Um bombeiro que se queima numa ação e precisa conviver com as marcas da deformidade, uma professora que abraça uma turma de imigrantes em Paris, um adolescente às voltas com a descoberta de que o pai não é realizado profissionalmente e o irmão não é o bom aluno que ele imaginava, uma militar e uma jornalista no conflito sírio do Curdistão, um policial corrupto que mente para a esposa e para a sociedade, uma viúva que se apaixona pelo amor da juventude, uma mulher confrontada com o abuso aos 8 anos, um crítico literário em sua tentativa de desmascarar uma autoria falsa, uma mãe sofrendo com o crescimento da filha adolescente, um professor que se mata e não abala um grupo de alunos e uma mulher abandonada pelo marido que se apaixona por um jovem numa rede social. Para completar o panorama tão atual quanto curioso da edição deste ano do Festival Varilux de Cinema Francês, o cultuado cineasta François Ozon retrata, em “Graças a Deus”, o drama de um homem que se reencontra, já adulto, com o padre que o abusou quando criança.
Baseado na história real que conduziu à condenação do cardeal francês Philippe Barbarin, por não denunciar as agressões sexuais cometidas pelo padre Bernard Preynat, o filme narra a saga de um homem que, junto de outras duas vítimas do sacerdote, cria um grupo de apoio e busca por justiça, enquanto a igreja tenta, a todo custo, silenciá-lo. Vencedor do Urso de Prata no Festival de Berlim de 2019, o mais recente trabalho de Ozon (de “O amante duplo”, “Jovem e bela” e “Potiche”) também sofreu uma tentativa de silenciamento. A produção teve sua estreia ameaçada após uma ação dos advogados do cardeal reivindicando que só fosse feito o lançamento de “Graças a Deus” após o fim do julgamento, que sequer foi marcado. Num retrato do mundo nos dias de hoje, a seleção da nova edição do festival que começa nesta quinta, 6, mostra o frescor de uma produção tão atenta quanto sensível.
“A seleção a cada ano tenta ser representativa de nossa cinematografia. Tentamos ser uma vitrine diversificada, com todos os gêneros: comédia, filme de época, drama, animação. Temática, não temos. Mas quem fixa temáticas são os diretores dos filmes. O cinema francês gosta muito de falar de temas socais, de atualidades. A cada ano tem um assunto que se destaca. Neste ano temos três filmes bem importantes sobre o abuso sexual, temática que tomou conta do ano passado e desse ano, na França e no mundo.Tinha muitos filmes sobre essa temática e escolhemos três, com abordagens totalmente diferentes”, pontua Emmanuelle Boudier, diretora e curadora, ao lado de Christian Boudier, do festival que ocupa três diferentes espaços em Juiz de Fora: O Cineminas, no Santa Cruz Shopping, o UCI Kinoplex, no Independência Shopping e o Sesc, na Avenida Rio Branco. A cidade, na edição passada, ficou entre os dez maiores públicos do festival.
Fazer rir pensando
No papel de uma mulher de 50 anos, Juliette Binoche é Claire, que após se ver num casamento fracassado, transforma-se em Clara, de 24 anos, um avatar numa rede social de relacionamentos. No ambiente virtual do filme “Quem você pensa que sou”, a mulher travestida de uma jovem apaixona-se por um rapaz, e o sentimento torna-se recíproco. Numa rede de mentiras, Claire coloca toda a sua vida em risco. Entre a comédia e o drama, o novo filme de Binoche apresenta a atriz madura, segura e, como sempre, sedutora. “Paixão imediata por esse drama que aborda com muita exatidão e requinte assuntos como o envelhecimento, o medo do abandono, a paixão amorosa, o domínio, a obsessão e o desejo de não cumprir as regras”, vaticinou o semanário francês “Le Journal du Dimanche”. “É um filme com um assunto muito atual”, confirma Emmanuelle Boudier, apontando uma ligeira diferença na seleção desta edição.
“Ano passado, tivemos um pouco mais de comédias leves. Este ano, temos uma comédia romântica, ‘Amor à segunda vista’, e outras com um pano de fundo mais social. ‘Boas intenções’ não deixa de ser comédia, mas trata de assunto da reinserção dos imigrantes na sociedade, tudo de maneira leve. O próprio ‘Inocência roubada’, que trata de abuso sexual, é feito de maneira bastante leve e não como um drama. A comédia pode ter muitas faces. ‘Meu bebê’ é uma comédia, como ‘O mistério de Henry Pick’ e ‘Finalmente livres’. É muito difícil engessar um gênero sem ficar no limite de outros. Temos que caracterizar um filme, mas digo que as fronteiras em nossa cinematografia sempre ficam mais indefinidas”, comenta a curadora. “O cinema francês, por ser muitas vezes um cinema autoral, de muitos primeiros filmes, revela o que acontece na sociedade. Não é só um cinema de diversão. É também para se divertir, mas mesmo nossas comédias sempre têm um pano de fundo da atualidade. Essa é uma característica de nossa cinematografia. Na curadoria fazemos questão de trazer filmes quer fazem refletir.”
Voltar ao passado para contar
Clássico dos quadrinhos franceses, Asterix, o gaulês mais famoso do mundo, retorna aos dias de hoje num gráfico moderno e com o humor afiado no filme “Asterix e o segredo da poção mágica”, animação que, assim como outros dois filmes dentre os 17 da seleção, não ganharão exibição no UCI Kinoplex, que conta apenas com uma sala e um horário (às 19h). Todos os filmes do Varilux serão exibidos no Santa Cruz, no entanto, em três faixas de horários (às 16h, às 18h30 e às 21h). Outro clássico, “Cyrano de Bergerac”, que marcou a cinematografia francesa com cinco indicações ao Oscar de 1991 (figurino, maquiagem, direção de arte, ator e filme estrangeiro), também só conta com exibições na sala do shopping no Centro.
Segundo a curadora Emmanuelle Boudier, o resgate se deve aos 30 anos que a produção completa no próximo ano. “Ele ganhou uma versão restaurada muito bonita e dialoga com outro filme da seleção, que é ‘Cyrano, meu amor’, do Alexis Michalik, que conta o momento em que o escritor criou a peça. É um filme histórico. Achamos bonito fazer os dois filmes dialogarem. Inclusive, tentamos programar nas salas um filme atrás do outro, para que os espectadores consigam vê-los em sequência. O novo é um filme bem emocionante. E o clássico é o primeiro filme francês feito em versos, respeitando o texto da peça. O desafio, na época, foi bem grande e só um ator do tamanho do Gérard Depardieu podia conseguir uma proeza dessa”, avalia Emmanuelle.
Vitrine da cinematografia francesa, o Festival Varilux traz produções que já possuem distribuição no Brasil. “O festival não é apenas uma mostra de filmes, mas um apoio à distribuição de filmes franceses no Brasil. O festival ajuda os distribuidores a lançar seus filmes, porque faz um evento, dá a visibilidade, e os distribuidores tentam todos lançar na sequência. Nem sempre eles conseguem, porque para mostrar um filme numa sala é preciso achar o momento certo e o lugar. Todos tentam colocar os filmes entre julho, agosto e setembro, até o final do ano. Sei que todos já começaram a se colocar, ainda que sem confirmações”, pontua a curadora e diretora, ressaltando que a influente Califórnia Filmes já comprou este ano ao menos dez produções francesas, dentre elas “Graças a Deus”, que estreia no país em 20 de junho, dia posterior ao encerramento do festival.
Para além de Deneuve, Depardieu e Binoche
Fundamental para a compreensão do cinema no mundo, a produção francesa manteve-se vanguardista com o passar das décadas, defende Emmanuelle Boudier. “Precisamente, a riqueza de nosso cinema, que produz quase 300 filmes por ano, é que ela é muito diversificada. É difícil caracterizá-la e generalizá-la, mas diria que as comédias, ao longo dos últimos quatro anos, estão cada vez melhores, mais inteligentes e benfeitas. ‘Amor à segunda vista’, por exemplo, é uma mistura de comédia francesa e norte-americana”, comenta a diretora e curadora, certa de que uma nova geração irrompe na cena, seguindo os passos de grandes atores e atrizes que se notabilizaram no globo, como Catherine Deneuve, Gerard Depardieu e Juliette Binoche, para citar apenas alguns.
“São perfis muito diversos, também. Posso citar o Swann Arlaud, que apesar de ser bem jovem ainda ganhou o prêmio de interpretação masculina no César do ano passado. Tem o Pierre Niney, que é o protagonista de ‘Através do fogo’ e tem uma cinematografia bem importante, no ano passado estava no filme ‘Promessa ao amanhecer’, que fez muito sucesso aqui. O próprio François Civil, que é o protagonista de ‘Amor à segunda vista’, está em outro filme de nossa seleção, ‘Quem você pensa que sou’. Entre as mulheres temos a Adèle Haenel, que está em ‘A revolução em Paris’ e ‘Finalmente livres’, uma jovem atriz que está fazendo muito sucesso na França e acabou de atuar num filme que foi premiado em Cannes. Tem, ainda, o Louis Garrel, cuja biografia não cabe numa página. Para o catálogo, deu muito trabalho fazer com que a biografia dele coubesse numa página. É impressionante ver os filmes que ele fez”, comenta Emmanuelle.
Bandeira hasteada há dez anos, o Festival Varilux comemora sua primeira década de vida ainda crescendo. Em relação ao primeiro ano, mais que triplicou o número de cidades participantes, quase dobrou o número de filmes e ampliou exponencialmente sua visibilidade. “O festival se consolidou com o público. Ele se tornou um evento que está na agenda cultural brasileira”, confirma sua diretora. “Já em relação ao financiamento do festival, cada ano é um ano novo. Nossa sorte é termos a fidelidade da Varilux, que é nosso patrocinador master, está com a gente todos os anos, mas não contribui com o financiamento integral do projeto, e a cada ano temos que achar novos parceiros. O futuro nunca é garantido. O projeto se beneficia de três leis de incentivo – a Lei Rouanet, a do ICMS e do ICS, que são em nível estadual e municipal. Se as leis permanecem em favor de eventos como o nosso, temos a chance de permanecer. Caso contrário, não saberemos como agir. Essa é sempre uma questão que nos preocupa de um ano para o outro. E esse, infelizmente, é o caso de muitos outros festivais, não somente o nosso”, lamenta Emmanuelle, certa de que, como a cinematografia, o festival francês também será capaz de se renovar para permanecer.
FESTIVAL VARILUX DE CINEMA FRANCÊS