Andar pela cidade e olhar para cima. Prédios de muitos andares em construção. Homens trabalhando. O mercado imobiliário aquecido: milagre econômico. Olhar para o chão e caminhar. Está lá um corpo estendido no chão. O cotidiano de cada trabalhador e o que existe antes de sair de casa, cada pausa na labuta, é um universo poético. É contação de história registrada por Chico Buarque em “Construção”, música que completa 50 anos de lançamento junto ao álbum de mesmo nome. Hoje, apesar de semelhanças contextuais, o sentido é outro. Ainda assim, ela extrapola limites de datas e situações e representa importância para a Música Popular Brasileira, para a política, a literatura, a história e a educação.
Na música, Chico Buarque, como um cronista, narra o dia de um trabalhador. Primeiro, ele sai de casa e se despede de sua mulher e seus filhos. Vai para o trabalho, onde atua como pedreiro, erguer as paredes. Descansa. Come arroz e feijão. Ele tropeça. Cai do prédio no passeio público. Objetivamente, é isso que Chico canta. Mas existe, também, a subjetividade, que dá o tom da canção.
Alexandre Faria é professor da Faculdade de Letras da UFJF, poeta, pesquisador da obra de Chico e amante das canções. Ele pontua que o valor da música reside exatamente na subjetividade que ele passa para o sujeito que cai da construção. A base da música se repete. O que altera de lugar são as proparoxítonas que são comutadas no final de cada frase. “Isso ressignifica o aspecto subjetivo. A objetividade é enorme. Mas o subjetivo é o que dá o tom. Os valores e os sentimentos são as palavras. A comutação vocabular amplia o significado da música, muda a percepção sensível da cena”.
A partir dessa ideia, percebe-se que o personagem, esse pedreiro, passa por momentos em diferentes pontos da música. Na primeira parte, ele vive os momentos como se fossem os últimos, valorizando pequenos gestos. Ainda assim, no trabalho, ele é uma máquina, ele trabalha como tal. Depois, come feijão e arroz como um príncipe, sentindo um prazer no ato. O prazer é cortado quando ele tropeça e cai. Nessa hora, Dudu Costa, professor de história, cantor e compositor, analisa que há uma “desumanização do trabalhador em meio à vida”, porque ele cai e, simplesmente, atrapalha o tráfego. “As pessoas que estão embaixo não se sensibilizam mais com a tragédia humana. Ele morre, atrapalha o trânsito, e ninguém liga, apenas assiste.”
Tipicamente brasileiro
Com o passar das estrofes, o ato repetitivo do pedreiro vai se tornando uma percepção raivosa, como se ele passasse a entender a dimensão de seu trabalho, que sempre acaba no cair de um prédio em construção. Na segunda parte, ele está nessa transição entre a “alienação” e a indignação. “A música ainda faz um entrecruzamento da vida popular e a história tipicamente brasileira”, comenta Dudu. Exemplo disso é o “e atravessou a rua com seu passo bêbado”. Existe, ainda hoje, o estigma do trabalhador que, no ócio, bebe. Isso é brasileiro e está presente em outras músicas, teatros e nas próprias famílias.
A mudança de voz é impactada no final. Ainda mais rápido, como se cortasse o ritmo porque sabe o que vai acontecer, Chico Buarque insere outra música do mesmo álbum: “Deus lhe pague”. De maneira irônica e engajada, esse corpo percebe que tem baixo valor e atribui os fatos aos responsáveis: os patrões. “A observação do cotidiano do trabalho, já que ‘Construção’ é um apelo à realidade, poderia ser neutra se não tivesse essa música. Está aí o posicionamento do poeta: ele está inconformado com a vida rotineira”, fala Alexandre. Que lembra, também, que é nesse momento que o personagem assume a primeira pessoa. A mudança de tom é real.
“Construção” é desconstrução
Dudu Costa percebe que “Construção” é uma desconstrução. “A música desconstrói o lugar do trabalhador urbano dentro da sociedade, que vive um aprofundamento das desigualdades sociais.” Ela foi escrita entre 1970 e 1971, no retorno de Chico Buarque da Itália para o Brasil, depois de um autoexílio pelos anos de repressão na ditadura militar. Nesse momento, Dudu explica que o Brasil ainda vivia interpelação brutal a movimentos sociais e a posicionamentos políticos. “Ele está interagindo com o momento histórico. Chico, que já tem inclinação a trazer temas políticos à arte, radicaliza sua estética com ‘Construção'”. O professor de história acredita que existe, com esse álbum, um desprendimento do “mar”, no sentido de que ele para de falar “do amor, do sorriso e da flor”, a bossa nova em si, e se engaja de maneira escancarada.
Por outro lado, Alexandre acredita que Chico já vinha apresentando essa inclinação. Em 1968, ele lembra que o músico lançou a peça “Roda viva”, fortemente política, que foi interrompida por pessoas que atacaram o elenco. Mas ele acredita, sim, que houve uma mudança. Antes, ele já fazia críticas, mas, agora, “seu protesto é sem concessão. Esse grito, inclusive, é unidade no álbum ‘Construção'”.
‘A vida desse sujeito é um sopro sem sentido’
Mas Alexandre alerta: “como canção, não podemos esquecer do canto e da melodia”. “Como um bom intelectual, o Chico consegue, de maneira sofisticada, articular tudo”, completa Dudu. A melodia parece simples. Os dois comentam a curiosidade de ela ser composta por apenas dois acordes. “São dois acordes com notas muito próximas, que criam um clima de angústia, e uma melodia que, por mais envolvente, é um pouco bêbada, ela não se desenvolve muito”, pontua Dudu. É o arranjo de Rogério Duprat, um dos nomes por trás do movimento da Tropicália, que acentua a dramaticidade da canção. Os sons tipicamente de construção são feitos com instrumentos. Uma orquestra, no final da música, preenche qualquer espaço até que entra o “Deus lhe pague” efervescente. “Chico Buarque se comunica com suporte musical. Existe um casamento entre música e melodia. Ele desenvolve um sentimento de sufocamento e de perda de voz que parece ser, exatamente, o que acontece com o personagem, que se perde. A vida desse sujeito é um sopro sem sentido”, analisa Dudu.
Chico Buarque, para criar essa melodia e até escrever a letra, usou recursos do samba, principalmente na observação da vida urbana. Mas Alexandre entende que, na verdade, houve uma ressignificação do samba. Nessa época, existia um movimento de buscar referências do morro ao sertão. Edu Lobo e Nara Leão, sobretudo no espetáculo “Opinião”, com Zé Kéti e João do Vale, também fizeram isso, com influência do Cinema Novo e da tradição literária de Graciliano Ramos, Jorge Amado, entre outros. Essa bagagem foi fundamental para a criação da percepção do trabalhador que o compositor mostrou em “Construção”.
Contação de história imortalizada
“Por todos esses elementos, pela simbiose que existe, ‘Construção’ é mágica. O Chico inventa mais que um universo poético, ele cria uma ficção. Ele é um contador de histórias. A música é um pouco ficção e um pouco crônica”, acredita Alexandre. Essa música ainda circula na cultura popular. Nos anos 70, o apelo era pela realidade daquele momento: ditadura militar e descaso com trabalhadores. Agora, exatamente por circular na cultura nacional de maneira unânime quando o assunto é cotidiano de trabalhador, constantemente ela é usada em vestibulares e provas das escolas, tanto nas de português (tem professores que a usam para ensinar o que é proparoxítona), quanto de história, servindo de apoio para entender o que era aquele momento. Para além disso, “a importância de ‘Construção’ está no fato de que ela recoloca Chico Buarque em relação a sua obra e, de certa forma, elabora uma conscientização sobre segurança do trabalho”, finaliza Alexandre.
Dudu reitera: “a riqueza da música é que ela se comunica individualmente. Eu me lembro do meu pai com ela. A gente parte de um lugar para analisar e entender como ela chega na gente. Existe uma abertura afetiva”. Agora, uma criança, ao ouvir ‘Construção’, percebe outros significados que são válidos. A música recebeu poucas versões com o passar do tempo porque recebeu um arranjo único que, praticamente, não pode ser copiado – nem por ele mesmo. Chico Buarque, como narrador do cotidiano, imortalizou a história de um homem de muitos rostos.
Construção
Chico Buarque
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado
Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e desgraça que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague