Dormir e não acordar é normal. Desde que não seja uma cidade. Tão cega quanto surda, a urbe de “A cidade dorme” (Companhia das Letras, 128 páginas), conto que dá título ao mais novo livro de Luiz Ruffato, não desperta, diferentemente de Xuxa, do velho, do tenente, do Gaúcho e de Zegê, que abrem os olhos para viver sem serem vistos. Numa violência às raias do banal, aos personagens são permitidos o medo, o pânico, o susto, o abalo, a ansiedade e outros símbolos de uma humanidade que parece mesmo só existir na literatura. As cidades dormem, desperta o livro. “O que tento fazer, em todos os meus livros, é tentar representar a realidade do Brasil. E as questões de violência e invisibilidade estão presentes em nossa sociedade como normalidade. Acho, inclusive, que o que vivemos hoje é a normalidade do anormal”, defende o escritor, que lança a obra, recém-chegada às prateleiras, nesta segunda-feira (5), às 19h, no Bar da Fábrica.
Como um corte seco, o conto-título representa um universo do qual Ruffato nunca se distanciou desde o lançamento de “Eles eram muitos cavalos” (2001), um dos mais aclamados escritos da literatura contemporânea brasileira: o homem comum. “Esse talvez seja o meu ‘Tour de Force’, o lugar onde acho que tenho algo a contribuir. Isso não significa que seja boa ou má literatura. Não posso dizer. Certamente, é onde posso dar minha contribuição, tentando trazer para as páginas o trabalhador. Não é o marginal, nem o burguês, nem o escritor – o que acho um porre, essa história de protagonista escritor -, ele é alguém que está na sociedade e não tem nada de romântico na vida, no sentido de glamour. O trabalhador é o personagem que me interessa”, pontua, por telefone, o cataguasense formado pela UFJF e radicado em São Paulo, percurso também percorrido pelas narrativas curtas do novo trabalho.
“Fiz uma trajetória de imigração, e boa parte da população também fez, de perda de identidades e raízes. Essa conversa sobre o desenraizamento é perene, porque no Brasil a grande questão que se põe é a da desterritorialização”, discute o autor do conto “As vantagens da morte” (leia abaixo), cujo narrador carrega consigo o peso de ocupar um não-lugar. “Esse livro tem histórias independentes, mas que trabalham com um conceito. Não foram publicadas cronologicamente, mas têm uma leitura espaço-temporal. Elas saem de um lugar específico, que é Cataguases, e caminham em direção à São Paulo e, depois, a um lugar indeterminado, num tempo específico, saindo da década de 1960 em direção ao século XXI, para terminar num tempo indeterminado”, comenta Ruffato, cronista do “El País”, onde redige textos de opinião marcadamente política.
Ainda que “A cidade dorme” observe o mundo com a generosidade do olhar para as sombras, não aponta caminhos. Não cabe à literatura, segundo Ruffato, servir de panfleto. “Existe um discurso político, que é muito importante, mas que está ancorado no presente, no momento. O discurso literário não quer estar ancorado no presente, aspira uma transcendência. Embora esses dois discursos existam numa só pessoa, eu, tenho claro, quando vou escrever, que uma mão escreve um discurso político, e a outra, um discurso literário. Mesmo que um esteja eivado do outro, são dois discursos e faço muita questão de diferenciá-los. Um tem um papel de ser além do tempo e espaço, o outro, de ser uma intervenção no tempo presente”, observa. “Entendo que a literatura é linguagem. Se você der a ela, de saída, um papel que não deve ter, político ou social, ela estará fadada ao fracasso. Se tiver esse papel de chegada, não é problema do escritor, mas do leitor. O escritor que parte da literatura querendo fazer discurso que não seja literário está fazendo outra coisa, não literatura”, argumenta.
‘Nunca acreditei nessa história de forma e conteúdo’
Cada um dos contos de “A cidade dorme”, publicados em revistas e livros estrangeiros entre 2001 e 2017, estabelece um diálogo, quase frontal, com os romances de Luiz Ruffato. “O primeiro, ‘Minha vida’, poderia, em tese, estar no ‘Inferno provisório’. O segundo, talvez, poderia estar no ‘De mim já nem se lembra’. ‘A cidade dorme’ poderia ser um ‘capítulo’ do ‘Eles eram muitos cavalos’. Eles, de alguma maneira, dialogam com cada momento da minha literatura, porque eu estava escrevendo esses textos ao longo desses mais de 15 anos”, afirma ele, contando sobre o exercício de reunir como um ato criador: “Em 2014, lancei ‘Flores artificiais’ e, depois, comecei a escrever um novo livro, mas sabia que iria demorar. É complexo, difícil escrever. Ficar fora do mercado não é bom, então, comecei a olhar minha gaveta e fui lembrando que havia vários contos publicados em diversos lugares e nunca foram reunidos. À medida em que fui levantando esses contos, fui me entusiasmando com a ideia de publicar um livro. Em 2016, com eles nas mãos, dei uma boa olhada em todos, fiz uma revisão não só estilística, mas também conteudística e propus à editora que lançássemos.”
Entre a engenharia precisa das palavras e a sensibilidade absoluta das metáforas, Ruffato cria no novo livro imagens tão potentes quanto perturbadoras. A água que limpa uma lanchonete, por exemplo, espraia-se pela calçada para, “num delta, encontrar-se novamente, desaguando na sarjeta, arrastando restos do dia”, descreve Ruffato em “O repositor”. Já em “A menina”, o protagonista vê as “pernas escurecerem, a vista fraquejar”. Não foram as vistas que escureceram, nem as pernas que fraquejaram, defende a escrita poética de um autor exigente com o leitor. “Não é algo que busco. A escrita para mim decorre de um trabalho bastante árduo, em que nas imagens vai nascendo junto do que está sendo dito. Por isso, nunca acreditei nessa história de forma e conteúdo. São exatamente a mesma coisa e estão vinculados um ao outro. Essas imagens nascem naturalmente.”
‘Em nenhum livro meu tem uma questão autobiográfica’
Afeito ao jogo no qual a leitura pode enredar o leitor, o autor inicia seu “A cidade dorme” com um conto no qual o protagonista, filho de um pipoqueiro, torna-se torneiro mecânico em Cataguases. No texto seguinte, o protagonista sai do interior para viver em São Paulo. Seria o escritor seu próprio personagem? “Em nenhum livro meu tem uma questão autobiográfica, embora em todos eles a questão da experiência pessoal esteja presente. ‘De mim já nem se lembra’, que muita gente acha que é o livro mais próximo de uma autobiografia, pelo incrível que pareça, talvez seja o mais distante deles, porque nada ali é real e concreto. Gosto muito dessa ideia de trabalhar nesse registro que está entre o falso depoimento pessoal e o depoimento objetivo. A história mais autobiográfica que tem em ‘A cidade dorme’ é a última, que é absolutamente fantástica. Ou seja, a autobiografia é muito relativa, porque pode ser um realismo fantástico”, sugere Ruffato.
Mesmo que submersa nas páginas, a verdade é questionada. “Para mim, literatura é essencialmente linguagem. Não abro mão disso. E ela busca, exatamente, a verdade. Não a verdade com ‘V’ maiúsculo e nem a verdade universal, mas a verdade do texto. E só se consegue uma relação mais próxima com a verdade do leitor quando há uma verdade no texto. Fico muito feliz quando as pessoas encontram verdades nos meus livros, que são verdades do texto e que as pessoas associam a uma verdade real e concreta. Brinco muito com esse aspecto de misturar elementos da minha vivência pessoal, ‘da minha verdade’, com uma verdade que está fora do texto, da literatura”, explica o escritor.
Talvez um dos mais inventivos autores de sua geração, Ruffato esgarça a literatura em todas as suas dimensões. Escreve seu próprio grande sertão. “Não acredito na ideia de evolução na literatura. Cada livro é uma experiência singular. No meu caso, isso talvez seja mais gritante, porque cada trabalho não repete o anterior. Tanto do ponto de vista temático, quanto do ponto de vista estilístico, formal. Existe uma voz que costura todos eles, mas poderia fazer uma digressão de cada romance, mostrando que dialoga com um subgênero da literatura, seja o da carta, seja o do romance-depoimento. E todos conversam entre si. O livro que escrevo agora, por exemplo, nasce de uma linha do ‘Inferno provisório’.”
Literatura é exercício de escrita, de escuta, de observação, e, sobretudo, de leitura. E de onde parte um autor de tantos caminhos? Num blog de aparência simples, Ruffato preserva, desde agosto de 2015, suas leituras. “Sou compulsivo. Leio, em média, quatro livros por mês. Nunca menos que três. Com o passar dos anos, envelhecendo, com o medo de perder a capacidade de lembrar dos livros que tinha lido, pensei numa maneira de registrar, de alguma forma, essas leituras. Não tem nenhuma pretensão que não a de ler e registrar se me agradou e se tem alguma curiosidade que gostaria que ficasse perene”, conta o criador da página Lendo os Clássicos (http://lendoosclassicosluizruffato.blogspot.com.br/). “Uma vez, conversando com uma namorada, ela sugeriu que escrevesse um blog. Eu não sabia de nada disso, como funcionava, nem tenho Facebook. Ela me explicou e me ajudou a fazer um blog onde não é possível comentar. Como tenho uma biblioteca bastante grande, quando termino um livro, busco outro para ler ou reler e falo, no blog, o que achei. Não escolho o que gosto, não são referências. Tem um monte que o conceito que dou é ‘não gostei’ e como leitor tenho esse direito. É um repositório de leitura que está sendo bacana, porque me impõe uma obrigação boa de exercitar o porquê de gostar ou não. Esse exercício crítico está sendo bem bacana.” Criticar é não deixar dormir, despertar.
A CIDADE DORME
Lançamento nesta segunda (5), às 19h, no Bar da Fábrica (Avenida Getúlio Vargas 200 – Centro)
Leia um conto de “A cidade dorme”
As vantagens da morte
Para José Santos
querendo nascer, o firmamento já tinha uma barra avermelhada, meu irmão falou, Bom, Tiquim, acho que já vou indo, é uma grande viagem de volta, pegou a bicicleta, recolheu o descanso, abraçamos novamente, e ele saiu janela afora. Aparece de vez em quando, ainda falei, mas acho que ele não chegou a ouvir.
(“A cidade dorme”, Luiz Ruffato, Companhia das Letras, 2018, páginas 15-19)