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‘O amor é a mais potente vocação humana’, afirma cineasta Alice Furtado

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Ao ser questionada acerca do que gostaria de dizer ao público do Brasil e do mundo com a sua mais recente obra, a cineasta carioca Alice Furtado afirmou que se entregar inteiramente a uma experiência amorosa “é a mais potente vocação humana”, diante de uma sociedade que vem cultuando o ódio. Ela teve o seu primeiro longa-metragem “Sem seu sangue” selecionado para ser exibido na mostra Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, que será realizado de 14 a 25 de maio. Nesta terça-feira (7), Alice estará em Juiz de Fora e vai participar de um bate-papo com os alunos do Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Literários da UFJF, a partir das 14h. O evento é promovido pela disciplina Tópicos Avançados – Poesia e Cinema e é aberto ao público.

Alice Furtado, diretora selecionada para Cannes, bate papo com público na UFJF nesta terça-feira (7) (Foto: Tiago Rios)

Esta não é a primeira vez que a diretora figura em Cannes. Em 2011, ao realizar o seu primeiro curta “Duelo antes da noite”, teve sua obra selecionada para a mostra Cinéfondation, voltada para filmes universitários. Sua trajetória na sétima arte, também marcada pelo curta “A Rã e Deus”, começou quando Alice, aos 18 anos, ingressou no curso de Cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF).

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Desde então, sua atividade no meio não parou mais. Durante a graduação, ela fez crítica de cinema, trabalhou com preservação e curadoria. Nos sets da faculdade, foi continuísta e diretora de arte. Só depois de sua primeira ida a Cannes, Alice passou a acreditar que uma carreira como diretora seria possível. Paralelamente, a cineasta se dedica ao trabalho de montadora, um outro lado da construção de filmes, que, segundo ela, tem contribuído para o seu aprendizado diário no mundo cinematográfico.

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Na entrevista que segue, a artista falou sobre seu interesse em abordar temas da adolescência e juventude, período de descobertas e transformações; sua preocupação com o futuro do país em um contexto de cortes na educação e da importância da produção nacional de cultura para o desenvolvimento da sociedade.

Tribuna – Como é ter o primeiro longa-metragem selecionado para a Quinzena dos Realizadores no Festival de Cinema de Cannes, visto que a mostra tem entre seus méritos descobrir filmes de jovens autores?

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Alice Furtado – A Quinzena revelou muitos diretores que admiro, como Spike Lee, Naomi Kawase, Sophia Coppola, entre outros, e foi o lugar de estreia de muitos filmes que me marcaram, então é uma grande honra fazer parte disso. Ter a oportunidade de mostrar um primeiro filme a um público atento como o de Cannes, onde tudo gira em torno do cinema, é uma forma muito encorajadora de começar.

O que uma jovem cineasta, carioca, quer dizer para o público brasileiro e internacional com o seu filme “Sem seu sangue”?
A gente vive hoje em uma sociedade em que talvez o único sentimento que as pessoas se permitam vivenciar intensamente é o ódio. As pessoas se medicam para que nenhum sentimento forte as desestabilize, procuram relações sem risco em aplicativos como o Tinder, em que a promessa de casualidade e não-envolvimento se torna o principal atrativo, não perdem tempo com relações amorosas e, por outro lado, se mobilizam inteiramente pelo ódio. O amor (ou, como diria o filósofo Alain Badiou, a verdade gerada pela experiência de ser dois e não um) ficou totalmente perdido no meio disso, ameaçado pela lógica produtivista desse estágio avançado e trágico de capitalismo em que vivemos, e também por uma cultura que, em grande parte pela lógica das redes sociais que hoje permeiam todas as relações, encerra os indivíduos cada vez mais em torno de si mesmos, de sua própria imagem. Aos olhos de uma sociedade anestesiada e um tanto doente, pode parecer uma aberração, mas quero dizer que se entregar inteiramente à experiência amorosa ainda é para mim a mais potente vocação humana. Tenho consciência, no entanto, de que isso tudo é apenas um ponto de vista. Uma vez que o filme está pronto, o público pode apreender dele o que quiser, considerando a experiência de cada um. Acho isso bonito e é por tal razão que sempre encerro meus filmes de forma bem aberta.

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“Sem seu sangue” narra a história de Silvia que, desinteressada pela rotina diária entre a família e a escola, parece mover-se em busca de algo que a faça sentir-se mais viva. Ela acredita ter encontrado esse algo no jovem Artur. Todavia, a convivência deles é interrompida por um acidente. No seu curta “Duelo antes da noite”, de 2011, você conta a história de uma menina e um menino pré-adolescentes, que trilham um caminho juntos rumo a uma grande mudança de vida. Quais as inquietações que a levaram a abordar a adolescência e a juventude nos seus filmes?
É um período em que tudo é muito intenso e quando há muitas descobertas. Essas descobertas me interessam muito, do corpo em transformação, por onde passarão novas intensidades a serem vividas pela primeira vez. São fenômenos que me interessam de um ponto de vista cinematográfico, algo que tenho vontade de investigar com a câmera. Minha relação com o cinema é extremamente sensorial, quase tátil. Às vezes, percebo que posso facilmente esquecer detalhes narrativos de filmes que me marcaram, mas sou capaz de lembrar exatamente a sensação que tive diante de uma determinada cena – uma cena de dança bem filmada, uma troca de olhares entre dois personagens com muitas camadas de não-dito, um gesto expressivo e inesperado de um ator etc. São intensidades que são próprias do cinema e nenhuma outra arte é capaz de nos fazer senti-las da mesma forma. Quando lidamos com personagens jovens, essa dimensão é ainda mais forte, porque estão plenos ainda nessa descoberta sensorial do mundo.

Que referências contribuíram para sua formação como cineasta?
Minha referência mais importante no cinema mundial é a cineasta francesa Claire Denis, não apenas por admirar desde sempre o seu trabalho, mas também por ter sido orientada por ela em uma residência na França, no Le Fresnoy. No Brasil são muitos os cineastas que me influenciaram de alguma maneira, mas, se fosse para apontar um preferido, diria que Joaquim Pedro de Andrade.

A sua formação é na Universidade Federal Fluminense (UFF), que, assim como outras instituições públicas de ensino superior, vêm sendo alvo de ataques de uma parcela da sociedade brasileira na tentativa de desacreditá-las, diminuindo a importância dessas universidades no campo da pesquisa, da formação profissional e no desenvolvimento social e cultural do país. Como você enxerga essa situação?
Preocupa-me muitíssimo. Eu vivi talvez um dos melhores momentos para a universidade pública no país e posso dizer que foi uma formação muito rica e estimulante, com professores dedicados e apaixonados pelo que faziam, e que naturalmente transferiram essa paixão para nós. Além disso, venho de uma família de professores universitários, então acompanho de perto esse esforço e sei o quanto são capazes de mudar as vidas dos alunos e vice-versa. Logo depois que me formei, em 2010, sinto que o ambiente se enriqueceu ainda mais, com o crescimento de programas como o Ciência sem Fronteiras, a expansão das universidades no interior do país e, sobretudo, a expansão da política de cotas. Tudo isso contribuiu pra melhorar a qualidade do debate nesses espaços e, consequentemente, na sociedade. Preocupo-me muito com o futuro do país em um contexto de cortes brutais em investimentos e diminuição da autonomia da universidade pública, que estava justamente dando passos importantes no sentido da construção de uma sociedade mais igual.

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Políticas de incentivo têm contribuído para que jovens diretores driblem problemas estruturais, saindo do eixo Rio-São Paulo e chegando a grandes festivais. Como a redução de incentivos pode prejudicar a revelação da multiplicidade de olhares no cinema nacional?
Foram jovens diretores e jovens produtoras (sem contar os roteiristas, fotógrafos, montadores etc) que, dentro e fora do eixo Rio-São Paulo, puderam ingressar no mercado entre o início dessa década até mais ou menos o ano passado, quando os critérios de investimento do Fundo Setorial do Audiovisual começaram a mudar. Vivemos durante esse período uma renovação técnica e estética, com o surgimento de novas vozes em todos os cantos do país, ao mesmo tempo em que o lugar das grandes produções, com maiores rendimentos de bilheteria, seguia assegurado. A partir do ano passado, no entanto, os critérios de acesso ao fundo mudaram, dificultando a vida das pequenas produtoras e dos diretores iniciantes. Recentemente, o governo anunciou também o corte de investimentos do BNDES e da Petrobras em audiovisual, o que terá um impacto não apenas na produção em si como em eventos importantes de formação de público como o Festival do Rio e o Animamundi. Para agravar a situação, acompanhamos ainda o impasse entre a Ancine e o Tribunal de Contas da União, que questiona a atual metodologia de prestação de contas da Agência. Como resultado, foi comunicada ao setor a suspensão de repasses, paralisando diversos projetos de filmes e séries já aprovados. Nós tivemos muita sorte de termos captado recursos em 2015, através do Prodecine 5, que era a linha dedicada a projetos com propostas inovadoras e de relevância artística, em que diversos primeiros filmes foram contemplados. Hoje, com os recursos que estão disponíveis e os critérios de acesso a eles (sem contar a paralisação), seria muito difícil conseguir financiar “Sem seu sangue”, que não só é meu primeiro longa, como o primeiro de ficção da Estúdio Giz, a produtora.

“Sem seu sangue” será apresentado na mostra Quinzena dos Realizadores, dedicada a descobrir novos autores (Foto: Felipe Quintelas)

A estreia de blockbusters, como aconteceu recentemente com o filme “Avengers Ultimato”, da Marvel, ocupa a grande maioria das salas de cinema, que, inclusive, são formatadas para esses filmes, chegando a ocupar cerca de 80% do circuito. Como que você avalia esse monopólio no que diz respeito à redução da oferta de outras possibilidades cinematográficas ao público?
É uma desproporção absurda se comparada a outros países do mundo, em que essa taxa chegou a 20% ou no máximo 30%. Resultado da suspensão da cota de tela (que impedia que uma única produção ocupasse mais de 30% das salas do mesmo complexo) que ocorreu no fim do ano passado. Para a produção nacional, que já passa por dificuldades por todos os motivos mencionados acima, é um cenário extremamente desencorajador, mas tão grave quanto é o processo de “desformação”; e embrutecimento do público, ao qual passa-se a oferecer um único produto (não costumo usar essa palavra, mas aqui me parece adequada). Lembro-me que, quando era estudante, entre 2006 e 2010, era preciso correr ao Festival do Rio e à Mostra de Cinema de SP para não perder os filmes mais comentados do circuito dito “de arte”. De lá pra cá isso foi mudando e em um dado
momento os filmes começaram a chegar, saindo de um circuito unicamente cinéfilo para atingir um público mais diverso. A sociedade só ganha com isso. Em relação à proteção ao cinema brasileiro, qualquer país que quer se colocar no centro das discussões do mundo entende a importância da produção nacional de cultura, e para isso é necessário ter mercado. Vejo esse retrocesso com muita preocupação.

Qual o perfil do espectador brasileiro que hoje escolhe entrar no cinema para assistir a um filme nacional?
É alguém que se aventura para além do óbvio e que tem interesse em se ver representado. Nós vivemos um período muito fértil e diverso durante o auge das políticas voltadas ao cinema independente, e o resultado disso ainda está chegando às telas, então há muitos cinemas brasileiros a se conhecer ainda.

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Bate-papo com Alice Furtado

Nesta terça-feira (7), às 14h, na sala 1.115 da Faculdade de Letras (campus da UFJF)

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