Não por acaso, sete atrizes se debruçaram coletivamente na construção dessa história. A população carcerária brasileira é predominantemente masculina, mas aquela que forma as imensas filas do lado de fora dos presídios é majoritariamente feminina. Em cena, as visitas periódicas ao cárcere feitas por Cibele, Lia, Rebeca, Carlota, Tamar, Mary e Chiara. Trata-se do teatro documentário “Jumbo – Eu visito a tua ausência”, da Cia. Baú da Baronesa, apresentado nesta segunda-feira, às 19h, no Centro Cultural Bernardo Mascarenhas, encerrando a temporada do Festival Nacional de Teatro de Juiz de Fora. A peça, embasada em entrevistas com mulheres relacionadas a presidiários, ex-detentos, estudiosos e documentaristas do tema, foi vencedora do Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz 2014.
“O fato de ser um mundo que parecia muito distante do nosso é muito atraente. Depois, descobrimos que ele não é tão distante assim. Qualquer uma de nós que tivesse um marido ou irmão preso seria uma visitante. Percebemos claramente que a questão do afeto e do cuidado vai para além da questão da prisão. Tanto é que não é uma peça sobre o sistema carcerário no país”, conta a atriz e dramaturga Cilene Guedes. Ela ressalta que a concepção do elenco instigou a composição do espetáculo. “Sabíamos que, tendo uma companhia de sete mulheres, faria sentido encontrar um tema em que as questões do feminino fossem relevantes para a dramaturgia. Durante as pesquisas, ficou mais latente que não daria para contar a história dos presídios se não fosse pelo viés feminino.”
Nem heroínas, nem vítimas
Jumbo significa embrulho de comida, roupas e produtos de higiene levado ou enviado aos presos rotineiramente por suas famílias. Rebeca, de Cilene, é uma das portadoras. Ela tem 40 anos, é dona de casa de classe média, mãe superprotetora e enérgica de um jovem dependente químico. Pelo filho, coloca a integridade e a liberdade em risco. “Uma vez em seis, você acha um policial que não se vende e você deu azar? Azar dei eu de ter um filho fraco, influenciável, doente. Doente, sim. Na frente do juiz, você admitiu”, dispara a personagem, que faz a plateia se dar conta de que aquele universo repleto de privações, humilhações, dificuldades e também declarações de amor é real.
“Nunca passou fome você, passou? Te faltou alguma coisa? Aí me acaba com a vida assim por causa de R$ 150 e um tênis de marca… E marca faz sapato andar sozinho?”, desabafa Cibele, uma diarista de 33 anos e mãe de três filhos. Interpretada por Fernanda Bastos, ela luta para ajudar o filho mais velho, condenado por assalto e latrocínio, e chora a dor da perda do mais novo na guerra do tráfico.
Na cara da plateia, também surge a bancária de Fernanda Huffel. Aos 31 anos, casada, Lia é filha temporã e negligenciada de um vigarista octogenário. É a única pessoa que resta a ele. Sacrifica-se, mas não esconde sua mágoa. “A dor de cabeça passou? Isso não é outra invenção sua não, né pai? Não é invenção. Eu esqueci. Como o senhor chama: é talento, né?”
Mesmo que não possam ser encaradas como heroínas, elas também não são vítimas. “Encontramos mulheres resignadas sim, mas a palavra que mais cabe é ‘resilientes’. Aguentam muita coisa por um propósito que elas acham ser maior, um propósito de não abandonar, estar presente na vida de uma pessoa que pode ter feito o pior. É claro que existem mulheres que se relacionam, e que abandonam, mas os homens abandonam mais. É desproporcional”, observa a dramaturga, que não teve a pretensão de fazer um retrato fiel da realidade, mas, sim, de buscar a verossimilhança. “A gente funde realidade com ficção e vai para próximo do cotidiano”.
Conversa com a plateia
Desse processo coletivo de pesquisa, surgiu a ideia de colocar o público no lugar do preso. Portanto, a plateia é segmentada em sete grupos para receber a visita das sete personagens. “O espectador determina o nível de interação do espetáculo. Normalmente, ele logo entende que a gente está propondo um diálogo de mão única”, comenta a atriz, explicando a concepção do cenário. “Tomamos emprestado uma característica da vida prisional do Brasil, que é o improviso e a gambiarra, para fazer muita coisa. Alguém sempre dá um jeito de usar um arame, um fio desencapado para criar um aparelhinho de esquentar água e fazer café. Mas essa ideia vai para a peça de uma maneira muito limpa. Vamos manipulando o cenário ligeiramente e usando-o para vários propósitos: ora é a grade do presídio, ora é o lugar em que acontecem as visitas.”
No figurino, a paleta de cores usada e o tratamento dos tecidos evidenciam a diversidade das mulheres e, ao mesmo tempo, destacam uma feminilidade esmaecida, cansada, envelhecida. “Tem muito a ver com o mundo interior dessas mulheres. Essa é uma associação que o espectador faz ou não.”
“Jumbo – Eu visito a tua ausência” é o espetáculo de estreia da companhia, fundada em 2011 por egressas da mesma turma da Casa de Artes de Laranjeiras. O DNA da trupe nasceu ali e percorrerá as montagens que virão. “Não somos uma companhia feminista, isso ficou meio datado, meio velho. Somos uma companhia formada por mulheres e não devemos fugir disso, esconder isso. Pelo contrário, queremos encontrar temas para essa composição que potencialize os espetáculos. Queremos encontrar experiências para o espectador que sejam diferenciadas para o teatro. Não queremos um público passivo, que esteja no lugar de sempre da plateia.”
“JUMBO – EU VISITO A TUA AUSÊNCIA”
7 de setembro, às 19h
CCBM
(Av. Getúlio Vargas 200 – Centro)