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Traços de hoje no terreiro de ontem

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Gerson Guedes costuma fazer cerca de dez esboços e fragmentos de uma cena, que servem de estudos para suas telas
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Nas muitas folhas de papel A4 que preserva em casa estão fragmentos do que desejou ver colorido. Nos quadros que Gerson Guedes vê se dispersarem por Juiz de Fora e pelo mundo foram compilados e redimensionados os desenhos que se iniciaram na observação e muito revelam sobre o artista de fatura reconhecidamente autoral. “Faço esboços no papel, a caneta. O erro é maravilhoso”, diz. E quantos esboços costuma fazer? “Uns dez, 15. Na verdade, desenho fragmentos de uma cena ou de um lugar onde estive”, explica ele, que acaba de guardar dezenas de estudos, com a certeza de que se trata de um legado tão potente quanto as próprias telas – a raiz de todas elas.

Para a série “Recortes urbanos”, que Gerson exibe no calendário 2018 da Tribuna de Minas e, no ano que vem, na exposição de inauguração do Teatro Paschoal Carlos Magno, seus desenhos registram cenas que atravessam os que cortam a cidade. “Às vezes fotografo ou desenho ao vivo quando percebo que são detalhes que nem a fotografia daria conta. Geralmente desenho quando não tem movimento, das 5h às 7h. O esboço acaba sendo um elemento fundamental do trabalho”, conta o professor aposentado do Colégio de Aplicação João XXIII, da UFJF, onde ministrou disciplinas de artes para diferentes gerações.

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A tela, colada ao chassi, primeiro recebe uma camada de resina, depois sofre raspagens, pequenas áreas de pintura dourada para ter a cor em alguns momentos do trabalho, e, mais tarde, surge o desenho agrupando os registros primitivos. A cor é o passo final. “Na tela desenho em questão de uma hora. Já para o quadro ficar pronto, levo uma semana, em média”, conta o artista, que utiliza em sua pintura tinta acrílica e água. A paleta colorida – uma ex-fôrma de gelo – faz inundar de cor as telas, sobretudo na recente série, sem ofuscar os traços, que remontam a própria trajetória pessoal do pintor.

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“Minha primeira profissão foi a de engraxar sapatos. E na caixinha de engraxate, quando não tinha cliente, eu ficava desenhando, o que já era um hábito que tinha na fazenda. Esse traço marcado veio, descobri há pouco tempo, do terreiro da fazenda. Eu molhava o chão para desenhar na terra. Meus primos achavam que eu tinha algum problema, mas era a brincadeira de que eu mais gostava. Esse traço trouxe até hoje e não consigo sair dele”, conta o homem nascido em Santo Antônio do Chiador, de onde saiu logo que atingiu o período escolar, regressando de tempos em tempos para visitar a mãe, ainda moradora da cidade a cerca de 80km de Juiz de Fora.

 

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A história da pintura e a pintura da história

Como a quebrar os ponteiros do relógio, Gerson Guedes fez, em sua carreira, um registro afetivo e, primordialmente, gráfico da cidade que o acolheu ainda menino. Retratou prédios históricos e endereços anônimos, tudo em nome de um passado. Como a reconstruir os ponteiros, o pintor faz, em “Recortes urbanos”, um registro contemporâneo da cidade que, sob sua ótica, até mesmo nas experiências mais desordenadas, como o tráfego de pessoas na Rua Halfeld, apresenta-se majestosa. “Para essa série, me impus o desafio de tirar a tornozeleira que me prende ao passado, tentando fazer a cidade que vejo hoje, não só na arquitetura, mas com as pessoas”, conta.

“Meus primeiros desenhos em papel são dos bondes, que só pararam de circular quando eu já tinha 12 anos. Me lembro de ser apaixonado por aquele movimento, o entra e sai de gente, o veículo sem portas, pobre e rico usavam. Naquela época, os grandes prédios começaram a ser construídos na cidade, como o Sulacap, que é da década de 1950. Peguei o final da Manchester Mineira, com suas fábricas, e o início de uma transformação, quando Juiz de Fora deixou de ser um centro econômico, produtivo e industrial para ser esse centro de serviços e comércio. Hoje é uma nova cidade acontecendo, com seus defeitos e belezas, com uma nova arquitetura que está aparecendo”, comenta Gerson.

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Para o artista, existe em cada rascunho o compromisso com a escrita de uma memória. “Sofremos muita influência da década de 1960, do modernismo das linhas retas, do Niemeyer, das derrubadas de tudo para fazer tudo novo, dos caixotes. Esquecemos, porém, de preservar a ‘Europa dos pobres’. Tínhamos tantos outros lugares onde poderíamos ter construído essa Juiz de Fora nova para preservar o antigo”, critica ele, que, na palestra “Juiz de Fora: Linhas e cores da história”, narra a trajetória local através das próprias telas, que ainda contribuem na narrativa em torno do pictórico juiz-forano.

“Os artistas que foram minhas referências, como o Dnar Rocha, o Silvio Aragão e o Renato Stehling, já se foram. De uma geração anterior à minha ainda tem o Carlos Bracher, mas que focou o trabalho dele em Ouro Preto. Os da minha geração que pintavam pararam no meio de caminho e foram procurar outras frentes. Hoje tem muito pouca gente que pinta na cidade. Não há uma renovação de pintores. E a pintura só amadurece com o tempo. Agora, aos 60, é que me sinto à vontade para pintar”, emociona-se Gerson, cujos pinceis e discursos sempre transitaram com desenvoltura entre duas escolas quase antagônicas – a Associação de Belas Artes Antônio Parreiras e a UFJF. “Meu trabalho tem muitas referências acadêmicas, e eu me realizo nele.”

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