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Maristela, para sempre

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HELENA RECEBEU, nos tempos do Teatro de Revista, a alcunha de Maristela, personalidade que a representa ainda hoje (fernando priamo)

Helena recebeu, nos tempos do Teatro de Revista, a alcunha de Maristela, personalidade que a representa ainda hoje (Fernando Priamo)

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Helena ligou para contar das injeções que havia conseguido, via mandado judicial, para aplicação em suas retinas. “Perdi o foco de um dos olhos. A retina secou. Esperei o SUS marcar oftalmologista para mim por mais de um ano. Quando consegui, não havia um especialista em retina. Fui a um médico, que disse não ter nada. Finalmente, quando fui a outro, ele me disse da gravidade da situação. Em uma clínica pública, outra médica me receitou três injeções nos dois olhos (uma para reverter a situação, outra para prevenir a doença na outra vista). Entrei na justiça para conseguir o remédio, que é muito caro. No primeiro mês, consegui a liberação. Em outubro já não tinha mais, porque a Prefeitura não havia liberado a verba. O tratamento, então, foi interrompido”, lamenta a senhora de 76 anos. Helena abriu as portas de sua casa para contar tudo o que já viu. “Minha vida, te falo, daria uma novela”, ri, esquecendo-se de completar: Mexicana!

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O nascimento de Helena

“Sou carioca verdadeira. De Copacabana. Fui abandonada ainda bebê, no banheiro de uma casa de saúde. O juiz é que foi meu tutor. Fui criada num orfanato mantido pela alta sociedade da Zona Sul. Fiz o primário e o ginásio com bolsa de estudo, só não podia tirar notas baixas. Estudei piano no Conservatório Nacional de Música, teoria e prática, fiz violino, acordeom com Mário Mascarenhas. Tínhamos, até, babá. A comida era excelente. E íamos aos concertos igual menina rica. As outras meninas ainda tinham alguém da família, tio ou pai. Eu era sozinha, só tinha o juizado. E era muito levada. Apanhava com mangueira de jardim, por ordem do juiz. Quando tinha 14 anos, fugi e fui para a casa da substituta do juiz, que morava no Flamengo. Apareceu o professor de violino e a esposa querendo me adotar, mas o juiz não deixou. Queriam me enviar para o Serviço de Assistência a Menor (Sam), mas ameacei me matar se fosse para lá. Com a gilete de um apontador cortei meus pulsos. Nesse momento apareceu uma ricaça dos Tefé (a socialite Tetrá de Tefé) e me levou para um apartamento enorme. (Sentia-me) a Gata Borralheira que virou a Cinderela”, recorda-se Helena Fernandes Martins. O filho da tal ricaça, já um homem de 58 anos, quis se casar com a garota, que assentiu. Não deu certo, contudo, e Helena, novamente, fugiu. “Foi quando surgiu um anúncio para ser aeromoça, fiz prova e estágio. Minha primeira companhia foi a NAB, depois consegui ir para a Real. Por ser menor, precisei que o juiz assinasse, permitindo que eu trabalhasse. Mas não podia pernoitar em destino nenhum do avião”, conta ela, assumindo um ofício que às mulheres soava como devassidão. Muito bonita, Helena não se fez de rogada e aceitou ser ainda mais vanguardista. “Tive tudo na vida para ser prostituta, ladra e viciada. Nunca fiz nada disso. Um dia, enquanto eu e três colegas esperávamos na Cinelândia o ônibus para Copacabana, parou um Cadillac preto, e um homem perguntou se queríamos trabalhar em teatro. ‘Eu topo’, disse. Ele entregou um cartão e mandou a gente procurar o Teatro Jardel.”

O parto de Maristela

“Não tinha ensaio”, lembra Helena. Não havia nada. Bastava olhar para o lado e copiar os gestos das outras moças bonitas que agitavam, sensuais, as pernas e os braços. “Ele disse: ‘Temos um probleminha aí com o Carlos Lacerda, e você, Helena, vai ser Maristela Lacerda’. À noite, fomos à costureira experimentar roupas de plumas e biquínis. Na primeira peça em que trabalhei, a Marília Pêra era a estrela. Chamava ‘Vou à lua de lambreta’. Depois fiz ‘Todas elas são barbadas’ (em 1960), com o Grande Otelo”, conta ela, já não mais Helena, mas a Maristela que dividia o palco com Castrinho, Sônia Mamede e outras grandes estrelas do Teatro de Revista. Perto dos 20 anos, em “Te futuco, não futuca”, estrelado por Iris Bruzzi, Maristela se exibia antes mesmo de as cortinas se abrirem. Com o espetáculo ficou por três meses em São Paulo. “Eu era vedete, sambando. Tinha o leilão das escravas em ‘Um carioca no harém’, na boate Night and Day. A gente tinha uma capa toda bordada e só a calcinha de biquíni, de repente abria e fechava a capa, o tempo de mostrar o seio. O Grande Otelo chegava e ia escolhendo, uma por uma”, lembra, aos risos. “Também fazia propaganda na TV Rio, dos Biscoitos e Massas Marilú. Roberto Carlos cantava no programa de Jair de Taumaturgo. Ele fez de tudo para me namorar, mas nunca gostei de garoto. Me lembro dele com uma camisinha esmirrada e uma calça jeans surrada. Concorri para Miss Guanabara e para Miss Objetiva, de fotogenia, e todas falavam que eu iria ganhar. Mas não ganhei, porque não aceitei dormir com o organizador”, orgulha-se ela, que, com mais de 60 anos, voltou aos concursos, na já extinta boate Raffa’s, em Juiz de Fora. Não venceu porque, segundo ela, era sensual demais para a idade. Era Maristela demais.

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Antes e depois do silêncio

Helena, que era Maristela, morava num quarto na casa de uma costureira na capital fluminense, e o homem do apartamento da frente ficava espiando a jovem pela janela. Um dia, se encontraram no hall. Ele, engenheiro eletrônico envolvido com o cinema, era 20 anos mais velho, viúvo e pai de uma adolescente. Encantado, ele pediu a moça em casamento. No mesmo mês, oficializaram a união. Nos jornais, em destaque, “amor a toda velocidade”, dava título ao anúncio da cerimônia. A ruim relação com a enteada, no entanto, fez com que o marido, quatro meses depois da festa, chamasse a esposa de bastarda. “Ali meu casamento acabou. Mesmo assim fiquei com ele por mais 37 anos”, diz ela, Helena novamente, mãe de Zoraia, Arimar Júnior e Marcelo. E a senhora o amou? “Nem pensar. Nunca amei”, responde, segura. Na década de 1970, a família saiu do Rio de Janeiro rumo a Teresópolis. Em 1980, mudaram-se para Juiz de Fora, para a Rua Mamoré, em São Mateus, onde viveram por cinco anos. A partir de então, foram morar no Bairro Laranjeiras, Zona Sul, onde ela mantém sua casa repleta de quadros, pintados pelo exímio retratista Marcelo, o único filho com quem divide o lar. Helena sofreu com os vícios de um filho, o relacionamento abusivo com o marido e uma infecção persistente por 17 anos sem o devido diagnóstico. Chorou noite e dia, mas nunca encerrou a Maristela, cujas fotografias, faixas de miss e adereços conheceram as tesouras e fogueiras do marido ciumento. Aos 78, após anos debilitado, vitimado por sete isquemias, o homem se foi. “A vida virou uma maravilha. Antes eu não podia fazer nada. Fora que cuidava dele no hospital, da casa com os cachorros e reformava mesas de bar para comprar uma piscina de acrílico”, ri ela, uma senhora vaidosa e agitada, cujo único sonho é conhecer a Capadócia da novela “Salve Jorge”. Além, é claro, de voltar a enxergar perfeitamente, o que pode acontecer a partir deste mês, quando, segundo a Prefeitura, as injeções serão disponibilizadas. Ela, assim, voltará a se olhar no espelho. E a sorrir. “Na minha cabeça, não me vejo com a idade que tenho. Sou Maristela.”

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