Até dos aeroportos fechados, atrasando os voos e, por consequência, as passagens de som Heloisa Marinho sente falta. Ainda que já estivesse acostumada com o home office, sua rotina de trabalho foi absolutamente afetada pela pandemia. E seu depois será completamente diferente de seu antes. Em busca de outros ares, com menos poluição sonora e ambiental, ela se mudou, durante a quarentena, para Juiz de Fora, de onde saiu há nove anos para trabalhar como produtora executiva do cantor e compositor Pedro Luís. Ao longo dos anos, também atuou com Nação Zumbi, Abayomy Afrobeat Orquestra e em outros projetos.
Pouco antes de a pandemia fechar os espaços culturais, Heloisa produzia a banda do Prêmio Shell de Teatro, cuja direção musical era de Pedro Luís. Passada a premiação em São Paulo, na semana que aconteceria a festa no Rio de Janeiro, no Copacabana Palace, o evento foi transferido para o formato virtual e o show transformou-se numa gravação. A partir de então, a internet adentraria todos os seus processos. E segundo ela, em definitivo. Na série de lives “Esse trem de produção”, que começa nesta terça, 4, às 20h, na conta do Instagram do Uthopia, Heloisa Marinho sugere alguns dos caminhos que se apresentarão no futuro e partilha seu passado.
Com o projeto, ela espera incentivar os produtores locais a se capacitarem e compartilhar conhecimento com bandas que se autoproduzem, além de compreender o cenário na cidade para um possível retorno. “Quero entender como essas bandas e esses artistas vivem com a experiência de não ter um produtor”, diz ela, que atualmente cuida de todas as atuações de Pedro Luís, da produção autoral às direções musicais e os projetos de eventos, como o Festival Toca – Toda Canção. “Saí de Juiz de Fora porque não tinha perspectivas financeiras. Tinha muitas perspectivas artísticas, milhares de bandas incríveis, nas quais acreditava muito, mas não enxerguei viabilidade financeira”, recorda-se em entrevista por telefone à Tribuna.
Na primeira live, Heloisa vai abordar os tipos de produtores e conversar com Magrão, diretor de palco com quem trabalhou há dez anos no Cultural Bar e hoje atua em grandes eventos de São Paulo, como a Virada Cultural, e com o pernambucano Yuri Queiroga, explicando o que é um produtor musical. Nas próximas lives, a produtora abordará especificidades de sua área, como logística e cronograma, matando as saudades da vida a toda velocidade que levava e espera reencontrar em breve.
O que é fundamental no ofício do produtor?
O produtor deve ser uma pessoa organizada e um mediador, porque estará sempre fazendo interlocuções, entre o artista e a equipe, entre artista e patrocinadores, entre equipes internas e externas.
Em que momento estamos no setor da música? Qual é o cenário hoje?
Senti uma grande desaceleração em março e início de abril. Até porque o setor todo estava incerto, tentando entender o que fazer e como fazer. Foi uma pausa. E de abril em diante, pelo menos para a música, começou o boom das lives. Meu trabalho começou a ficar alucinante. Eu tinha milhares de pedidos de participação do Pedro (Luis) em lives muito diversas. Como ele é muito articulado com outras áreas, sempre estivemos envolvidos em projetos de terceiros. Isso me trouxe muita bagagem e me fez conhecer a forma de produzir. No meio de abril, começamos a pensar num planejamento de ações dele, como uma série de lives com cantoras que gravaram canções compostas por ele. Meu trabalho se intensificou. Não eram shows, não tinha uma grande equipe. Agora, interajo com muitos projetos, mas todos com poucas pessoas. Vejo que algumas que já tinham projetos engatilhados para realizarem este ano começaram a adaptar para o ambiente digital ou adiaram para o próximo ano. Participei de muitas reuniões de reformulações.
O que deu para a aprender com a pandemia?
Acho que é o momento de enxergarmos o valor das pequenas produções. Isso em relação ao tamanho, à quantidade de equipe, às megaproduções, e em relação a sair dos grandes centros para produzir em cidades menores. Acho que foi o momento de a gente rever as necessidades megalomaníacas do setor. Valorizo e acho superimportante que exista Rock in Rio, Lolapalooza e tudo o mais, mas nesse momento de pandemia começamos a vislumbrar que também é importante o show para 150 pessoas. Como em todos os setores, na música também acontece uma concentração de renda e recursos. Essa pandemia serviu para percebermos que aquela concentração que aplicávamos em alguns projetos pode virar um aporte menor em muitos projetos.
“Valorizo e acho superimportante que exista Rock in Rio, Lolapalooza e tudo o mais, mas nesse momento de pandemia começamos a vislumbrar que também é importante o show para 150 pessoas”, Heloisa Marinho
Esse modelo é viável e pode ser uma resposta para as dificuldades futuras?
Passa pela sustentabilidade em relação à natureza e pela ideia de que a cultura brasileira representa em torno de 2,6% do PIB. É um montante grande. A partir do momento que descentralizamos, com recursos distribuídos nas pequenas produções, formamos profissionais economicamente ativos, o que é difícil na cultura. Assim, a gente tanto fortalece a identidade cultural brasileira, que é muito rica e vasta, como fortalece o mercado, já que uma banda pequena conseguirá contratar um diretor para seu clipe, um técnico de som capacitado.
Durante a pandemia, vemos a desigualdade na cultura com os maiores investimentos para lives de artistas com maior público. É possível corrigir essa distorção?
É um trabalho de formiguinha e envolve a iniciativa pública, com editais e políticas públicas de cultura para conscientizar e dar suporte para que a iniciativa privada entenda que grandes artistas geram grande visibilidade, mas pequenos artistas podem gerar uma aproximação e identificação também de muito valor. O Bradesco patrocinar o Mimo Festival é incrível, mas as pessoas que vão e veem o banco como patrocinador acham ok. Já as pessoas que fazem cultura popular no interior do Pernambuco com aporte do Bradesco podem fazer com que toda a comunidade abra contas no banco. Sinto que a persuasão pela via da proximidade pode ser mais eficaz.
Qual será a realidade dos shows e projetos musicais a partir de agora?
Estou percebendo que estamos num momento de muita produção de conteúdo. Os artistas estão numa efervescência muito grande de ideias e projetos. No mundo acelerado que vivíamos não dava tempo de parar e ficar uma semana na roça compondo ou pensando no que ainda não tinha sido gravado. Esse tempo tivemos agora. Por conta da internet, a música está caminhando mais próxima ainda do audiovisual. Já era uma tendência que agora virou uma obrigação. Não é possível lançar só a canção, é preciso que uma imagem esteja atrelada à canção.
“Por conta da internet, a música está caminhando mais próxima ainda do audiovisual. Já era uma tendência que agora virou uma obrigação. Não é possível lançar só a canção, é preciso que uma imagem esteja atrelada à canção”, Heloisa Marinho
As lives ainda têm fôlego?
Às vezes, fico cansada de tanta live, tantas ações à distância, mas por outro lado vejo que é um grande momento de as bandas menores se projetarem para fora de seus mercados. Uma banda de Juiz de Fora neste momento talvez consiga alcançar toda a Zona da Mata mais rápido que antes, quando seria necessário fazer uma turnê pela região. Agora basta uma live.
Quando o artista puder encontrar o público a dinâmica de produção será muito diferente?
Obrigatoriamente e até por questões financeiras iremos começar a fazer produções com equipes menores. Mas ainda vamos enfrentar dois grandes problemas: será que o público vai ter grana para ir aos shows? E terá coragem? Se tivermos uma vacina imagino que poderemos voltar ao normal, mas acho que esse hábito de consumir cultura pela internet cada um em sua casa não acaba mais. Quando tivermos a possibilidade de retomar o presencial vou ficar muito feliz, mas acho que iremos enfrentar um bom período de eventos com menor proporção. Estávamos num caminho de ocupação dos espaços públicos. Agora estamos privados, dentro de casa, e tenho dúvidas sobre como vão voltar os eventos de rua, que são muito importantes, mas podem trazer muita gente, já que são menos “controláveis”. Isso é o mais difícil de vislumbrar no momento. Num teatro a gente tem o controle de não deixar as pessoas se sentarem uma ao lado da outra, um outro espaço, como o Circo Voador, pode trabalhar com a capacidade reduzida, mas os eventos no espaço público, não.
Esse trem de produção, nesta terça, 4, às 20h, no Instagram do Uthopia