“A ideia em si da minha arte é sempre confundir os outros, deixar o caminho torto, não dar respostas. Apostar na confusão, na verdade. Dá certo, mas dá errado. Isso tem muito a ver com o brega, porque é ser passional com a arte”, sentencia o intérprete Alfredo Braga, cuja idade é desconhecida, já que se autointitula imortal. Alfredo é a materialização da voz encarnada do amor. Ainda que assuma sem qualquer pudor a pecha de brega, o intérprete dispensa referências da música dita cafona, como Waldick Soriano, Reginaldo Rossi, Amado Batista, Wando ou Odair José. “O Deus-Sol não gira em torno de ninguém”, diz Alfredo, tão pretensioso quanto Agnaldo Timóteo. Antes da pandemia, poderia ser encontrado de calça de linho e colete cinzas, além de camisa azul, colado em um freezer de qualquer boteco da região.
Alfredo, na verdade, é uma sátira de músicos, intérpretes, maestros e público criada por Fred Fonseca, 35 anos, seu produtor, para dar vazão ao próprio sofrimento, por vezes de forma ácida, até cruel. “O Alfredo Braga surge a partir de uma vontade de externar uma série de coisas, como ser cantor, cantar brega, trabalhar o sofrimento que transborda a vida. O Alfredo é a materialização da morte de um amigo também músico (Serjão Oliveira). À época, ainda havia acabado de me separar, então estava sofrendo. O problema não é sofrer, mas, sim, não assumir que sofre. Então, assumi da melhor forma que poderia fazer”, admite Fred, não Alfredo. Havia entre Fred e Serjão uma indignação em ser artista, “fazer do lixo um luxo”.
Não foi difícil para Fred optar pela alcunha Alfredo Braga, já que Alfredo Braga da Cunha Júnior é o próprio nome de batismo _ “muito sério”. De acordo com o músico, quando interpretava Alfredo, já acordava Alfredo. Buscava passar horas falando e gesticulando como o intérprete brega para incorporar os trejeitos. Entretanto, Fred já passou por maus bocados ao interpretá-lo. “Algumas pessoas não entendiam que era um personagem. Certa vez, cantei em um lugar com cinco senhoras, que adoraram. Foi um show delicioso. Nem fiz piada, foi sério. Uma delas achou que eu era de fato Alfredo Braga. Quando descobriu que se tratava de um personagem, ela ficou decepcionadíssima”, detalha.
Embora um personagem, Alfredo reivindica uma estética caricata, explicitada não apenas nas vestimentas, mas também no tom melodramático das canções. “O brega está no fiapo solto da blusa, no fio de cabelo no paletó, na remela de canto de olho, no dente que falta etc. É uma pessoa incompleta, não só pelo amor, mas em si mesma. Quem está mal trajado, está incompleto, não está colocado na sociedade. É um problema porque tem um problema.” Alfredo Braga simplesmente canta, “finge tanta dor que deveras sente”. Apenas interpreta, ainda que Fred pretenda lhe ceder algumas composições. O repertório de alguns shows, inclusive, é a tradução literal de canções internacionais como “All by myself”, interpretada por Celine Dion, e “Creep”, Radiohead, sempre para poucas pessoas. “O ruim não é ser brega. É sofrer sem saber que é.”
Uma pessoa séria, mas não sisuda
Alfredo Braga é o único intérprete a assumir a pecha de brega em Juiz de Fora. A construção satírica de Fred Fonseca remete a artistas caricatos vinculados à nomenclatura, como Reginaldo Rossi – o “Rei do Brega” -, Agnaldo Timóteo – a “Voz Romântica do Brasil” – e Falcão. Mas o brega do músico Olivêra, 34, outrora Marcos Sandália & Meia, é outro, um démodé futurista, como o próprio brinca. “Tento pegar algo antiquado, fora de moda, e pontuar bem no nosso tempo e espaço. Olhar para trás para o que temos carinho, do que não conseguimos nos desvincular, mas ter clareza de que já foi. Temos que bagunçar aquilo e apresentar algo novo”, define o intérprete e compositor natural de Ipatinga. “Não é uma negação do brega. Estou me localizando quão brega e qual tipo de brega sou.”
Embora formado em Comunicação pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), Olivêra viveu em Juiz de Fora após a graduação, onde se colocou à prova enquanto músico no Encontro de Compositores. “Acabei me desenvolvendo como compositor, amadureci e ganhei mais confiança para seguir a carreira autoral, me assumir enquanto compositor e até deixar de lado o cover, que era algo que já havia ficado muito claro que não era o que queria.” De Juiz de Fora foi para Belo Horizonte, onde finalmente se enveredou pelo brega romântico. Afinal, desde sempre teve uma relação estreita com a música romântica de Reginaldo Rossi, Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Elymar Santos. “O brega não foi apenas para atender a um aspecto afetivo e musical, porque já tinha composições nesta pegada, mas também para atender a um interesse mercadológico. Identifiquei uma lacuna para não ser apenas mais um.”
Há cinco anos, Olivêra trabalhava algumas músicas, “muito ligadas ao samba”, mas o trabalho estava emperrado. Diante da ânsia em se lançar a partir de um álbum, o músico, atrás de um material de qualidade e identidade forte, rememorou baladas autorais, “mais fáceis de serem produzidas com uma estrutura menor”, ao contrário dos sambas. “Quando comecei o trabalho autoral, adotei Marcos Sandália & Meia. O meu nome é Marcos Antonio de Oliveira Santos, muito comum, então achei que não teria peso algum. Brinco que sou um belo cara-de-pau, porque tinha que arranjar um jeito de aparecer. Eu tinha um blog onde escrevia sobre música que se chamava Sandália & Meia. Então, um artista daqui certa vez me viu e disse: ‘Olha o Marcos Sandália & Meia.’ Matei: ‘Se o Sandália & Meia é algo forte o suficiente para as pessoas associarem a mim, vou usar isso como um nome artístico.”
Falando uma coisa e dizendo outra
No início, Sandália & Meia ainda atendia musicalmente à estética brega das baladas românticas, já que as músicas ainda tinham tom debochado, cômico. No entanto, mais tarde, Olivêra percebeu que a alcunha lhe engessava em uma espécie de personagem, caricatura, como o Alfredo Braga. “Pessoalmente, já estava me sentindo muito amarrado ao tentar corresponder a um tipo de comportamento, que, para mim, era limitante. Me considero uma pessoa eloquente, mas que não precisa ser um personagem. Queria ter liberdade para que, em um dia em que não estivesse bem-humorado, fizesse colocações mais contundentes. Profissionalmente, acho que é uma forma de ser visto com maior credibilidade e de uma forma mais perene, em uma carreira mais longa.” Como os personagens de David Bowie, Sandália & Meia talvez seja apenas uma fase de Marcos.
O maior cuidado que toma Olivêra é evitar se tornar uma caricatura, confessa. “Em todo o meu trabalho, nunca quis soar algo que não fosse verdadeiro, que fosse como uma moda, que simplesmente pego algo e reproduzo porque sei que as pessoas têm uma memória afetiva”, pondera. “Tenho o compromisso constante de o meu som ser contemporâneo.” Inclusive, as composições autorais, acrescenta Olivêra, fogem um pouco do tom à flor da pele de artistas bregas clássicos, apesar dos arranjos e das instrumentações similares. “A letra, em si, mesmo falando sobre amor, é geralmente mais sobre aceitação, resignação, como ‘nossa, estou feliz com esse amor, mas pode dar errado’.” A única similaridade entre Alfredo e Olivêra é a predileção por algo confuso, incompleto. “Está sendo dito algo, mas parece que se está dizendo outra coisa.”
Guarda-chuva
“Há muitos bregas no Brasil”, aponta o músico, produtor musical e doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Rafael José Azevedo, autor da tese “Derivas do brega paraense: escutas em tempos e lugares múltiplos”. A história da música brega, conforme Azevedo, passa por vários gêneros e subgêneros, como o samba-canção, o iê-iê-iê, o rock new wave, o sertanejo e o pagode. A discussão em relação à tipificação do brega esbarra na ausência de lastro historiográfico, como têm o samba e a música caipira, e de algum fenômeno que desse conta ou que fosse a raiz do que é chamado de brega. “É muito complicado falar que é um gênero justamente neste sentido: há uma textualidade musical muito específica que definiria o que é o gênero música brega. Por outro lado, não me furto dessa generalização. De qualquer forma, está nos usos do dia a dia. Utiliza-se a expressão ‘isso aqui é brega’ para distinguir as músicas das demais.”
Assim como Azevedo, Dmitri Cerboncini Fernandes, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), entende o brega mais como um guarda-chuva de gêneros e subgêneros, que, inclusive, se contrapõe ao que é considerado de bom gosto dentro dos respectivos tipos. “Para compreendermos o conceito de brega, temos que entendê-lo em relação ao que não é, porque ele, em si, quer dizer nada. É um tipo de nomenclatura que durante muito tempo foi pejorativa quando a crítica musical queria definir algo que fosse de mau gosto, kitsch, com instrumentos musicais não muito usuais na tradição que veio a se estabelecer na MPB e letras muito melodramáticas. A conceituação pode estar inserida em qualquer gênero.” Embora alguns artistas bregas tenham sido marginalizados a princípio, os anos lhe deram certa glamourização após a identificação de determinados músicos com a estética.
Arrocha
O que é brega, por fim, é disputado em várias regiões do Brasil, conforme Azevedo. Cada localidade, por exemplo, tem características muito próprias. Questionado se haveria um ponto de convergência nos vários bregas, o músico aponta que se há a possibilidade de achar um denominador comum, trata-se da ligação das expressões do brega com as periferias. “O antropólogo Hermano Vianna, por exemplo, aponta que a música brega tem um lastro periférico muito grande. No Recife, há o bregafunk, mas antes já havia o brega romântico. Ambos são ligados à diversão da periferia. Podemos falar ainda do próprio arrocha, que emergiu no interior da Bahia. Em Belém, a sonoridade tem algo muito parecido com o acoxadinho. As músicas de Odair José, na década de 1970, eram conhecidas como de empregadas domésticas. A música brega tem a ver com o quarto dos fundo ou mesmo com as regiões periféricas, fora do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, não só no nível de consumo e em termos geográficos, mas de idealizações.”
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Dmitri, por sua vez, entende que há parâmetros um tanto quanto vagos que podem ser estabelecidos, como elementos musicais, mas, sobretudo, pertencimento social, entendido de maneira ampla, tanto da perspectiva dos artistas bregas quanto do público. “São vários fatores que vamos cercando e conseguindo determinar por esse viés social, alargado, porque a música, sobretudo a popular, tem muito essa demarcação, que é meio invisível, em que a fronteira entre o bom e o ruim está atavicamente ligada a fronteiras sociais. São reverberações do que as camadas sociais são.”
Onde está o brega?
Atualmente, emenda Dmitri, o brega ainda dialoga com vários gêneros e subgêneros, uma vez que a música popular se pulverizou. Para o professor, não há mais classificações rígidas como anteriormente, logo o brega escapa ao binômio bom-ruim ao qual era restrito entre as décadas de 1960 e 1970. Além disso, o glamour de artistas bregas de décadas passadas deu origem a correntes legitimadas por uma tradição já específica dentro da música, complementa. “Não é nada anormal vermos a Anitta gravando com Caetano Veloso, que grava com Joelma, que grava com fulano e assim por diante.” O brega se estabelecerá enquanto gênero musical quando houver uma cisão interna entre o bom e o ruim, projeta Dmitri.
Ainda que não saiba qual música brega poderia ser discutida hoje, Azevedo aponta que há artistas relacionados direta ou indiretamente à estética, como, por exemplo, Duda Beat, Jaloo, Barões da Pisadinha e Saia Rodada. “A música brega não é apenas uma. Não é apenas o sofrimento do cara que foi corneado ou uma música para expressar saudade ou alegria. O bregafunk, por exemplo, dialoga muito com o hedonismo e o gozo feminino”, atenta. “O brega é muitas coisas, e, enquanto persiste como adjetivo, é ainda mais complexo, porque não é apenas um tipo de música. Torna-se um qualificador, seja quem for que esteja fazendo. Pode ser um jornalista em uma crítica ou nós em uma conversa de bar tomando cerveja.”