“A vida é muito maior que a gente”, diz Maria Helena Falcão Vasconcellos. Graduada em filosofia e pós graduada em psicologia clínica, a mulher avessa às vaidades diz do instinto em fazer o bem. São as mãos, quando estendidas, que escrevem a posteridade. “Minha família sempre foi uma família ética. Somos pobres, nunca passamos fome, mas sempre lutamos na vida. Além disso, todo ser humano normal sente a necessidade de colaborar para que a humanidade seja melhor. Isso não é especial, é a normalidade. Encontro milhões de pessoas querendo contribuir”, pontua ela, aos 74 anos, no terraço de uma residência que fronteia a praça, onde existe o Mutirão da Meninada do Vale Verde, seu quinhão na certeza de que as vidas valem mais.
Dias de jornais no chão
A paisagem onde hoje se veem casas de alvenaria, algumas ainda sem reboco, já foi mata. No alto, uma fazenda. “Em 1994 houve uma ocupação nesta área. Cheguei a Juiz de Fora em agosto de 1993, e alguns amigos me convidaram para encontrar a comissão de moradores. A ocupação tinha sido feita com alguns barracos de lona. Tinha uma listagem feita pelos círculos bíblicos das comunidades, e era bastante grande. O pessoal ficou na promessa de que seria assentado. Quando cheguei, já estava sendo feito o arruamento. A reunião foi na escada da igreja, e falei com os pais que, se quisessem, eu poderia fazer um trabalho com as crianças e adolescentes. Eles pediram reforço escolar, mas eu não fazia. Poderia fazer atividades para ajudar na escola. Um padre passou a avisar nas missas que haveria exercícios para as crianças. Espalhamos jornais no chão, em 15 espaços, consegui pessoas para coordenar os grupos, e vieram 135 crianças”, recorda-se Maria Helena, então, recém-chegada de Uberlândia, onde se aposentou como professora do estado e onde o marido, o filósofo Tiago Adão Lara, aposentou-se como professor universitário.
Dias de dignidade
A estante cheia de livros e as muitas publicações feitas por crianças atendidas pelo projeto já foi apenas sonho. Da escadaria para as varandas das casas, o projeto e o bairro foram tomando corpo, juntos. A luta por moradia, na verdade, servia ali como simbologia de combates maiores. “O fundamental é que eles aprendam que são dignos de existir. Melhorar na escola é bom se houver isso. Mesmo tendo casa, de um modo geral, quem luta pela vida não é tratado com dignidade neste país. É tratado como gente de segunda categoria”, comenta Maria Helena, hoje considerada parte de um bairro que viu formar. Passadas mais de duas décadas, os filhos se tornaram pais e hoje levam os filhos. Crianças como Raffael Velozo Duque, 12, que conta o que faz às terças-feiras no terraço do Mutirão. “A gente se reúne numa roda para discutir assuntos do Mutirão, e depois cada um vai para uma mesa, fazendo atividades.” Por ano, cerca de 50 crianças e adolescentes, de 7 a 17 anos integram o Mutirão da Meninada, contemplado pela Lei Murilo Mendes, por três vezes (2010, 2012 e 2014) e pelo Ministério da Cultura em 2011, quando todos conheceram Paquetá, no Rio de Janeiro, na finalização do “Quem conta um conto planta um baobá”, projeto que enfocava a cultura afro-brasileira.
Dias de libertação
A cena que Maria Helena encontrou quando conheceu o Vale Verde lhe retomou, de alguma forma, o passado vivido em Vitória. Nascida em Niterói, com passagens pela capital fluminense e por Campos dos Goytacazes, a ex-freira escolheu a capital do Espírito Santo, aos 36 anos, pela força das comunidades eclesiais de base da época. “Toda opressão clama por uma libertação”, dizia Leonardo Boff, um dos principais nomes da Teologia da Libertação no país. Integrante da Comissão de Direito à Moradia da Arquidiocese de Vitória, vivia numa ocupação urbana, num barraco de madeira. “Trabalhava num colégio particular e morava lá. Naquela época, já estava tranquilo, não havia mais a tensão com a polícia”, lembra-se. “Sempre tive militância política e fui do campo da esquerda. Sempre lutei pela justiça e pelo direto de todos”, pontua ela.
Dias de paz
A justiça e os direitos não são medidos pela mesma régua que serve à matemática. “A gente não tem que medir resultado. O que importa é que algum efeito dá, nos oficineiros, nos adultos, nos pais e nas crianças”, defende a mulher que viu a opressão e a ela ofertou sua visão de libertação. “Uma coisa que me marcou muito foi quando ouvi que aqui ninguém ganha nada, conquista”, comenta a agente comunitária Alexsandra Pinheiro Lizardo, uma das parcerias do projeto. “Muitos meninos que saíram do Mutirão entraram no mercado de trabalho. Isso é muito importante”, faz coro Alexsandra Beatriz Leôncio Norberto, cujos quatros filhos passaram pela iniciativa. Presente nos encontros de mães no final do ano e ajudante na preparação da confraternização anual das crianças, a aposentada Regina Stella Barbosa Severino aponta para a nova sede do Mutirão, a Casa da Cidadania, do outro lado da rua, numa casa bem em frente à praça onde está a creche que leva o nome de um do voluntário Toninho Ventura, que desenvolveu um projeto para o acesso da meninada ao método Kumon. “Num bairro que está pautado na cidade como o lugar dos tiros, Maria Helena é uma boa referência”, diz Alexsandra Lizardo. Maria Helena ou o Mutirão? Para crianças como Pedro Luccas, Natã e Raffael, trata-se de sinônimos. Para Maria Helena, que não mais responde pela coordenação do Mutirão (ela passou a bola), “a vida vale mais que a gente”. O que fica mesmo é o que faz as mãos quando se estendem ao outro.