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Cidade da Fantasia: conheça a história de onde a folia é construída

uploads FELIPE COURI 01.02.23 06.047
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Betinho, dono da Cidade da Fantasia, destaca que no espaço, atualmente, deve ter cerca de seis mil peças (Foto: Felipe Couri)

Um ambiente tranquilo. O único barulho é o som de uma televisão ligada e de uma mão passando por uma série de materiais em EVA de cor marrom. Dá para ouvir, bem no fundo, um barulho de uma tecla de calculadora e papéis sendo passados lentamente. Sons ínfimos para uma cidade. Mas, sim, trata-se de uma cidade. “É, só podia mesmo ser cidade aqui.” É porque, apesar de ter poucos barulhos, é um espaço gigante, com corredores que são como ruas, passagens que são como avenidas. E o que liga isso tudo são fantasias de todas as cores e de todos os tipos, estacionadas organizadamente como casas. Um galpão que parece não ter fim. Quanto mais se anda por entre os corredores, mais se descobre que é mesmo um espaço grande. À primeira vista, parece que o lugar está bem cheio. Mas Carlos Alberto de Souza Novaes, o Betinho, dono da Cidade da Fantasia, avisa: “Tá vazio. Hoje, deve ter só seis mil peças. Mas, durante a pandemia, a gente juntou umas 25 mil”.

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Essa cidade existe há 25 anos, no mesmo lugar: em galpões que ocupam o começo da Rua Machado de Assis, na Vila Ideal. O carnaval é coisa de tradição. Passa de pai para filho dentro das famílias. Em Juiz de Fora, isso se manteve e é o reflexo, inclusive, do que é a Cidade da Fantasia. Porque Betinho, sob influência familiar, participava do Partido Alto. Ele até chegou a desfilar na avenida como destaque há anos, mas viu que gosta mesmo é de acompanhar, estar por trás da festa. E, como dirigente da escola de samba, percebeu que as fantasias que faziam para o desfile, depois da folia, acabavam sendo desperdiçadas, e não tinha, ainda naquela época, alguém que as comprasse para dar um novo fim.

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Ele, então, começou a comprar as fantasias, tanto da escola da qual participava quanto de outras da cidade, e vender para outras escolas do interior. É isso que ele faz até hoje, mas, além de também comprar as roupas das principais escolas do Rio de Janeiro e de São Paulo, vende para agremiações da região toda, além das cariocas e paulistas. “Começou assim, pequeno. Agora ocupa esse espaço todo.” A Cidade da Fantasia ocupa, agora, dois galpões. Mas, em uma época, no mesmo lugar, chegou a ocupar quatro. Ele já se dedicou, além das fantasias, a comprar e revender as alegorias. Mas viu que não vale a pena. Ocupa mesmo muito espaço. As últimas que restaram estavam sendo vendidas por agora. O negócio é a fantasia.

De uma escola para outra

Dando uma volta por entre as fantasias, dá para ver de onde elas vieram e para onde elas vão. Ele também sabe de cor esse translado. Quem acompanha os desfiles consegue até identificar de onde vieram. “Essa aqui veio da Vila Isabel. Do desfile do ano passado.” Trata-se da fantasia das baianas que fazia referência às favelas, com casinhas que acendem a luz. Neste ano, elas vão cair na avenida com outra escola. É uma etiqueta vermelha que marca o destino. Dá para ler: BH, Congonhas, Vitória, São João Del-Rei, São João Nepomuceno, São Paulo, Rio de Janeiro. E mais um tanto que ele acredita que até o dia do carnaval vende. Mas como essas pessoas te conheceram? “Ah! Vai falando. E tem o meu site, né? O site, agora, ajuda muito a chegar em mais gente. O Facebook, principalmente.”

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Dois mil e vinte e três é um ano que marca, realmente, o triunfo do retorno. As escolas do Rio de Janeiro e de São Paulo, por exemplo, desfilaram em abril. Tiveram relativamente pouco tempo para se preparar para esse ano. Ainda mais as menores, que têm um outro modo de fazer. Em Juiz de Fora, depois de cinco anos sem descer a avenida, as escolas voltarão a sentir esse prazer. “Foram anos difíceis. Está sendo difícil até achar material. É por isso que as escolas estão optando por recolher as fantasias em outros lugares. Aqui em Juiz de Fora, não teve tempo nem dinheiro. Eles não teriam condição de fazer isso usando esse tipo de material. A gente até facilita para eles, pela festa.”

Antes mesmo de começar o carnaval, Betinho já tem parcerias fechadas para o próximo ano. “Acaba o carnaval eu já começo a comprar. Eu já tenho até algumas encomendas. Os ateliês do rio têm sobras dos desfiles. Com a sobra eles fazem as fantasias que eu compro deles. Já compro alguma coisa na Vila, na Mocidade, na Mangueira. Me oferecem e eu já vou comprar pro próximo ano.” É carnaval o ano inteiro. O difícil, no entanto, foi principalmente a pandemia. Não tinha perspectiva. Não pisava uma pessoa por ali. O negócio foi ir juntando fantasia, confeccionando. “Uma hora isso ia acabar.” Tanto que o espaço chegou a ter 25 mil peças por causa desse tempo que, realmente, vem passando.

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O processo é de reciclagem. Elas chegam, eles analisam, e deixam a fantasia com cara nova. O que poderia ser desperdiçado, vira luxo. Antes mesmo de ficarem prontas, de o cliente vê-las novas, tem gente que as reserva. É confiar no processo. “As fantasias ficam com a cara novinha. É reciclagem. Elas ficam novas. Você não fala que já foram usadas”, enfatiza Betinho. Mas, além disso, a Cidade da Fantasia passou a fabricar fantasias novas. Mas, aí, Betinho sai de cena. “O Júlio já trabalhava com carnaval e eu chamei ele, porque, durante o ano, ele não tem coisa de carnaval para fazer. Acaba que, no ateliê dele, o trabalho fica concentrado mais próximo do carnaval. Aqui, tem coisa pra fazer o ano todo. E sem ele, sei lá o que seria, porque eu não sei furar uma agulha”, brinca Betinho. “Estamos na luta aqui”, responde o Júlio Meurer, que topou o desafio de viver de carnaval o ano todo e construir uma cidade de fantasia.

Júlio Meurer trabalha na Cidade da Fantasia há seis anos, mas o carnaval passou a fazer parte da sua vida desde quando tinha 13 anos, por influência da família (Foto: Felipe Couri)

As mãos das fantasias

Júlio é o artista. Trabalha na Cidade da Fantasia há seis anos. Mas, em função do carnaval, está desde quando tinha 13 anos. E começou também por influência da família, mas no Real Grandeza. “Meu pai era diretor do Real Grandeza. Desde os 13 eu estou enfiado no carnaval. Fazendo uma coisinha ali, outra ali. Eu ia para lá, ficava na bateria, depois fui aprendendo a desenvolver fantasia e acabei ficando. Sempre tive vontade de trabalhar com o carnaval. Esse dom do carnaval. Você já está ali, não tem jeito. Quase meu tempo integral é carnaval. Mas, no carnaval mesmo, eu vou para roça, tomar minha cerveja. É complicado porque é o ano inteiro. A não ser que eu tenha algum compromisso. Prefiro ficar isolado.”

E a primeira fantasia que fez, ele não esquece. “Era uma turma da minha rua. Nós fizemos uma ala inteira. Eram 128 componentes em uma ala só. A gente fez em um porão na casa de um amigo. E a partir daí foi todo um processo de aprendizagem e de participação dentro das escolas de Juiz de Fora.”

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Em casa, ele tem uma equipe que o ajuda nas demandas. Mas, lá, é fabricação mesmo, sob encomenda. Na Cidade da Fantasia, tem as reformas, que são o carro-chefe. “Trabalha o ano inteiro. Quando não tem para lá, passo pra cá. A gente faz desde a reforma à criação e execução.” E ele explica todo o processo: “Tem coisa que chega em um estado meio destruído e aí eu dou uma repaginada nela. Se tiver danificada, volta a ficar do jeito que era, mas já não é nova. É tipo roupa: faz um remendo, mas não é nova. E recicla, porque poderia perder todo o material. Mas, não, até as escolas do Rio de Janeiro ou desmancham ou vendem pro interior. Quando acaba as reformas, a gente começa a fazer as novas. As escolas desenvolvem o enredo e, aí, vão pedindo, e a gente vai fazendo”.

Quando chegamos para a entrevista, ele estava com uma série de EVAs que formam ratos e escorpiões. Eram de uma reforma. Quando foi revender as fantasias, colocou a mão nos bichos. E mostrou: o material estava desmanchando. Foi, então, preciso refazer. Mas, em Juiz de Fora, é difícil encontrar essas coisas. Quase tudo precisa vir do Rio de Janeiro ou de São Paulo. “Aqui tem pouca coisa. Chega no Rio, em São Paulo, você fica até bobo, de tanta coisa que tem.” É por isso que pensar no material é o primeiro passo para pensar na criação da fantasia. Porque tudo tem que ser com base na realidade. Não adianta pensar em uma peça linda, mas que não é possível de ser feita.

Mas o próprio Betinho enche a boca com orgulho quando fala que Júlio é mesmo um artista. “Tem gente que desenha até umas coisas que nem dá para fazer. Júlio, não. Nem precisa disso. Tem tudo na cabeça.” E o artista responde: “A gente aprende com o tempo. Vai somando o trabalho que você já viu com o que imaginou. O mais difícil é fazer ficar em pé, a estrutura. Depois, vem a decoração, a parte de colorir o trabalho e, então, o material. Ver o que tem, o que ficaria bonito”.

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Durante a pandemia, por exemplo, para não ficar completamente à toa, sem a perspectiva de quando as escolas poderiam voltar a desfilar, o jeito que Júlio encontrou foi produzir. Ele aponta para vários adereços enormes, deslumbrantes, cheio de penas: são fruto da pandemia e que aos poucos estão sendo vendidos. “Tem muita coisa que fiz na pandemia. Porque tem coisa que acaba estragando, tipo as penas, por isso eu tive que usar. Cada hora aparece um para olhar, um curioso. A pessoa para, olha para ele, pensa, alguns compram, outros a escola não tem dinheiro para isso.” E lembra: “Na pandemia, foram dois anos sem entrar uma pessoa aqui. Nós fomos fazendo, juntando. Uma hora acaba. Agora tá vazio aqui, mas tinha que ver, não tinha nem lugar para mexer não. Mas uma hora vende tudo mesmo”.

Dez anos depois

No final do passeio à Cidade da Fantasia, Betinho mostra uma foto guardada em um porta-retrato. Na imagem, é ele de braços abertos em frente a várias fantasias. “Eu cortei do jornal e coloquei aqui.” Há exatos 10 anos, o na época repórter da Tribuna Felipe Mussel fez esse mesmo passeio pelas ruas dessa cidade. Pouca coisa mudou nesse tempo. Deixou de comprar alegorias. Júlio entrou. Mas parar de comprar, vender e fabricar fantasias? Nunca.

No porta-retrato, Betinho guarda reportagem publicada pela Tribuna sobre Cidade de Fantasia, em 2012
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