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‘A política tomou conta de tudo’

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Existe o refugiado que vem de outro território e aquele que refugia-se dentro de seu próprio país. Aquele que é estranho numa cultura diferente e aquele que é estranho em sua própria casa. Em determinado momento do filme “Era o Hotel Cambridge”, um dos personagens, um refugiado palestino, volta-se para os que o rodeiam, numa ocupação no Centro de São Paulo, e aponta o que os une: todos ali, independentemente da origem, estão à margem por não terem teto.

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Ainda que debata, frontalmente, as questões do exílio e da moradia, o mais novo filme da cineasta Eliane Caffé reflete sobre a noção de justiça em tempos de proliferação de justiceiros pela internet. Fala sobre o que é sentir-se em casa, sentir-se parte, sentir-se empoderado, e, portanto, livre. Premiado pelo júri e pela crítica na última edição do Festival do Rio e aplaudido de pé pelas 600 pessoas que lotaram o Cine Tenda na 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes, o longa-metragem chega aos cinemas do país na primeira semana de março, mostrando o absurdo da realidade.

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Reunindo atores profissionais, como José Dumont e Suely Franco, a não-atores, como a militante dos sem-teto Carmen Silva, o filme esgarça a noção de ficção distante da verdade. Em muitas passagens, o extremo de certo fato parece muito mais ficcional que a própria história criada. “As cenas que migram da realidade entram na edição para compor uma ficção”, explica a paulista Eliane, cuja carreira começa na Escola Internacional de Cinema e TV de Cuba, terra onde as discussões acerca das igualdades sempre se mostraram como pauta principal.

Autora de uma produção pautada no drama da opressão social – seja no inicial “Kenoma”, de 1996, seja no prestigiado “Narradores de Javé”, de 2004 -, a cineasta faz arte fazendo luta. “Até queria sair um pouco disso, ligar outra antena, mas é difícil”, diz ela, em entrevista por telefone à Tribuna, de sua casa, muito diferente do set real do filme, onde tensões e conflitos reivindicavam um direito tão básico quanto humano. Era o Hotel Cambridge, mas poderia ser qualquer outra ocupação. Poderia ser um protesto, um brado, um punho cerrado. Era um hotel, mas poderia ser a rua.

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(Foto:Beto Staino/Universo Produções/Divulgação)

Tribuna – De onde surgiu essa história para você?
Eliane Caffé – Começou quando eu estava fazendo uma pesquisa sobre os refugiados, em 2014. Havia aquela onda intensa de reportagens, e eu comecei a investigar o tema. Num primeiro momento, a ideia era trabalhar num drama. Só que vendo as matérias era muito recorrente a maneira de os refugiados exporem seus dramas. Depois de tantas vezes que via as histórias, por mais que fossem trágicas e terríveis, parecia um mantra. Pensei, então: Será que não tem um jeito de abordar isso de forma que a gente não fique só na tragédia? De refletir sobre o que está por trás dela? De pensar sobre o que tem provocado esse deslocamento em massa no mundo todo? Para responder, pensei em como abordar a questão do refugiado sem ser pelo individual. Teria, assim, que abordar a partir do momento em que ele chega num país, enfrentando outro nível de resistência. Fui me aproximando cada vez mais da questão da moradia. Quando eles chegam a São Paulo, e em quase todos os outros lugares, isto se repete, eles têm um problema gravíssimo, que é a moradia e por isso entram nas ocupações, tanto as de movimento sério, quanto as especulativas. Abri um horizonte completamente diferente da ideia original, trabalhando na interseção desses dois universos de resistência, dos refugiados e dos trabalhadores sem teto.

E de que forma que esse drama diz de você?
São tantas as variáveis que se entrelaçam. Mas de imediato, a minha relação íntima está no sentimento de empatia pelo outro, que é muito forte. Qualquer ação, tanto artística quanto política, vem desse lugar, da expressão de um amor, não do romântico como entendemos num nível superficial, mas de um vínculo com outros seres humanos que compartilham uma mesma época. Esse olhar interessado está em todos os temas dos quais me aproximo.

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Esse discurso dos trabalhadores sem teto é muito forte, muito corajoso, como mostra a Carmen Silva no filme. Como foi tomar contato com essa fala?
Está sendo um aprendizado imenso. E isso é o que de melhor pode ocorrer. Eu e todos da equipe fomos nos aproximando desse discurso político e humano, entendendo, incorporando, se apropriando e se misturando. E há uma mistura porque ele se envolve com o repertório que a gente traz de classe social, é um impacto extremamente necessário, de ir de um segmento a outro. É nisso que brota o sentimento de paridade.

O cruzamento da ficção com a realidade surge nesse encontro de vozes? A dúvida surge aí?
Nunca foi uma opção colocar em dúvida ficção ou realidade. A ideia sempre foi fazer uma ficção. No meu ponto de vista, o filme é uma ficção, todinho. As cenas que migram da realidade entram na edição para compor uma ficção. As cenas da polícia não aconteceram no Hotel Cambridge, mas em outros edifícios. Muitas das cenas que vemos, como a do Skype, aconteceram com pessoas que estavam em seu território de origem e foram trazidas a convite da ficção. Essa mistura é potente porque, na verdade, permitimos que algumas mediações que a ficção coloca não aconteçam. A Carmem, quando faz ela mesma, está ficcionalizando a si mesma. Só que esse personagem já está composto, já é complexo. Porém, ali ela não atua como se estivesse diante de uma câmera de jornal. Ela está no jogo dos atores profissionais. O que muda é que quando você controla o set com atores contratados, o resultado é um. Já quando trabalha num set mais aberto, quando o material da ficção está muito mais vivo, acontecendo, há outro resultado.

E adentrar esse lugar e depois voltar para a sua casa lhe criou constrangimentos?
Há muitos constrangimentos, principalmente o da percepção de que estamos engessados, culturalmente e em nosso imaginário, nas classes sociais. Tanto o pessoal de lá quanto a gente daqui. O pessoal da classe média e o trabalhador de baixa renda. Está todo mundo, de alguma forma, fechado em seu ecossistema social. Isso causa muito constrangimento.

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Mas cada lugar é um…
Por mais que queira se fundir àquele universo é impossível. Ao voltar para casa sentia isso. Quando entrava no meu apartamento e fechava a porta, estava, de novo, em minha realidade. Nunca vamos pertencer àquele universo como eles pertencem. Esse deslocamento do set, na zona de conflito, para a minha casa, às vezes era pontuado por um sentimento de solidão, às vezes de alívio, às vezes depressão, às vezes euforia. Durante o dia a gente era muito contrastada na diferença de espaços. Ia de um edifício totalmente gerido em coletivo, permanentemente em luta e conflito, para um edifício normatizado num condomínio.

Havia alguma preocupação em não fazer apenas um panfleto, mas uma obra de arte?
No início havia. Depois desapareceu, porque a própria experiência de vida tirou esse medo. No filme tem momentos de didatismo, mas quando eles vêm é diferente de quando a gente impõe. Lá eles falam de uma forma panfletária, como “Quem não luta tá morto”, mas, ao mesmo tempo, aquilo não é uma frase morta ali, faz todo o sentido. Ela se expressa com carinho ou raiva, comicidade, com todas as modulações que não fazem a gente sentir a coisa chapada do panfleto. Eles, na paisagem deles, quando falam “Quem não luta tá morto”, falam totalmente diferente do jeito que ficaria se eu colocasse de uma forma abstraída desse contexto.

Percebe que neste momento do país o filme permite uma leitura que poderia ser diferente em outros tempos?
Percebo claramente, porque foi uma confluência de situações. Esses problemas que chegaram a um momento extremo o qual estamos vivendo foi sendo construído e já existia desde muito tempo. O que aconteceu é que as coisas atingiram um limite. A situação dos refugiados e os movimentos de moradia estão diretamente relacionados a essa crise. A política se tornou algo tão complexo que não está mais restrita a uma parte da vida. Ela é a vida toda. Trabalhamos em horários completamente anárquicos, não estamos mais restritos a uma linha de produção, a multidão está toda conectada, a política tomou conta de tudo.

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Há uma nova safra de filme muito comprometida com questões sociais estruturantes, como “Aquarius” e “Que horas ela volta”. De alguma maneira você dialoga com essas produções?
Com “Aquarius” percebo um maior diálogo, no sentido de ele também tratar da especulação imobiliária. Com “Que horas ela volta” não vejo muita ligação. Pode ser como tema, do trabalhador, mas não como abordagem cinematográfica.

A crítica especializada aponta para a coerência de “Era o Hotel Cambridge” dentro de sua filmografia. Na sua visão, no seu projeto profissional, de que forma ele se insere em sua obra?
Expressa um tipo de inquietação que se mantém com o tempo. Cada vez mais estamos numa época épica, no sentido de buscar as ações no coletivo, como em “Narradores de Javé” e num seriado que fiz, “O louco dos viadutos”. Tem também um trabalho que fiz em Alcântara, no Maranhão, que chama “Céu sem eternidade”, retratando aquela questão da base especial, que está voltando. Parece que o (ministro das relações exteriores, José) Serra está negociando essa base especial com os Estados Unidos. Fiz um documentário mostrando o conflito dos quilombos com a base. Por onde me movo, acaba estando presente a disputa acirrada entre uma população e o poder econômico dominante, que vai abrindo trincheiras sem nenhum pudor. Até queria sair um pouco disso, ligar outra antena, mas é difícil.

Seu cinema é sua forma de resistir?
É uma maneira de resistir não só no nível objetivo. A maneira como a gente, de classe média, resiste é totalmente diferente da maneira do trabalhador de baixa renda ou do desempregado. A nossa resistência está permeada pela falta de sentido, pelo tédio, pelo encolhimento da realidade, pela retração que a gente faz do mundo, ficando mediado pelas técnicas. E a gente não pode se entregar a essa obscuridade, é preciso viver. O jeito de resistir do trabalhador, porém, é diferente, ele tem todas essas questões, mas tem outra, que ocupa a mente dele, que é prover a mesa dele.

 

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