“Aguarda um pouquinho só, que ele está tirando um cochilo.” Às 18h30, o mesmo produtor do aviso convida para o camarim, onde Agnaldo Timóteo, vestido numa camisa branca, de calça preta e chinelos, está sentado numa poltrona com os pés em outra. O aperto de mãos é a fagulha necessária para que o cantor de 80 anos (81 no próximo dia 16) apresente-se polêmico. “Uma vez perguntei ao Aécio (Neves), quando ele era governador: Porque os governantes mineiros não dão a menor bola para os cantores mineiros? Só dão uma proteçãozinha para o Milton Nascimento, como se ele fosse mineiro. Cagam para mim, para o Eduardo Araújo, a Martinha, todo mundo. Reclamei, e não aconteceu nada. Mudou de governo, fui falar com o Pimentel, ele mandou eu falar com o secretário, que mandou eu falar com a menina do Palácio das Artes. Sabe o que aconteceu? 1.700 pessoas no teatro. Qual data me deram? 18 de dezembro, ao meio-dia. Era para eu me ferrar. Não pode ser às 18h? Ela disse: ‘Só temos esse horário, Sr. Agnaldo’. Encontrei o Silvio Santos no Jassa (salão em São Paulo) e falei que estava bancando um show em Belo Horizonte e precisava da ajuda dele. ‘O que você quer que eu faça?’, ele me perguntou. Me põe no ar, eu pedi. Fui e convidei para o show. E deu no que deu. Teatro lotado”, orgulha-se o homem, protagonista de um espetáculo no Teatro Solar, na última quinta (5), cuja fila começou a se formar às 16h.
Há mais de 30 anos sem se apresentar em Juiz de Fora, Agnaldo trazia no repertório a história que o liga a Minas Gerais. “Gravei um CD chamado ‘Obrigado Cauby’ porque comecei imitando o Cauby em Belo Horizonte, por volta de 1955. Era o Cauby mineiro. Durante 63,o acompanhei. Quando ele morreu, achei uma sacanagem. O povo brasileiro imagina que ele gravou só ‘Bastidores’ e ‘Conceição’, mas ele cantou músicas maravilhosas, como ‘Tarde fria’, ‘A pérola e o rubi'”, recorda-se.
Na mesma capital onde começou a carreira, o mineiro de Caratinga conta ter aprendido a voar. “Belo Horizonte tinha todos os finais de semana um show onde hoje é a rodoviária. Antigamente era a Rádio Inconfidência, e tinha um auditório para mil pessoas. Um dia, nós artistas da terra abrimos o show da Angela Maria. Éramos eu, João Luiz, Silvio Aleixo, Nelson Ned, Clara Nunes, abrindo os shows. Quando a Angela me ouviu cantar, perguntou quem estava cantando. ‘Ah! Esse é o Caratinga’, disseram para ela. Ao chegar para o show, me disse para ir para o Rio, porque eu cantava melhor que o Renato Guimarães, um cara que parou o Brasil cantando ‘poema/ é a noite escura de amargura/poema/é a luz que brilha lá no céu'”, entoa. Logo em seguida pergunta: “Estou bem, não é mesmo?!”.
Enquanto o público se ajeita nas cadeiras, Agnaldo recorda outros tempos. “No outro dia, peguei dinheiro emprestado com uns amigos e fui para o Rio de Janeiro. Cheguei e procurei um primo que morava lá. A dona da pensão não deixou eu ficar lá. Ele, então, saiu comigo e me botou dentro de uma hospedaria. Morei em todas da cidade”, ri, alto, bem alto. Perguntado sobre o trajeto, não titubeia: “Às vezes me emociono muito por imaginar o que aconteceu na minha vida. Nunca poderia imaginar que alcançaria um padrão de popularidade tão fantástico. Hoje tenho convicção absoluta do monstro do cantor que eu sou. Não sou um cantor, sou um monstro de um cantor. Se for procurar alguém que vive as canções como eu, que se entregue como eu, não encontrará ninguém.”
“Faltam quantos minutos?”
São 18h45 quando Agnaldo Timóteo vira-se para o fotógrafo da Tribuna, Marcelo Ribeiro, e pede ajuda para se levantar. “Me tira daqui.” Abre uma capa de terno desgastada, com sua fotografia nos dois lados, e tira de dentro uma camisa listrada em branco e preto e um paletó amarelo, tal qual gema de ovo. Acha que a entrega é característica da sua geração, Agnaldo? “Sou muito iluminado. Bicho, eu briguei com todo mundo, e estou vivo. Briguei com a Rede Globo de Televisão, chamei o Dr. Roberto Marinho de contrabandista e covarde. Me arrependo profundamente porque ele era uma figura fantástica. Eu era deputado federal, o mais votado da história deste país. Quantos votos eu tive? 503 mil votos de um eleitorado de seis milhões”, gaba-se.
Andando pelo estreito camarim, com alguns sequilhos e salgadinhos dispostos na bancada da qual sequer passa perto. “A vida me ensinou muito. Sobrevivo por milagre. Briguei na Cinelândia. Dei tiro na estrada, num caminhoneiro, em Sapucaia, fui julgado e absolvido. Fui um idiota”, diz e, em seguida, pede uma pasta de dente emprestada ao cantor e compositor César Sampaio, um dos convidados do espetáculo. Como vê sua geração hoje? “A Angela Maria já não tem a mesma voz há muitos anos. O Moacyr Franco, um artista extrassérie, um monstro, já não tem o mesmo tom de voz.”
Já rodeado, no camarim, por um produtor de Belo Horizonte e a esposa e pelo cantor Gilson (que participou do show com Agnaldo em Juiz de Fora), da famosa “Casinha branca” – “Eu queria ter na vida simplesmente,/ um lugar de mato verde pra plantar e pra colher./ Ter uma casinha branca de varanda/ um quintal e uma janela para ver o sol nascer” -, Agnaldo ajeita a camisa e se prepara para entrar em cena. Acompanha a música hoje? “Não posso concordar com a barbaridade que os comunicadores fazem com os meninos do funk, que fazem sucesso, mas dura três meses. Eles somem e voltam para suas comunidades pobres e anônimos. Justo isso? Gravei o programa da Luciana Gimenez essa semana e chamei atenção dela: vocês são perversos! Consagram verdadeiros lixos, que fazem sucesso, mas acaba”, responde.
Faltam dois minutos
O filho e produtor Márcio calça os sapatos em Agnaldo. “Esse é o peso da velhice: Não consigo colocar nem um sapato”, ri. “Minha carreira é essa: 51 anos de sucesso, 73 discos gravados e absurdamente roubado pela EMI/Odeon”, acrescenta o artista que percebeu na independência a alternativa para não silenciar. “Tive uma coisa que meus colegas não tiveram: coragem de brigar. Ou você se defende ou eles matam você vivo, como fizeram com Arnaldo Dias, Silvinho e Carlos Alberto – O Rei dos Boleros. Sabe quem é ele? Ele parou o Brasil cantando ‘Sabe Deus se tu me amas ou me enganas'”, canta, mais uma vez.
“Deixa eu ir ao banheiro, porque quando vou entrar no palco, tenho vontade”, brinca. Faltam dois minutos, e Agnaldo Timóteo posa para fotos com os amigos. Aproveito para perguntar-lhe sobre o sentimento que cada despedida dos amigos lhe toma de assalto. Dou o exemplo de Nelson Ned. “Não foi doloroso ver o Nelson Ned morrer. Foi doloroso saber como morreu Nelson Ned”, diz, lamentando o que considera ser a extinção de uma geração de cantores brasileiros. “Dessa nova geração, temos coisas agradáveis. Nós temos o Thiaguinho, o Péricles e um menino que está surgindo, o Márcio Gomes. Mas não temos sucessores, nem eu, nem o Moacyr Franco, nem o Aguinaldo Rayol. Também não tem surgido nada no exterior. Há décadas apareceu no mundo um menino chamado Joselito. Tem algum outro? Nunca mais. Cadê a Rita Pavone? Nunca mais.”
Porque isso, Agnaldo? “O mundo foi sendo diversificado de maneira perversa”, responde e silencia, como a fazer uma prece. Pergunta se o teatro está cheio. Após o aceno positivo do produtor, começa a chorar. E segue para o palco. Casa lotada, 500 lugares, preenchidos, em sua maioria, por idosos, alguns segurando cartazes, outras gritando “Lindo!”. As cortinas se abrem, e um coro formado entre palco e plateia canta: “Quem é que não sofre por alguém? Quem é que não chora uma lágrima sentida? Quem é que não tem um grande amor?”.