Antes mesmo de nascer, o abandono. Antes do primeiro choro, antes de abrir os olhos para o mundo, a rejeição de sua terra natal. Se pudesse a história voltar para o passado, eu iria dizer para o meu pai: ‘me deixa alguma coisa, me deixa fotos, alguma coisa que me conte quem é você’, emociona-se Eduarda Ditta Crispim Leite, aos prantos, em certa passagem do filme Repare bem. O documentário, assinado pela atriz e cineasta Maria de Medeiros (Pulp fiction e O contador de histórias), ganha exibição na cidade, nesta sexta, às 18h30, no Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm).
Filha de Denise Crispim e do militante da luta armada Eduardo Leite, o Bacuri, Eduarda é fruto da ditadura militar. Seu pai foi morto aos 25 anos, depois de 109 dias de tortura, em 1970. Filha de pais militantes, Denise engravidou justamente quando sua família tornou-se alvo dos militares. Com o irmão assassinado, a mãe presa e o namorado sendo torturado, e carregando Eduarda no ventre, a mulher se asilou no Chile, mas o governo, igualmente ditatorial de Augusto Pinochet, a fez novamente transferir-se, desembarcando na Itália. O momento deixou marcas no país e outras, ainda mais profundas, em mãe e filha.
Interessava-me saber como minha geração, de filhos de perseguidos políticos, veem o processo político hoje, comenta Ana Petta, idealizadora do filme e produtora geral, cujo primeiro contato com a história se deu com Eduarda. No decorrer da pesquisa, Ana se deparou não apenas com duas gerações, mas três. A mãe de Denise, a operária Encarnación, foi uma presa política casada com o deputado comunista José Maria Crispim, que viveu exilado. O casal ainda teve Joelson Crispim, também morto por sua militância, em 1970. O documentário conta a saga de uma família com três gerações vítimas de perseguição, completa Ana, que vem à Juiz de Fora junto de Denise, para a exibição.
Foi um processo muito doloroso por resgatar uma trajetória de tortura e morte, mas também foi importante, principalmente, porque possibilitou a Eduarda construir sua própria identidade, diz a produtora. Hoje Eduarda, que nunca mais voltou ao Brasil, vive na Holanda e é mãe de duas crianças. Anistiada pelo governo brasileiro, Denise regressou para sua terra no mesmo momento em que o filme tomava forma. O ‘Repare bem’ acabou sendo um processo terapêutico de reelaboração da história. A busca dessas mulheres ainda é por justiça, por verdade. Essa dor nunca vai acabar, reflete Ana.
Apesar de ser impossível reconstruir o caminho e fazer tudo diferente, para Denise e Eduarda um reconhecimento público das marcas que o Estado lhes deixou sempre se fez importante. Com a instituição da Comissão Nacional da Verdade, em novembro de 2011, a reparação aconteceu. A importância disso é pelo lado simbólico muito grande, mostrando que aquela luta pela democracia fazia sentido. A Eduarda diz que, com o pedido de perdão do governo brasileiro, nasceu de novo, saiu da clandestinidade, já que consegue inserir o nome do pai na certidão de nascimento, afirma Ana Petta.
Utilizando-se da poesia que há no ato de resgatar a memória, mas também lançando mão de descrições dos brutais procedimentos de tortura, o documentário revela uma mulher, já madura, com absoluta clareza do papel de sua geração, e outra, mais nova, em busca de sua identidade, afinal, suas raízes lhe foram, de forma bárbara, arrancadas. Essa dor que nunca cessa vem por tudo o que aconteceu, mas também pelo que ficou engasgado por muitos e muitos anos. A revisão histórica faz com que novas gerações compreendam o passado e não deixe que isso aconteça novamente, avalia Ana. Dessa forma, o título, Repare bem, torna-se não apenas um clamor por retratação, mas um desejo de que o país se atente para as lágrimas que fez e ainda faz cair.
REPARE BEM
Documentário exibido hoje, às 18h30
Museu de Arte Murilo Mendes
(Rua Benjamin Constant 790)