Um campo calcinado é aquele que foi reduzido a cinzas ou a carvão – completamente destruído, esturricado, transformado em rastros. A partir dessa imagem, que é recorrente em sua nova obra, Iacyr Anderson Freitas faz uma montagem de poemas que escreveu ao longo dos últimos anos, buscando contar uma história através da perspectiva de um assombro em relação à vida que também se desfaz em sua frente. Ao completar 40 anos de carreira literária, já tendo sido vencedor do Concurso Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte, Prêmio Literário Nacional do PEN Clube do Brasil e finalista do Prêmio Jabuti, além de publicado em diversas línguas, o autor lança “Os campos calcinados”, semifinalista do Prêmio Oceanos, e faz um lançamento nesta terça-feira (3), a partir das 20h, no Bar da Fábrica, com a leitura de alguns de seus poemas ao lado de poetas convidados. A obra aborda desastres ambientais, conflitos políticos que nunca cessaram, a sensação de esquecimento e surge em versos com uma ironia fugaz que não se desculpa quando aparece.
Sua carreira começou, como explica, talvez por uma influência de seu avô. “Esse é um assunto que quanto mais eu penso, menos eu compreendo. Eu tinha a referência dele dentro de casa, que apesar de vir de uma família muito pobre e ferroviária, lia muito”, relembra. Junto com os bons professores que conta ter tido no ensino público, durante os anos 70, acredita que esse tenha sido o motivo que o fez começar a escrever. Mas, naquela época em que precisava escolher o vestibular, foi cursar Engenharia Mecânica na UFJF. “Eu fiz o vestibular pensando no mercado de trabalho, e acho que é muito distinto escrever e ser professor de literatura. Eu não pensava muito nessa hipótese, pensava em conseguir sobreviver em uma época que o Brasil passava por uma crise medonha por conta da ditadura militar”, diz. A paixão pela escrita, no entanto, nunca o deixou, e o seu primeiro livro foi publicado aos 17 anos – mas ele o excluiu de sua bibliografia e, hoje, acha essa obra muito ruim. Mesmo assim, desde o começo, percebe vários assuntos em comum. Para ele, “a literatura é sempre uma variação sobre poucos temas: o amor, a morte, o espanto e o assombro com a vida e essa relação estranha de eros e thanos”.
Dividida em partes bem distintas, a sua mais recente obra traz cinco divisões: “O cerol no ouvido”, “Menos café que cicuta”, “Perder um país”, “Este mínimo infinito: breviário” e “Limão Capeta”. A primeira parte faz uma brincadeira com o esquecimento. “São poemas que mergulham ironicamente em certos paradoxos metafísicos, remetem à minha formação em Exatas, que brinca com as incertezas da física quântica e da cosmologia, e usam isso pra fazer paralelos”, conta. Logo em seguida, aparecem poemas centrados na memória, em biografias ficcionais que marcaram o autor. “Já em ‘Perder um país’, que é a parte central do livro, há poemas de cunho social, e resgata, dessa forma, o meu primeiro livro, ‘Versos e palavras’. Já naquela época o autor não abria mão de certa ironia e certo humor macabro para abordar a situação política e social brasileira. São 40 anos, mas tem um resgate, um círculo bem no centro do livro, que remete ao começo da minha obra e a uma certa poesia de combate que, de uma forma ou de outra, nunca abandonei”, explica.
Conforme a obra segue, a próxima parte traz “um imenso tributo aos poemas de tom elegíaco”, e em muitos momentos essa parte flerta com discretas referências religiosas, mas sobre um pano de fundo de um mundo desencantado e sem Deus. “É estranho, porque resgata em tom elegíaco, mas o altar está vazio. O tom elegíaco se volta para essa tragédia que aconteceu aqui no Brasil e ganhou outras áreas com uma condução, ao meu ver, criminosa no decorrer do processo da administração da pandemia”, afirma. Na última parte, portanto, aparecem poemas “mais cáusticos”, e que também tocam nos lados “tragicômicos de situações históricas e até cotidianos”, e que se vinculam a uma poesia satírica brasileira. Todos esses temas, então, também retornam para a essência do que o autor acredita serem os temas inevitáveis: “Esse livro de 226 páginas, na verdade, traz quase 20 anos de poemas que não conseguiram entrar nos livros temáticos que eu publiquei. Nessa biblioteca de papel com tantas variações sobre o mesmo tema, então, quero que essa variação seja efetivamente uma variação, e não mais do mesmo. Mas quem deve decidir isso é o leitor”.
Processo de montagem
Muitos dos poemas escolhidos foram trabalhados durante 20 anos e publicados em traduções, fora do Brasil. O processo de decidir como o livro se tornaria este livro, então, foi abrindo sua gaveta e observando com cuidado o que tinha. Perceber os pontos em comum e a montagem de uma história foi a parte mais difícil para ele: “Quando você vai coletar textos na gaveta e você mesmo, que não é o melhor leitor da sua obra, tenta estruturar isso tentando intuir essas inclinações. Não é tarefa fácil. Eu tinha um livro grande em mãos, quando comecei, e tinha que separar os poemas que efetivamente tinham condição de entrar no livro e em que parte eles entrariam ou qual inaugurariam. Alguns ficaram de fora porque essas partes não existiam”.
Para ele, é sempre importante que um livro tenha uma estrutura ou uma história, mas esse processo foi o contrário do que fez em “Estação das Clínicas”, de 2016, em que o tema em comum era a internação hospitalar e as perdas que sofreu, assim como “Ar de arestas”, que fala também da perda em um longo poema. “Eu sou muito fixado em um livro ter uma estrutura ou uma história. Não queria que fosse uma coletânea. Fiquei um ano imprimindo, separando textos, rasgando textos. Alguns poemas mudaram de parte, porque têm relação com várias partes, e foram penetrando em diferentes momentos”, conta.
O poema em que vem o título do livro é justamente em homenagem ao psicólogo austríaco e judeu Viktor Frankl, autor de “Em busca do sentido”, em que este descreve a sua experiência dramática e a de sua família em quatro campos de concentração nazistas, durante a Segunda Guerra Mundial. No poema são citados os nomes daqueles campos de concentração, que funcionam aqui como uma metáfora. Para ele, no momento vivido, é importante lembrar de uma história maior que si mesmo: “Queria dizer: essa calcinação de agora tem um passado, tem uma história. E é por isso que falo do Viktor Frankl, que tem uma história muito triste e trágica, porque sentiu justamente como o mundo desabou no meio do século XX. Eles sentiram o inferno. Nós temos o direito e o dever de não repetir esses erros”, afirma. Para ele, a realidade atual traz uma sensação de que o grande poder econômico “brinca com fogo”, em um clima que cada vez mais se assemelha àquele que foi sendo fundado antes da Primeira Guerra Mundial, quando um tiro foi o estopim para um conflito que matou milhões de pessoas.
Os campos sempre calcinados
Apesar da expressão “os campos calcinados” aparecer em um dos poemas da obra, para ele, essa figura está presente em muitos momentos do livro. “No fundo, ‘Os campos calcinados’ tem a ver com tudo isso. O que a gente percebe da metafísica é que não há certeza sobre nada no que se refere à realidade, já que a física moderna questiona até mesmo a noção de tempo, que é algo que eu, enquanto newtoniano, formado lá na Idade Média, não consigo bem compreender como abolir”, ri. O mundo que não para, então, vai se tornando algo que é destruído também com o passar do tempo.
Para ele, no entanto, há uma outra calcinação que é trazida por um apagamento sistemático. “Existe uma calcinação absoluta no mundo físico que nós tínhamos até meados do século XIX. Há essa calcinação terrível, que é a da memória e do esquecimento, e também a nossa calcinação política, em um país assolado por uma ameaça fascista e de repente na mão de certos preceitos neopentecostais que têm sido utilizados muito mais para aleijar, pra perseguir e pra deixar de fora uma parte substancial da população, e que faz volta e meia aflorar o nosso racismo, homofobia, misoginia e violência”, afirma. Já em ‘Este mínimo infinito: breviário’, outra parte da obra, ele afirma que mostra “a prova completa da calcinação”, que são poemas religiosos “dentro de uma igreja vazia, sem ícones, sem santos, talvez sem fé”. Existe uma calcinação de natureza religiosa dentro disso. “E nada mostra mais a calcinação como o humor desvairado de Limão Capeta, porque esse humor ataca a realidade, os preceitos, certos padrões e valores. É uma calcinação que opta pelo caminho do humor”, conta.