Um lugar quase mítico. O submundo ao redor. “Floriano parte baixa”, mais novo trabalho do diretor Rodrigo Portella, que tem estreia marcada para esta sexta-feira, seguiu o curso contrário. Primeiro, encontrou seu espaço, um pequeno galpão aberto na Rua Floriano Peixoto. A partir dele, ganhou suas histórias. “Quando vim para a inauguração deste lugar, me dei conta de que aqui tinha uma possibilidade de relação entre espectador e ator que está me interessando muito no momento. Pensando no título da peça, onde ela ia se passar, fomos construindo as narrativas. A própria concepção do espaço cultural O Andar de Baixo está muito ligada a essa ideia de um local que é meio uma lenda na história da cidade. Há toda uma contradição que existe entre a parte alta, com seus prédios, e a baixa, residencial durante o dia, mas que, à noite, torna-se um ambiente de prostituição”, comenta o diretor de “Uma história oficial” e “Antes da chuva”, trabalhos que lhe renderam duas indicações ao prêmio Shell 2013, além do recém-apresentado aqui na cidade, “Quase nada é verdade”.
Na porta de entrada, beirando a rua, uma placa anuncia que ali, no último andar, tem uma igreja. Em O Andar de Baixo, Rodrigo Portella trabalha nos preparativos do espetáculo. Não há um único cenário. Aponta aqui, acolá, para a cozinha e para o banheiro, para mostrar onde se passam as cinco tramas, que se desenrolam de maneira independente. Um e outro personagem transitam livremente entre elas.
Julia engravida para dar um filho a Reinaldo, seu amor de infância. Este, por sua vez, vai se casar com Jean, seu companheiro. Jean é presenteado com um tênis novo e caro depois de ir para a cama com Bernardo, um deputado às vésperas das eleições. Mas o filho de Bernardo é acusado de estupro pela filha do pastor Daniel ao sair de uma boate. O pastor visita o lugar e conhece Leila, uma garota de programa. Leila sonha em ir para Miami fazer um filme com Carlos. Mas Carlos prefere Brenda, uma travesti que namora Junior, um viciado ciumento e apaixonado. Junior viu seu pai cometer suicídio e a mãe se envolver com três caras ao mesmo tempo. Um deles, um jovem bombeiro casado precocemente com a adolescente Gisele. Ao se separar do bombeiro, Gisele vai morar com a irmã e conhece a namorada dela: Flaví, uma francesa que interpreta canções de amor na boate da Floriano às madrugadas.
“O espectador vai vendo fragmentos dessas cinco histórias quase que ao mesmo tempo e vai construindo uma narrativa na cabeça dele. Elas são um misto de um olhar para esse lugar. O próprio lugar aponta caminhos dentro da narrativa”, explica o diretor. “O espaço é muito mais inspiração do que cenário. Pode ser qualquer mesa, pode ser qualquer cadeira, qualquer sofá. Esses objetos não foram concebidos para a peça, não têm necessidade de estar aqui, eles já existiam. Isso é algo de que gosto muito porque é um desafio. Em vez de você construir toda uma estrutura cênica para um texto, é interessante pensar na construção de um texto para a arquitetura cênica.”
Convidado a ver de perto
Ainda que a intenção seja convidar a plateia a ver o espetáculo de perto, nem de longe está nos planos intimá-la à interação, e o desenrolar dos acontecimentos pode ser visto de qualquer ângulo. “Tenho pavor de obrigar as pessoas à interatividade. Também tenho uma preocupação grande com a autonomia do espectador, não gosto dessa estrutura de teatro em que o público senta na cadeira, de frente para o palco italiano e não tem opção nenhuma, tem que ver a peça toda de um mesmo lugar, não pode escolher o que quer ver. Se em lugar estiver rolando uma cena e o espectador não quiser ir lá, não vai”, garante Portella.
Assim como em “Alice mandou um beijo”, montagem em que se baseou em seus próprios dramas, e em outras produções, com “Floriano parte baixa”, Portella faz o que mais gosta, falar da vida real, de onde os 23 atores, alunos do curso em que ele ministra na Casa de Cultura, tiraram inspiração para o texto, criado com colaboração dramatúrgica de Rafael Coutinho. “O elenco é formado, em sua maioria, por atores que já estão no mercado há muito tempo, como José Eduardo Arcuri e Marcus Amaral. Muitos vêm em busca de uma reciclagem, outros querem se aprofundar um pouco mais. No meio do processo do curso, a gente fez umas experiências em que os atores falaram sobre traumas da vida deles. São várias referências que estão interligadas à realidade.”
Sobre a trilha sonora, que passa inclusive pelo tecnobrega, Portella diz que ela acompanha toda a identidade visual da produção, gestada a partir de colagens de elementos distintos. “A unidade está exatamente nessa mescla de referências.”
De onde saem as referências mais ricas
Portella é um diretor que vai ganhando aplausos do grande centro, mas que tem os olhos voltados para o interior. Contabiliza a direção de 23 espetáculos, ultrapassou a casa dos 150 prêmios em festivais de teatro no Brasil e no exterior, acabou de voltar do Chile, na última terça, ministrou um workshop, estreia na sexta-feira “Floriano parte baixa” e está prestes a reestrear dois trabalhos no Rio. “Tem que ser assim. Como é que se vive de teatro nesse país? É pouco o que você ganha em cada produção, então tem que trabalhar muito para conseguir ter uma vida confortável”, dispara ele, natural de Três Rios, cidade em que fundou a Cia. Cortejo e de onde sai para alcançar outros públicos.
“Acho que a gente tem uma carência muito grande no interior. Os artistas vão embora, e essa é uma realidade muito triste. Há pessoas talentosas que, quando começam a encontrar um caminho artístico que seja mais sólido, vão para o Rio ou São Paulo. Acho importante que haja uma troca, que a gente vá e que retorne. As pessoas daqui precisam também de arte, de teatro bom. O que me instiga também é que o interior tem uma possibilidade de aprofundamento que, às vezes, em grandes centros não têm, porque a vida é muito corrida. Leva-se muito tempo para fazer tudo, tem pouco espaço, a concorrência é grande e você acaba ficando limitado. Em terceiro lugar, é no interior que eu tiro as referências mais ricas”, afirma Portella.
Por que as constantes voltas a Juiz de Fora? “O público daqui tem visto meus trabalhos e tem se sentido muito instigado por essas experiências de narrativas e espaços não convencionais. Fizemos uma apresentação pública que não tem narrativa, não tem nada. São experimentações. E vi pessoas muito impressionadas com algo que, na verdade, nem me pareceu que ia ser tanto. Existe um grupo de Juiz de Fora, que não é o grande público, muito interessado nestas experiências. Acho que o espetáculo vai contemplar muito estas pessoas. Além de tudo, é um espetáculo que tem boas histórias. São personagens muito profundos, que vão causar identificação. A gente trata de contradições, das questões que envolvem paixão, perda, sonho, sexo, aqueles pequenos crimes que todo mundo, de alguma maneira, comete. Fala de amor, principalmente.”
FLORIANO
PARTE BAIXA
De 5 a 14 de agosto, sextas e sábados, às 19h e 21h, e domingo, às 20h
O Andar de Baixo
(Rua Floriano Peixoto 37 2º Andar – Centro).