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120 anos de Pedro Nava: ‘Mistura de santo, sábio e artista’

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Em 5 de junho, quando completaria 120 anos de vida, a figura de Pedro Nava ainda parece envolta numa aura mística, enquanto continua atraindo jovens leitores (Foto: Reprodução)
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No poema “Pedro (o múltiplo) Nava”, Carlos Drummond de Andrade descreveu o amigo poeta como “mistura de santo, sábio e artista”. Hoje, os dois são estátuas na Rua Bahia, em Belo Horizonte, onde tanto se encontravam. O memorialista juiz-forano escreveu sobre o tempo em que viveu, dando detalhes sobre uma cidade mineira recém reconhecida como tal, e trazendo figuras reais que mais se parecem com personagens ficcionais. Também foi desenhista, caricaturista, pintor, ilustrador e médico reumatologista.  Seu poema “O Defunto” foi eleito por Pablo Neruda como o melhor escrito em português, e quando o chileno veio ao Brasil, logo quis conhecer o médico. O dia 5 de junho, quando completaria 120 anos de vida, nos mostra o quanto sua figura ainda parece envolta numa aura mística, enquanto continua atraindo jovens leitores. 

Ilma de Castro Barros e Salgado é professora aposentada da Faculdade de Letras da UFJF e se dedicou há cerca de 26 anos a pesquisar Pedro Nava. Primeiro, começou interessada pela genealogia feminina de sua família; mais tarde, já no doutorado, se debruçou sobre todas as expressões que ele trouxe ao mundo. Para ela, vale ser categórica: o autor é “enciclopédico”. Afirma que ele só pode ser descrito mesmo como um autor de “diversificado desempenho”, e que construiu um legado não só para Juiz de Fora, mas para o Brasil e para o mundo. “Ao resvalar sua literatura para a história de uma época, o memorialista faz da reminiscência sua oportunidade para a reflexão do tempo em diversos espaços geográficos”, diz. Não por acaso, seu primeiro livro de memórias, “Baú de Ossos” se volta para a cidade mineira em que nasceu, e toda a sequência que se inicia com ele chega a dar conta de 120  anos, recuperando inclusive as épocas em que ele ainda não era nascido, mas das quais se aproximou escutando tudo da boca de sua família. “Ele trata de 1840 a 1940, conta de ‘causos’ que escutava de sua família mineira, então fala desde seus ancestrais”, diz.

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Para ela, estudar o poeta foi entender do que falava Drummond, sobre essa multiplicidade. Foi ver reunidas ilustrações belíssimas para uma edição crítica de Macunaíma, e também contribuições importantes para o combate da febre amarela. “Passei a ver, através das memórias, o médico. (…) O Nava, através das suas memórias, relata fatos pessoais e sociais do passado, dando-lhes um tratamento histórico ficcional. O Antonio Candido falava: “As pessoas que aparecem no livro parecem personagens.” É uma escrita histórico-ficcional. Ele foi realmente único. São seis volumes completos com um olhar arguto”, diz. Ainda completa, conforme ele se enxergava: “O memorialista é o anfíbio de historiador e ficcionista.” Como explica André Botelho, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro que ficou responsável por organizar a obra de Nava para a Companhia das Letras, a importância dele para os movimentos culturais é bastante clara. “Pedro Nava faz parte de uma geração, a do modernismo mineiro, que recriou o memorialismo brasileiro. Penso em Drummond com Boitempo (1968) e Murilo Mendes com A idade do Serrote (1968), sobretudo. Mas a principal diferença entre esses experimentos narrativos é que Nava sempre olha com certa simpatia para os costumes que insistia em criticar acidamente”, explica. 

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Conforme continua, Botelho deixa claro que Nava é o narrador passional por excelência do memorialismo brasileiro, um “narrador cordial”, cujas preferências, amores e ódios formam o eixo do exercício em nada pretendido imparcial de recriar o passado. Sua força está antes na parcialidade que assume”. Por isso, explica que sua prosa é composta por movimentos tão contrastantes, apesar disso não significar que seja conflituoso. “Isso aprofunda a qualidade diferencialmente barroca do seu experimento, pois conflitos são harmonizados, arestas são arredondadas. Como em volutas barrocas da memória, esses são momentos em que a empatia do leitor com os pontos de vista desse narrador tão afeito à oralidade mineira é testada”, diz. 

O tempo e o esquecimento

Um dos grandes diferenciais do autor é, de acordo com Botelho, manejar diferentes temporalidades e acima de tudo mantê-las em tensão. “Isso dá um caráter aberto à narrativa que permite várias experiências, entre elas, uma espécie de anacronismo, que tem sido explorado até hoje, por exemplo, na auto-ficção”, explica. Para ele, ainda vale questionar se o autor sentiu um esforço de recuperação do passado. “Difícil responder. Mas é justamente este o espaço da liberdade da literatura em que Pedro Nava soube se mover tão bem, lutando, como memorialista, contra a morte e o esquecimento, para ao mesmo tempo esquecer e fazer esquecer, e não apenas lembrar. Esquecimento: esse segredo da memória”, reflete. Ilma reforça que o tempo e o espaço estão sempre conjugados em sua obra, que começou a ser escrita depois que se aposentou do serviço público. No primeiro volume, começa dizendo “Eu sou o pobre homem do Caminho Novo, das Minas, dos matos gerais…”

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Ademais, o acesso a um mundo perdido, de acordo com André, sempre traz um certo anacronismo, pois a busca do tempo “é realizada no presente (da escritura) e somente a partir dele”. Esse anacronismo, em sua visão, não hesita em suspender a narrativa para expor ao leitor essas espécies de engrenagens procedimentais e meta-narrativas imprescindíveis a toda a engenharia textual, por assim dizer, na recuperação e recriação do passado.

Para ler e para continuar

Em 13 de maio de 1984, com um tiro no ouvido, Pedro Nava tirou a própria vida. “Sem qualquer explicação, interrompeu sua representação médica, literária e pictórica”, como coloca Ilma. A obra continua, para todos aqueles que ficaram e que percorrem as ruas que ele percorreu, que seguem pelas cidades que ele seguiu ou que só imaginam esses lugares distantes através de suas palavras. É por isso que, para os jovens, André recomenda “começar pelo início”: “Baú de ossos”, quando o autor inicia suas memórias.

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Deixou, para a cidade que nasceu, muito mais. “Como estudiosa, fico encantada com a presença dele que ainda há na cidade, ainda mais neste aniversário de Juiz de Fora”. Em suas próprias palavras, deixadas ao Salvatore Madalena, da livraria Península, como Ilma repete, para os jovens: “A mensagem que mando para os moços de Juiz de Fora é de amor e confiança. O número de moços em nossa população mostra que o dia que o conjunto adquirir a consciência da sua força, inevitavelmente o poder será deles, que são maioria, que valem a pena. Pois, como disse Drummond, em um artigo há mais de 50 anos à época, a razão está sempre com a mocidade. Unam-se nas suas faculdades, unam suas faculdades, todas as faculdades do Brasil. Unam-se nos seus bancos, nas suas empresas, deem-se as mãos e existam para o nosso bem. Essa é a mensagem de um homem que nunca se esquece de que seu registro civil, seu umbigo e seu primeiro dente de leite ficaram em Juiz de Fora. Que essa cidade disponha do meu coração.”

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