer uma cirurgia muito séria e não sobreviveu. Continuei como diácono até que resolvi perguntar aos meus filhos o que eles queriam de mim. Cada um deu uma opinião: ‘Se quiser casar, case’, ‘Se quiser ficar solteiro, fique’, e, ainda, ‘Se quiser uma morena, arrumo para você’. No fundo, queria ser padre”, lembra o pai de “filhos preparados para a vida”, que lhe deram quatro netos. Morando em seu apartamento no Bom Pastor, Padre Gaio conta ter encontrado uma forma de servir à igreja e à religiosidade com toda a sua humanidade. No altar, um homem em sua expressão de fé. “Celebro cada missa com uma alegria contagiante, como se fosse a primeira. Esforço-me dentro da minha pequenez, das minhas falhas, das minhas ineficácias. Vontade de anunciar Jesus nunca me falta”, sorri, como a dizer: “Fico com Deus. Sempre!”.