
Como muitos libaneses, Mukaiber encontrou a prosperidade em Juiz de Fora
Após atravessar o Atlântico numa longa viagem de navio, Mukaiber Mhanna desembarcou no dia 5 de julho de 1950 no porto do Rio de Janeiro. Ao lado do primo Mtanos, de um tio e de uma criança cujo parentesco era um pouco mais distante, o jovem de 17 anos carregava na mala o sonho por dias mais prósperos. No dia seguinte, chegou a Juiz de Fora, cidade centenária de bondes circulando nas vias centrais. Logo ele se encontrou com tios e suas famílias. Deparou-se também com a nova grafia do sobrenome: Miana. “Quando cheguei, tudo para mim era novidade. Trabalhava numa cidade pequena, onde a gente plantava e colhia para comer. Tínhamos casa própria, e nunca faltou nada”, recorda-se o senhor de 81 anos, voz e gestos firmes.
Em Baalbek, no Líbano, Mukaiber deixou os pais e os muitos irmãos. Despediu-se também das parcas perspectivas. “Somos uma família de nove filhos. Sabe o que é isso? Duas mulheres e sete homens, e eu sou o mais velho dos homens. Comecei a trabalhar com 6 anos. Com 12, tinha que arar terra, pegar no arado e ir até o final e voltar o dia inteiro. Eu não aguentava nem carregar o arado, aí pegaram e fizeram um arco de ferro em cima de um animal só para eu só segurar”, conta o homem, que, após trabalhar por quatro anos em lojas de roupas na cidade, juntou o dinheiro necessário para, em parceria com o primo Mtanos, abrir a própria empresa, a loja Glamour, uma das mais antigas da Rua Halfeld.
Morando com um tio, em pouco tempo o libanês mostrou tino para os negócios e para a relação com o público. “No primeiro dia de trabalho, eu não sabia falar português. Em um mês, aprendi, já estava atendendo o freguês e conversando fiado. Sem falar uma palavra errada”, gaba-se, exato em palavras, verbos e adjetivos, tudo com forte sotaque. “Um amigo nosso, que trabalhava com meu tio, deu a sugestão do nome para a loja, que ele deve ter visto em uma revista qualquer. Nós achamos bom, também, e aceitamos. ‘Glamour’ é o quê: atraente”, comenta.
Luxo e povo
O letreiro destaca-se numa das mais conhecidas e frequentadas ruas de Juiz de Fora. Ao lado da indicação de tamanhos maiores (de camisa e calça), a placa exibe ar retrô, dos tempos em que os homens usavam, indistintamente, traje esporte fino para um simples passeio. Na vitrine, são mantidas camisas de tecido, ternos, cintos, gravatas, meias e perfumes importados, artigos que, antes, Mukaiber e o sócio Mtanos buscavam na capital fluminense, tanto para a Glamour Modas, abaixo do Edifício Clube Juiz de Fora, quanto para a Glamour Novidades, na parte baixa, ambas com as atividades já encerradas.
“O comércio era muito bom. Caiu mais de 30% ou 40%. Para pagar o aluguel, está sendo difícil”, conta o empresário, que hoje mantém quatro vendedores e duas profissionais trabalhando no escritório, um dos funcionários com cerca de 45 anos de casa. Os tempos mudaram. “Tínhamos uma freguesia grande demais, porque a redondeza toda comprava da gente. A concorrência era muito pouca”, diz ele, apontando que atende público de diferentes idades, rendas e sexos, ainda que não mais trabalhe com artigos femininos. “Alta sociedade não dá lucro para ninguém. Isso é conversa para boi dormir. Quem dá é o povo. A alta é exigente e não compra nada, saía daqui, antigamente, e ia comprar no Rio de Janeiro. Eles não faziam conta do que gastavam com carro, gasolina e hotel”, ri.
Halfeld e prédios
Há 60 anos, quando a Glamour abriu as portas no interior da galeria, tendo mudado para a esquina da Pio X em 1958, a Halfeld também era outra. “Só tinha uma faixa de asfalto aqui. Os carros encostavam de cá e de lá”, lembra, afirmando que a via já não era tão luxuosa quanto no início do século XX. “Melhorou muito. A cidade cresceu demais, é muito boa para morar, não é nem tão grande e nem tão pequena. Fomos beneficiados por um progresso”, comenta ele, que, após reunir certa quantia, comprou um apartamento, depois vendeu, e assim deu início à sua faceta de empreendedor na construção civil, que o permitiu comprar lotes para levantar casas e prédios. Tudo, segundo ele, por uma dedicação que se expressa no horário em que chega para trabalhar. “Temos 60 anos, e, se eu cheguei atrasado algum dia, foi por justa causa. Sempre chego junto com os empregados, às oito da manhã, enquanto todo mundo abre às 9h. Quando vou almoçar, volto em uma hora. E saio junto com eles. Tudo porque tenho que dar apoio aos empregados. A presença de nós aqui é muito importante”, explica.
Cedro e ruínas
Bravo, Mukaiber sempre recorre ao discurso da justiça e da correção. Para ganhar a vida, o segredo é o trabalho. “Normalmente o libanês é um jogador. Eu não jogo e não suporto jogo, nem meu pai suportava. Não bebo. E como para viver, não vivo para comer. O libanês gosta muito da barriga também. E gosta muito de contar lorota, comigo não tem disso”, brinca ele, que em 1958 casou-se, teve três filhos e logo se viu sozinho com os dois meninos e uma menina, após a precoce morte da esposa. Passado alguns anos, voltou-se a se casar, com uma prima da ex-mulher e neta de libaneses.
São os filhos e a esposa, que passa enquanto conversamos do lado de trás de um longo balcão, os responsáveis por seu extremo respeito ao Brasil, país que o acolheu e no qual prosperou. “Sou muito mais brasileiro, vim com 17 anos e já estou há 64. Minha família é toda brasileira, meu filho mais velho vai fazer 54 anos”, afirma. E a comida? “Quando eles (filhos e netos) vão para minha casa, faço quibe de bandeja. Hoje, por exemplo, minha filha veio com o marido, e tinha arroz com berinjela”, diz esboçando um raro sorriso. O Líbano, ao qual retornou por diversas vezes, sendo a última há três anos, ele guarda no anel e no cordão de ouro com o desenho de um cedro (símbolo do país). Preserva na memória e também em uma foto emoldurada e exposta na Glamour: “Aquelas ruínas são de Baalbek, são as maiores do mundo”.