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Desenhar a dor

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Um esqueleto. Um rosto em músculos. Um corpo seccionado. Instrumentos cirúrgicos. Cortes e outras cisões que não fazem jorrar o sangue, não deixam transbordar as vísceras. No "Atlas of human anatomy and surgery" ("Atlas de anatomia humana e cirurgia"), elaborado pelo médico Jean Baptiste Bourgery (1797 – 1849) e pelo ilustrador Nicolas Henri Jacob (1782 – 1871), tudo é explicado, tudo é formal. O choque, inevitável, é consequência da crueza das técnicas médicas e da natureza do corpo humano. Professores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, e artistas experientes, Wanda Tofani e Eugenio Paccelli Horta partem das imagens fortes para elaborar um discurso de vida e morte através da arte. Em "Tomos – 2", exposição que após passar pela Galeria de Arte da Cemig, na capital mineira, desembarca amanhã, às 20h, no Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm), a poesia e o desenho são trabalhados em suas variadas potências.

Publicado originalmente no século XIX, em oito volumes, com mais de 700 pranchas produzidas em litografia – técnica de gravura que envolve a criação de desenhos sobre uma matriz, geralmente pedra calcária, com um lápis gorduroso -, o livro surpreende pelo apuro técnico das imagens. "De tão requintados que são esses desenhos, dá a impressão de que alguns corpos estão vivos", comenta Wanda. "Acho as imagens muito fortes. Elas retratam técnicas pesadas. Por isso, tenho uma relação ambígua com o livro. Ao mesmo tempo em que os desenhos são atraentes, são tão fortes que quase geram uma repulsa", completa Horta, que de aluno da parceira tornou-se colega de profissão. Hoje, Wanda está aposentada, e Horta leciona na universidade.

Ambos ministraram aulas de modelo vivo, no qual os estudantes são ensinados a representar graficamente a figura humana. "Tradicionalmente as escolas utilizavam livros de anatomia para estudar o desenho do corpo", afirma Wanda, apontando para uma das origens de tamanho encantamento pela obra oitocentista, que cada um adquiriu para si. "Encantei-me pelas cores, pelas linhas, pela organicidade dos desenhos de Jacob", diz Horta, que em seu trabalho busca representar a visceralidade das imagens, reunindo bordados e tecidos aos desenhos do atlas.

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Quando questionado sobre os motivos que o levaram a trabalhar com panos e não com o lápis, Eugênio Paccelli Horta é direto: "Desenhamos de outras maneiras. Nesses trabalhos, a linha, o pensamento básico do desenho, está presente. Não faria sentido acrescentar ao que Jacob fez. Queríamos, na verdade, dialogar". E a conversa de Horta se estabelece na espontaneidade do bordado, que recria imagens de rostos e palavras como "eterno", e no avesso do tecido, na surpresa que o ornamento de fios cria quando visto por outra ótica. Tanto nas ilustrações técnicas, quanto nos tecidos de Horta, o que se vê é a rudeza do interior, do contrário. "Fui experimentando os bordados e comecei a trabalhar imagens de forma espontânea. Percebi que as imagens bordadas tinham uma semelhança com as do livro, embora não tenham sido feitas uma para as outras."

Para a professora da Faculdade de Letras da UFMG Vera Casa Nova, os trabalhos de Horta sugerem que vida e morte se confundem. "Gesto de bordar. Gesto das mãos. Registro de estórias contadas e recontadas. Gesto que se assemelha ao gesto escritural. Escrever, desenhar, bordar. Mais inflexões das mãos. Pano-tela, pano-texto. Operações de deslocamento. O bordado também estampa a experiência do traço e tece outras estórias entre panos e linhas, permeando o dilaceramento do olhar", reflete Vera em texto do catálogo.

 

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Brincando sério

Quando criança, Wanda Tofani brincava com bonecas de papel, daquelas de trocar a roupa e tudo mais. Ao viajar para a Espanha, Eugênio Paccelli Horta lembrou-se da ex-professora e atual amiga, trazendo-lhe as saudosas bonecas e um Polichinelo, antigo personagem da commedia dell’arte, cujo fantoche se movimenta através de um cordão. Com a parceria para a exposição, Wanda resolveu inserir as figuras afetivas ao universo de secções e esqueletos que a fascinou. "O Polichinelo brinca com a ideia da morte", comenta, referindo às imagens em que o boneco se põe à frente de uma ossatura, se pendura diante de um crânio, ou, até mesmo, brinca de manipular pequenos fragmentos ósseos ou vísceras desenhadas no livro.

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Já a boneca, uma imagem de uma senhora oitocentista, cria diálogos com as figuras humanas. "Ela, de certa forma, pode ser minha porta voz", diz a artista, que dispõe frases em meio às colagens. Em um dos trabalhos, a boneca-senhora parece falar ao ouvido de um rosto seccionado. Mas, por ironia, sua fala se restringe a: "Troco silêncios". Em outra obra, imagens de bocas são observadas pela boneca com a inscrição "clamores". Mais um blefe, já que nas bocas estão palavras como "cicioso", ou seja, nada é dito aos berros como a imagem poderia sugerir. "É como se eu oferecesse uma possibilidade e logo a retirasse. É uma brincadeira, na qual ao mesmo tempo em que afirmo, nego, usando o termo contrário", explica. "A dimensão da finitude estampa-se. O que resta a nós, humanos, a não ser arrepios – frissons – em ofertas, trocas e toques, que a letra desenha, frisando a loucura do mundo", reflete Vera Casa Nova em apresentação da produção.

 

Impressas em papel, as colagens são fotografadas quando finalizadas. Segundo seus criadores, trata-se de uma "gravura digital", resultado de apropriações e de novos desenhos. "O homem se apropria o tempo todo. Temos uma história cultural que é importante resgatar, revisar e representar", pontua Eugênio Paccelli Horta, afirmando que originalidade está intimamente relacionada a retorno, a volta às origens. "É repensar o próprio passado." E esse retorno tem sido, nos dias atuais, uma das linguagens mais frequentes na arte contemporânea. "Somos desenhadores. E esse é um termo muito utilizado em Portugal, mas no Brasil pouco usamos. Essa ideia impregna essas imagens. Poderíamos ter usado desenhista, mas preferimos desenhar a dor", conclui, em poesia, Wanda Tofani.

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"TOMOS – 2"

Gravura digital de Wanda Tofani e Eugênio Pacelli Horta

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Abertura amanhã, às 20h. Vistação de terça a sexta, das 9h às 18h, sábados e domingos, das 13h às 18h. Até 13 de outubro

 

Mamm

(Rua Benjamin Constant 790)

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