Para retratar Ouro Preto, basta abrir as janelas de casa e Carlos Bracher encontra seu “modelo vivo”. Para pintar “Retábulo do altar-mor da Igreja de São Francisco”, o artista adentrou a famosa igreja, um dos primeiros bens tombados, em 1938, na cidade considerada Patrimônio Histórico da Humanidade. Para descrever Ouro Preto, bastou a Murilo Mendes acessar suas porções mais íntimas. Estava lá o barroco do poeta, que, como o barroco do pintor, surge em volume e tintas fortes. “Solta, suspensa no espaço,/ Clara vitória da forma/ E de humana geometria/ Inventando um molde abstrato;/ Ao mesmo tempo, segura,/ Recriada na razão,/ Em número, peso, medida;/ Balanço de reta e curva,/ Levanta a alma, ligeira”, descreve Murilo Mendes em um dos 17 poemas de seu último livro escrito em solo brasileiro antes de partir para a Europa, em 1952.
“Símbolo de nacionalidade e amotinação, terra de ‘Marília de Dirceu’, com seus altares, muros, musgos, perpétuas e tintas, mistério e ‘batizado’, arrebatou o poeta Murilo Mendes que, sob o baldaquim poético, escreve entre 1949 e 1950, ‘Contemplação de Ouro Preto’ (1954), suíte barroca, um colóquio soturno e fatídico, decorrente da experiência real e de pessoal imaginação, cujo entusiasmo ocorre no rastro do alento modernista firme na restauração do passado nacional, resguardada em diversos textos notáveis, a exemplo, o segmento dedicado às cidades históricas por Carlos Drummond de Andrade no livro ‘Claro enigma’ (1951)”, apresenta, em texto para a mostra homônima, em cartaz no Museu de Arte Murilo Mendes, o curador José Alberto Pinho Neves.
Título que prenuncia o interesse geográfico e histórico-cultural presente em “Tempo espanhol” (1955-1958), “Janelas verdes” (1970), “A idade do serrote” (1965-1966) e “Convergência” (1963-1966), o livro sobre a cidade histórica de Aleijadinho surge numa exposição milimetricamente bem cuidada, como se estivesse ilustrado por artistas que o escritor não teve tempo de conhecer. No terceiro andar do museu que leva seu nome, com as paredes num roxo utilizado pela igreja no período da Quaresma, o canto de Verônica ressoa pela sala dizendo de um lugar que é, sobretudo, cenário da fé, do dourado exuberante dos altares à simplicidade dos tecidos que formam as cruzes penduradas nas portas.
“Oh vós todos /Que passais pela via,/ Vinde e vede: Se há dor semelhante à minha! /Atentai, povos do mundo,/ E vede a minha dor”, canta a mulher que limpou o rosto de Jesus durante a Via Crucis e, na exposição, surge representada por uma atriz em vídeo sobre a “Paixão de Cristo” e, ainda, em pinturas feitas ao longo da história da arte, na Idade Média, no Renascimento, no Maneirismo e contemporaneamente. O eixo final da mostra reserva, também, o sudário com a face de Jesus pertencente à Arquidiocese de Juiz de Fora.
“A poesia do Murilo Mendes, os próprios pesquisadores dizem isso, tem, uma construção literária diferenciada nesse livro. É um texto muito rico em imagens. Ali há um marco para a atenção dele com as questões culturais. Ele retrata o barroco mineiro de uma forma muito distinta”, pontua Paulo Alvarez, responsável pela expografia do projeto. “Partimos da narrativa dele, das descrições da cidade, com suas pedras, ladeiras e casarios, depois seguimos para a religiosidade, para a arte popular e, então, concluímos com um pequeno panteão”, acrescenta o profissional, também um dos dez artistas a integrar a mostra.
Para Carlos Bracher, cuja participação se dá com telas pertencentes à serie “Aleijadinho” – nas quais sobressaem-se ricos contrastes entre claro e escuro, branco e tons quentes -, a exposição, com uma das mais impressionantes montagens dos últimos tempos na cidade, poderia figurar em quaisquer outros museus do país. “(Murilo Mendes) cruzou ares, guindou pedras e montes, subiu e desceu íngremes ladeiras perquirindo o verbo do que ali se ensejara em arte, substância e pensamento. Dessa peregrinação nasceu tal cantata telúrica espectral, com os olhos de sua delicadeza e a agudeza de sua alma inventiva, descerrando-se aos abismos da contemplação sinuosa, libertária e mística às terras mineiras”, elogia o pintor, referindo-se à obra muriliana.
A generosidade transposta para as paredes
Enquanto Ricardo Homem faz referência ao ouro, ponto de partida da cidade, em trabalho exposto na vitrine, Arlindo Daibert discute a luta que deu origem à fama do lugar. Acima de um desenho reproduzindo “Tiradentes supliciado”, de Pedro Américo, Daibert reúne uma sequência de pequenas fotografias de personalidades que também lutaram por um ideal país, como o militante Betinho e seu irmão Henfil, todos com o triângulo de Minas sobreposto sobre seus rostos. Tanto a Ouro Preto política quanto a Ouro Preto religiosa ressoam por todos os cantos, sejam os cantos-lugares, sejam os cantos-cantados.
Barbárie atualizada
“Portinari evidencia no painel ‘Tiradentes’ o sentimento de frustração, a imagem da nação destroçada e saturada de medo, sufocada pelo poder opressor, reclamante de justiça, liberdade e igualdade, outrora… agora e sempre”, apresenta o painel na entrada do museu, fazendo a ligação da exposição do primeiro pavimento – “Juiz de Fora na Verde” – à mostra no terceiro andar, sobre Ouro Preto. Encomendado por Francisco Inácio Peixoto, escritor integrante do Movimento Verde, a agigantada tela com mais de 17 metros de comprimento seria instalada no Colégio Estadual de Cataguases, mas, após protestos dos moradores locais, acabou sendo adquirida pelo governo paulista para compor a paisagem do Memorial da América Latina. Impactante, a obra revela Tiradentes como líder; Tiradentes, o supliciado; e Tiradentes e seus membros espalhados por postes da praça que leva seu nome. Imponente, a reprodução na fachada de um dos principais museus juiz-foranos atualiza a selvageria do período colonial e faz o confronto urgente entre a potência da arte diante da barbárie.
• CONTEMPLAÇÃO
DE OURO PRETO
Visitação de terça a sexta, das 9h às 18h, sábados e domingos e feriados, das 12h às 18h, no Museu de Arte Murilo Mendes (Rua Benjamin Constant 790 – Centro)