Alexandre Camilo não tem o aplicativo iFood, nem quer ter. Ator, contador de histórias e palestrante com mestrado em comunicação, ele diz querer continuar indo às feiras, aos supermercados, ouvindo gente de todos os tipos e jeitos. Também não tem Netflix, nem quer ter. “Sei que lá tem boas histórias, são bons roteiristas, gente que sabe encadear”, reconhece o homem de 52 anos, afirmando preferir o contato físico, o convívio. “Desde os 23 anos, conto histórias. Meu irmão gosta muito. Ele dizia que eu não precisava de tantos cenários. Brincava que eu deveria ser carnavalesco, porque para onde eu vou levo um carro alegórico e contando histórias sou maravilhoso, porque todo mundo vê tudo. Foi então que comecei a estudar a oralidade, a narração, os contadores que não sabem ler nem escrever e encantam todo mundo. Hoje meu objeto de pesquisa é o conto de tradição oral e o conto de sabedoria. Isso me interessa muito”, pontua ele, nascido em Santos e radicado na capital de São Paulo, em passagem, na última semana por Juiz de Fora, onde ministrou o curso de storytelling, ensinando técnicas de contação de história.
“Na verdade, o homem desde que é homem precisa das histórias. Na época das cavernas, aqueles desenhos representam histórias, fatos que aconteceram. As pessoas saíam para caçar, um grupo ficava, e se alguém morria, contavam aquela história. O poema mais antigo que existe, a ‘Epopeia de Gilgamesh’, é um texto cheio de histórias. As fábulas orientais, as ‘Fábulas de Esopo’, da Grécia, contam sobre comportamentos. O homem evoluiu muito na tecnologia, mas, enquanto sentimento, ele é o mesmo. A diferença é que a história conecta de outra forma. E todo grande líder é um grande contador de histórias. Jesus, o que ele fazia? Ele sempre lançava mão de uma parábola. O homem tem essa necessidade de ouvir e de contar histórias”, defende Alexandre. “Quando daqui a muitos anos você partir, o que deixar, vão vender. O que vão ficar são as suas histórias. Por isso você é capaz de se lembrar de uma história do seu avô, do seu pai.”
Segundo o consultor de empresas, um produto deve vender, sobretudo, uma história. “Não compro um perfume, apenas, mas a história do perfume. A publicidade se vale disso, porque as melhores propagandas contam histórias”, assegura ele, certo de que nunca deixamos de contar histórias. “As técnicas ajudam. E isso não quer dizer que vão transformar você em um excelente contador de histórias. A gente não aguenta mais ouvir esses políticos falando, porque eles não falam com o coração. A forma como a pessoa fala não gera imagens porque nem ela acredita no que está dizendo. Quando conto uma história e acredito, preparo meus elementos internos. Uma pessoa que não sabe ler, nem escrever, e nunca fez teatro, pode contar histórias encantando”, pontua, sugerindo que ouvir deve ser um exercício contínuo.
Porque perdemos a criatividade?
A pessoa que reclama o dia inteiro, de acordo com Alexandre, produz palavras e imagens de reclamação o dia inteiro. “O que ela constrói no imaginário dela? O que ela atrai para ela?”, indaga, exemplificando com a ideia de que uma casa é diferente de uma casa velha, que é diferente de uma casa velha abandonada, que é muito diferente de uma casa velha conservadíssima. Todas essas casas produzem imagens muito distintas. “As histórias que você escolhe contar dizem muito de você. Quando você conta uma história, a primeira pessoa que ouve é você mesmo”, afirma o especialista, valorizando a necessidade e a importância das invenções. “Toda criança é criativa. Tanto que você nunca vai ouvir uma criança dizendo: ‘Deu branco!'”, assinala, citando a capacidade própria dos pequenos de alterar as funções do objetos. Um carrinho vira avião e voa pelos ares. Um boneco vira pássaro, depois vira carro, depois vira árvore”, recorda, e completa: “Até bem pouco tempo atrás, não se falava de uma educação voltada para a criança. Dizem que os contos de fadas em sua versão original são cruéis, mas não são, são o que acontecia de fato.”
Interpretando cada palavra, gesticulando, levantando-se e se sentando novamente, ora com a voz mais firme, ora mais suave, Alexandre Camilo conta, ao longo de dez minutos, uma fábula para ilustrar a potência das narrativas. “Quando a verdade vem da forma que ela é, nua e crua, muitas vezes, apesar de ser verdade, a gente não quer abrir a porta do coração para ouvir. Se vem sob a forma de acusação, novamente a gente não quer abrir a porta do coração para permitir sua entrada. Mas toda vez que a verdade vem vestida de histórias, de fábulas, causa um encantamento tão grande que, quando a gente dá conta, a verdade já entrou e fez morada na gente. Conto histórias para que a verdade possa entrar no coração das pessoas. O padre conta histórias para tocar o coração de alguém. O principal para um bom contador de histórias ter não é técnica de teatro. Tem bons atores que são péssimos contadores de histórias. Tem bons contadores que passam vergonha no palco. São técnicas diferentes. O contador de histórias é autor. O ator tem um texto, regras e marcação”, explica o especialista.
Um ato de amor
Para Alexandre, que viaja o país ministrando cursos e workshops, contar histórias é um gesto que aproxima num mundo de crescentes afastamentos. “A história pressupõe uma relação. Estou contando. Você está me olhando nos olhos e eu estou olhando nos teus. A gente não consegue isso com o celular. A história ajuda no processo de humanização. Cria uma relação forte de afeto, é um ato de amor. A gente está se isolando. A gente entra no ônibus e ninguém conversa, cada um fica com seu celular. Se está no médico, esperando a consulta, ninguém puxa assunto, cada um puxa um celular. Estamos perdendo relações e deixando de ouvir as histórias do outro. As pessoas costumam dizer que um texto tem que ser curto porque ninguém tem paciência de ler coisas grandes. Mas se a história for bem contada é diferente. Olha o que Harry Potter fez com os adolescentes. A autora tinha profundo conhecimento, estudou os grandes, não foi um acaso. Ninguém vê vídeo por mais de 3 ou 4 minutos? Se a história for maravilhosa você assiste uma série”, afirma ele, que integra o projeto Ação do Coração, no qual visita e conta histórias em hospitais. “Nunca vai faltar trabalho para quem conta histórias. Nunca vai faltar trabalho para quem é da área de criatividade. A máquina não cria histórias. Se cria, não são assim. Isso é próprio da gente. Quando um médico consegue ouvir o que o paciente está falando, muda o diagnóstico. Boa parte das queixas é que o doutor não olhou nem na minha cara, nem me ouviu e já passou um remédio.”