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Escavações até a raiz lexical

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Edimilson integra mesa sobre Lima Barreto, no dia 27 de julho, e mesa voltada para público infantil, no encerramento da Flip. Foto: Olavo Prazeres
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Simplificar questões sociais representa silenciar vivências. Existe uma complexidade que exige ser frontalmente encarada. Na epígrafe de “O triste fim de Policarpo Quaresma”, o escritor Lima Barreto diz do incontornável. “O grande inconveniente da vida real e o que a torna insuportável ao homem superior é que, se transferirem para ela os princípios do ideal, as qualidades tornam-se defeitos, de modo que, muito frequentemente, o homem completo tem bem menos sucesso na vida do que aquele que se move pelo egoísmo ou pela rotina vulgar”, escreve ele, reproduzindo trecho do livro “As origens do cristianismo”, do francês Ernest Renan.

Enfrentar as questões de gênero, de raça e, principalmente, ocupar-se do que o mercado não foi capaz de absorver eram os vãos presentes na história da Festa Literária de Paraty, a Flip, que chega a sua 15ª edição no próximo 26 de julho. Sob curadoria da jornalista e historiadora baiana Josélia Aguiar, o evento acata a antiga sugestão da profissional, homenageando Lima Barreto e, também, a literatura afro-brasileira, a escrita das mulheres, os subúrbios, dentre outros assuntos frequentemente empurrados para debaixo dos tapetes das opressões cotidianas.

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Reverenciado como o intelectual que é, Edimilson de Almeida Pereira é um dos convidados da festa. Em mesa ao lado dos também pesquisadores Beatriz Resende (UFRJ) e Felipe Botelho Corrêa (King’s College London), o juiz-forano debate Lima Barreto e sua dimensão na literatura afro-brasileira. Em mesa voltada ao público infantil, com as escritoras Ana Miranda e Maria Valéria Rezende, ele disseca seu fazer. Gigante, apresenta-se como um nome capaz de dar conta da própria escrita e da escrita do outro: é o professor da Faculdade de Letras da UFJF e também o escritor.

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“A princípio, não experimento uma divisão entre as duas perspectivas de apreensão do mundo. De fato, muito de minha escrita criativa decorre de minhas tentativas de gerar um discurso acadêmico no qual o exercício estético funciona como suporte para a formulação de novas abordagens teóricas”, explica ele, que, avesso às lógicas do mercado literário, identifica no convite o reconhecimento de um percurso de vida, o que lhe diz de um acréscimo de responsabilidade.

“Para mim, particularmente, a importância de participar dessa modalidade de eventos literários implica em não percebê-los como um ponto de chegada. Contrariamente, eles me remetem à preocupação de pensar a vivência literária como uma escavação de nossas perplexidades e contradições mais pungentes. Essa vivência pressupõe um tempo demorado de mergulho e de investigação, de escrita e autocrítica da escrita”, aponta Edimilson, que ao longo do evento também será espectador da companheira de academia, literatura e vida Prisca Agustoni.

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Uma das seis convidadas da nova mesa, “Fruto estranho”, com performances poéticas espalhadas por dois horários ao longo da programação, Prisca apresenta-se na sexta-feira, dia 28, e aproveita para lançar “Casa dos ossos” – “uma tradução-traição que operei ao longo dos anos de uma versão original em italiano” -, publicada pela juiz-forana Edições Macondo, e outro título pela paulista Patuá. “Desejo, me dedicar com mais cuidado e com certa constância à escrita e publicação de textos em português, uma vez que durante os anos passados me dediquei mais a procurar um percurso literário nos contextos de língua italiana e francesa”, observa a suíça radicada brasileira.

Prisca Agustoni é uma das seis convidadas da nova mesa, Fruto estranho, de performances poéticas. Foto: Fernando Priamo

Precisamos falar sobre

A restrição do número de participantes, a necessidade de atender às demandas de patrocinadores públicos ou privados e a obrigação de atender a expectativa criada em torno da revelação de peculiaridades dos convidados, segundo Edimilson de Almeida Pereira, tendem a relativizar o aprofundamento crítico dos temas propostos. “A meu ver, diante dessas restrições, é necessário descobrirmos, dentro desses eventos, as derivas através das quais o apelo do imediato pode ser ultrapassado pela nossa vontade crítica de nos ocuparmos de certos temas e problemas incontornáveis”, defende.

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Num ano em que no centro das atenções está um autor negro e pobre, discussões sociais tornam-se, portanto, incontornáveis. “O que percebo agora em Lima Barreto, para além dos temas sociais abordados por ele, é o dilema de uma certa matriz de escrita, metalinguística que, ciente de seus abismos, e por causa deles, nos instiga a reinventar a própria literatura”, pontua ele, caracterizando a produção do autor de “Clara dos Anjos” (1948) como “estação obrigatória – na qual precisamos desembarcar e da qual, novamente partir, caso pretendamos compreender os diversos perfis de literatura que articularmos, no passado e no presente”.

Representada por nomes como os de Ana Maria Gonçalves, Conceição Evaristo, Ricardo Aleixo e o do próprio Edimilson, a literatura afro-brasileira desembarca na Flip em toda a sua urgência. “Não há mais como adiar esse debate, uma vez que a prática da literatura – por estar vinculada a outras práticas sociais – termina por reiterar formas de exclusão de indivíduos e grupos historicamente oprimidos”, comenta Edimilson. “Contudo, esse vínculo da literatura com outras esferas sociais é o que viabiliza os processos de sua transformação, acelerados por vozes dissonantes atentas à necessidade de criação de novos paradigmas de convivência.”

Para Prisca, a presença da mulher, questionada por seguidas edições do evento, também carece de aprofundamentos. “Acredito que as mulheres estão escrevendo obras quantitativa e qualitativamente relevantes, e sem o ‘decoro’ de ficar dentro do quadrado que historicamente a cultura lhes atribuiu. Isso me parece excelente e sem volta”, pontua a escritora e pesquisadora. “Não cabe dúvida de que ainda somos numericamente pouco representadas nos maiores circuitos literários nacionais (prêmios, feiras prestigiosas, eventos, feiras internacionais, etc). No entanto, a mudança – lenta – me parece que está acontecendo. E isso é promissor.”

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Além da tentativa de se refletir mais múltipla, a Flip parece querer dizer do outro papel dos livros, que transcende a palavra escrita ou falada e inaugura novos gestos. Lima Barreto, como aponta Edimilson, já se mostrava atento para tal papel ao escrever o prefácio de “Os Bruzundangas”, de 1961: “Os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões”. “Não foi por acaso que à maneira de Lima – assim como outras vozes da Literatura Brasileira – me senti impelido a escrever ‘sinto a legalidade do crime: os culpados ocupam cargos importantes'”, comenta o juiz-forano. “Ante a derrocada dos projetos de uma ordem social justa, o que nos toca hoje, como no tempo de Lima, é esse sentido doce-amargo que não permite à literatura sujeitar-se ao jogo precário das conveniências.”

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