Não fosse a força da interpretação, “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” se resumiria a tratado do improviso. Não fosse o poder da contextualização, a frase dita pelo cineasta Glauber Rocha na década de 1950 indicaria a popularização das câmeras justamente num tempo em que elas eram artigos de luxo. Não fosse a potência das metáforas, a ideia transmitida pelo Cinema Novo se limitaria a perceber a sétima arte como gesto impulsivo, desprovido de aperfeiçoamentos. Ledo engano, o próprio autor da máxima guardava em casa – num armário recheado de cartas, manuscritos e jornais – três distintas versões de seu clássico “Deus e o Diabo na terra do sol”, lançado em 1964.
O cinema carrega consigo a complexidade, não apenas linguística. É um complexo sistema artístico. Dificilmente câmera e ideia, apenas, fazem filme. “Cinema não é para covardes”, observa o cineasta local Luciano de Azevedo, tomando para si uma afirmação recente do veterano Ruy Guerra, que diz da coragem inerente ao sujeito que se presta a pegar numa câmera para dar forma e movimento às suas ideias.
Expoente de uma geração corajosa, Luciano é autor da trilogia “Cabrito”, cujo primeiro curta-metragem, homônimo, foi realizado com R$ 1.500, “de um pagamento atrasado de um freela”. Nos 28 festivais nacionais e internacionais que a produção já foi exibida desde 2015, abocanhou dez prêmios. Único representante brasileiro na 49ª edição do Sitges – Festival Internacional de Cinema Fantástico da Catalunha, considerado o mais importante do gênero, “Cabrito” recebeu o apoio da Ancine para participar da mostra.
Para despertar reconhecimento, foi preciso que o trabalho de Luciano comprovasse merecimento, como tem acontecido não apenas com a cena nacional, mas também local. E justamente num momento de produção superlativa, com visibilidade externa à cidade igualmente grande, produtores mostram a conta, reivindicando revisões urgentes no setor.
Tomando apenas o resultado de 2016 da Lei Murilo Mendes (ver quadro), quando houve significativa retração do mecanismo de incentivo municipal, torna-se visível o menor prestígio da expressão diante das demais. Enquanto produções cinematográficas ocupam uma fatia de pouco mais de 4% dos projetos aprovados e 7% (R$ 52.921,00) da verba disponibilizada, propostas de lançamento de discos e DVDs musicais são mais de um quarto do total dos aprovados, mobilizando 41,5% (R$ 311.756,45) de todo o montante da lei.
A ausência de proporcionalidade se manteve nas últimas cinco edições da lei de fomento, que aprovaram um total de 23 filmes (apenas um longa), sendo que dez títulos ainda não foram finalizados, o que demonstra um gargalo justificado por outra desigualdade: produtos grandiosos em linguagem e técnica trabalham com orçamentos enxutos ou sequer possuem verbas. A cinco dias da reunião do Conselho Municipal de Cultura, que deverá discutir propostas de reformulações na ferramenta de incentivo municipal, produtores debatem um cenário com muito mais ideias que câmeras.
‘Poderíamos só fazer com amor, mas já somos profissionais’
Para rodar “Firma”, seu primeiro curta-metragem, Mariana Musse não contou com fartos recursos. Tudo saiu do próprio bolso. Premiado no Festival Primeiro Plano, o filme ofereceu-lhe a oportunidade de fazer “Dulia”. Para seu terceiro trabalho, “Jonathan”, ela recebeu recursos da Lei Murilo Mendes. Em sua quarta produção, que a cineasta está filmando essa semana em Juiz de Fora, também lança mão do incentivo municipal. Na filmografia de menos de uma década, estão presentes dois sujeitos fundamentais na cinematografia juiz-forana: o festival e a lei de fomento.
“Cinema tem um custo alto de equipamentos e profissionais. Uma ficção, por exemplo, requer gastos com figurino, maquiagem, cenário. Às vezes, um teto de R$ 28 mil pode ser muito apertado. Os valores de cinema estão na casa dos milhares e milhões, mas temos que pensar em nossa realidade, e R$ 28 mil é melhor que nada”, comenta Mariana. “Poderíamos só fazer com amor, mas já somos profissionais”, alerta. “Então, precisamos de uma remuneração, mas quando paramos para pagar todos de forma justa, fica difícil. Fazemos por termos parceiros, e em Juiz de Fora existe uma rede de trabalho movida a amor.”
Amor, contudo, não cria mercado. Para Felipe Saleme – diretor de “Entre parênteses” (em parceria com Diego Zanotti) e “Aqueles cinco segundos”, exibido em Cannes e premiado em Gramado -, “nunca vai haver dinheiro o bastante, porque sempre se pode somar algo à produção caso haja possibilidade. É claro que o fato de ter mais dinheiro não garante um produto final melhor, mas é bom poder pagar um profissional que vive desse ofício e sair com um filme bem cuidado, no qual você sabe que as escolhas humanas e técnicas que fez foram fundamentais para obter um resultado melhor”.
Ainda que os R$ 28 mil propostos pela Lei Murilo Mendes sejam um valor possível para a produção de documentários em curta-metragem, como aponta Francisco Franco, do Inhamis Studio, podem ser insuficientes para outras demandas, como a ficção, cada vez mais presente na cena local e, até, os longas-metragens, que injetam fôlego num cenário. “No momento, acho que poderíamos manter esse teto, mas aprovar o dobro de projetos. Se aprovarem mais projetos, teremos mais pessoas fazendo filmes e aprendendo a fazer filmes com baixos orçamentos”, defende Franco, autor de “Jorge Sardas”, ainda em produção, um dos dois únicos filmes incentivados pelo edital de 2016 da Murilo Mendes, ao lado de “Para sempre, amor”, de Mariana Musse.
Nunca vai haver dinheiro o bastante, porque sempre se pode somar algo à produção caso haja possibilidade
Felipe Saleme, cineasta
Houve um avanço muito grande na cidade em termos de pensar o cinema como forma de expressão’
Nilson Alvarenga, professor e cineasta
‘Através da arte vamos ser lembrados’
O mercado é embrionário. A produção, contudo, tem ganhado maturidade e densidade numa velocidade muito maior. “Durante esses anos, houve um grande avanço na cidade em termos de pensar o cinema como forma de expressão. Surgiram vários realizadores e grupos envolvidos com a produção, seja de ficção ou documentário”, pontua o professor da Faculdade de Comunicação da UFJF Nilson Alvarenga.
“A realização em cinema, entendida como produção criativa de pensamento e arte, não deve ser reduzida a uma questão técnica. Porque tecnicamente é possível, sim, produzir coisas interessantes, desde que o roteiro – ou proposta – esteja adequado aos poucos recursos. Mas não se deve pensar no recurso investido como sendo de produção material apenas. Trata-se de investir na prática criativa, no papel do realizador dentro de um contexto cultural mais amplo”, completa ele, autor de “Casamento”, único trabalho incentivado pela edição de 2013 da Murilo Mendes, dentre oito propostas aprovadas, que ainda está em fase de finalização.
Ao passo que hoje investimento é o grande entrave da cena local, há alguns anos a formação era a questão essencial, logo sanada com a criação do bacharelado em cinema e audiovisual, que forma sua primeira turma neste primeiro semestre da UFJF. A produção acadêmica difundida em festivais mundo afora tem se tornado tão vultosa na cidade que deu sentido à formação da 1ª Mostra de Filmes realizada para TCC, promovida pelo Cineclube Movimento, na última semana, reunindo 14 obras, dentre elas o delicado “A menina que colecionava estrelas”, de Ana Claudia Ferreira. Produzido com incentivo municipal e apresentado como exercício final de sua graduação em jornalismo, o filme preocupa-se com o discurso e com a técnica sem se mostrar pretensioso.
“Cada quadro tem uma história (longa) para ser contada, uma referência teórica (conceitual), visual ou afetiva, ou seja, as três bases que resumem o processo de realização do curta, e que utilizei para escrever o Memorial Acadêmico exigido para a conclusão de curso com o trabalho prático”, conta Ana Cláudia.
Premiada na última edição do Festival Primeiro Plano como melhor conteúdo regional e selecionada para representar a Região Sudeste na disputa pela melhor produção cinematográfica universitária do país, a obra representa a potência da academia, ainda que esta não seja o bastante, como afirmam os próprios produtores.
“Uma arte como o cinema ultrapassa, e muito, as formações convencionais, as escolas e os diplomas. Acho que o fato de o curso de cinema ter chegado a Juiz de Fora tem uma importância social muito grande, principalmente por servir como ponte para que os vários jovens que ingressam no curso tenham acesso a certas oportunidades.
Mas acho que a linguagem e a estética a gente segue amadurecendo a partir da vida real, da observação dos acontecimentos, da vida fora dos portões da universidade, através de um treinamento do olhar, que é bem maior que a técnica”, reflete Analu Pitta, co-diretora de “Véspera”, com Rodrigo Souza, lançado em 2015 e seis vezes premiado. Em finalização, o curta documental “Dores” é a próxima aposta da cineasta, para 2017 ainda.
“Já fiz faculdade de publicidade e design. Não conclui nenhuma delas. Saí porque um amigo ofereceu um emprego em uma produtora, e isso foi a minha formação. Estudo até hoje, quase todos dias, aprendendo uma coisa nova. Acho que você nunca se forma cineasta. É sempre uma evolução. Estudar cinema é olhar ao redor e absorver tudo”, sintetiza Luciano de Azevedo, certo de um papel do cinema para além das visualidades. “A responsabilidade de quem faz arte é enorme.
É através dela que vamos ser lembrados daqui a alguns anos. É ela que vai contar a nossa história. Ela é esse espelho do que te cerca”, pontua Felipe Saleme. “Por isso eu defendo muito o cinema autoral, que não vem para alimentar uma cadeia comercial que já se apossou do cinema. O cinema autoral tem como objetivo somente o ‘contar aquela história’.”
‘O processo não acaba quando o filme fica pronto’
Lançado em janeiro deste ano, “Maria Cachoeira”, curta-metragem de Pedro Carcereri, já passou por seis festivais em seis meses de vida. Considerando uma média de público de 200 pessoas numa pequena sala de cinema, onde normalmente são sediados festivais que exibem curtas-metragens, o único filme financiado pelo município nos dois últimos anos que já teve lançamento – os seis demais estão entre produção e finalização – já foi exibido para cerca de 1.200 espectadores. E suas expectativas são bem maiores para os próximos meses, já que o presente dispõe de diferentes ferramentas de exibição, como afirma Daniel Couto, diretor de “Barbante”, licenciado para exibição no Canal Brasil.
“Há muitas formas de avaliarmos o desempenho de um filme. A principal delas é a quantidade de pessoas que ele atinge. Tratando-se de filmes independentes, que não estão ligados a um distribuidor ou a uma exibidora, a presença em festivais permite que as pessoas entrem em contato com o filme. Hoje em dia também há plataformas de streaming, como a IndieFlix. Com a lei da TV paga, algumas emissoras precisam cumprir cotas e colocar conteúdos nacionais de produtores independentes, o que abre uma janela para a produção”, explica o diretor, um dos maiores agitadores da cena na cidade.
“O processo não acaba quando o filme fica pronto. Aí começa a distribuição, que é caríssima e gera um problema muito grande, já que vários festivais cobram inscrições, e isso pode não ter entrado na planilha do incentivo”, alerta Mariana Musse, apontando, ainda, para a imprevisibilidade das curadorias, muito mais comprometidas com uma leitura geral do que com a individualidade de cada obra. “Não faço um filme pensando em mercado. Quando faço meus filmes, estou dando vazão às minhas curiosidades, aos meus pensamentos. Osfilmes que fiz falam do que vivi, do que me angustia, do que acho que vale ser falado”, comenta ela.
‘O tempo todo somos silenciadas’
Reflexo do vivido, os filmes de Juiz de Fora exaltam questões diversas e, em sua maioria, defendem a diversidade. Seja o pintinho, ao qual é permitido ser percebido como cavalo marinho em “Sansão”. Seja a realidade das ruas em “Habita-me se em ti transito”. Seja pelo viés da sexualidade e das vivências das drag queens, em “Feminino”. Seja pela família excêntrica de Sarandira, uma Minas profunda narrada em “Resguardo”. Na mesma subjetividade, firmar-se como cineasta exige a crueza e a crueldade da objetividade animal.
“Ainda é bem difícil, para não dizer impossível, se manter como cineasta no Brasil. Sobretudo quando se é mulher”, pontua Analu Pitta. “O tempo todo somos questionadas, silenciadas, temos que nos explicar, provar que nosso trabalho é consistente e que somos capazes. Há mais homens que mulheres em festivais, nas cabeças de equipes, e, principalmente, há mais homens diretores. Isso diz algo sobre nossa sociedade machista”, faz coro Ana Claudia Ferreira.
Difícil também por só poder encarar a sétima arte no tempo que é resto. Produzido com R$ 250 como projeto de conclusão do curso de jornalismo, o curta ficcional “A ratoeira” foi exibido em oito festivais, licenciado para o Canal Brasil e estimulou seu diretor, Diego Casanovas, a encarar outro trabalho. Em produção, o documentário sobre o grupo Vinil é Arte impôs desafios complexos ao cineasta, principalmente o de ter que driblar a dupla jornada da maioria da equipe. “Fazer cinema sem grana é muito bom e muito complicado ao mesmo tempo. Bom porque geralmente você vai trabalhar com amigos, e vai se esforçar muito para criar uma forma de produção que não demande gastos altos, isso nos faz ficar mais espertos. E complicado, porque chega um ponto em que ficamos limitados”, reflete Diego.
Para Pedro Carcereri, considerando a ainda baixa competitividade do interior nos editais nacionais e estaduais, o fomento municipal torna-se fundamental, principalmente em tempos de encolhimento do setor privado. Citando as pesquisas da esposa e sócia na produtora Old Man Filme, Isabela Abreu, Pedro avalia que o cenário ideal de produção na cidade seria a realização de três a quatro curtas-metragens por ano, o que geraria um capital suficiente para que os produtores sobrevivessem da arte que fazem.
‘Acredito em uma rede local’
“O orçamento está enxuto. Então, o que vamos fazer?”, questiona Daniel Couto, que mesmo com uma verba de R$ 28 mil convenceu a global Laura Cardoso e o elogiado inícius de Oliveira (de “Central do Brasil”) a contracenarem em “Barbante”. “Vamos pensar em redistribuir o orçamento? Vamos incentivar a iniciativa privada a investir nos filmes? Acredito na formação de uma rede local”, aposta o diretor, sócio na produtora Impulso.Hub, sugerindo a criação de uma comissão capaz de reunir parceiros.
Rede como a que se formou no cinema de Juiz de Fora: Luciano que chama Pedro para o roteiro. Pedro que convida para a direção de elenco o ator de Diego. Diego que faz a fotografia de David. David que é produtor de Analu. Analu que tem o mesmo diretor de fotografia de Ana Claudia. Ana Claudia que chama Daniel para montar. Daniel que tem o mesmo produtor que Felipe. Felipe que tem o mesmo diretor de fotografia de Mariana. Mariana que convida Francisco para montar. Francisco que tem na fotografia Luciano.
“A ideia é reunir hotéis, restaurantes, locações de equipamentos e espaços e outros negócios importantes para o cinema. Se organizássemos um sistema assim em Juiz de Fora, facilitaria bastante, até para o empresariado reconhecer na cultura um lugar que gera retorno”, comenta Daniel Couto, citando, ainda, a possibilidade de a própria cidade ter um portal na internet para a exibição das produções locais, eximindo os projetos da Lei Murilo Mendes de terem que prensar DVDs, mídia pouco a pouco colocada em desuso.
Aqui do lado, Cataguases com seu Polo Audiovisual da Zona da Mata é um bom exemplo, segundo o cineasta e ator Felipe Saleme, que este ano foi à cidade para participar de um projeto. “Tudo lá flui tão naturalmente que isso me chamou a atenção e me fez questionar se seria possível criar o mesmo cenário em Juiz de Fora. Essa política de trazer e facilitar as produções em um determinado lugar faz com que ali seja gerada uma troca muito rica, com muita frequência, criando um movimento que só tende a se aprimorar, uma vez que onde se tem troca, tem crescimento”, pontua ele, cheio de ideias na cabeça e rodeado por câmeras nas mãos.
Ex-integrante do grupo Ponto de Partida, Felipe hoje está envolvido em seis projetos cinematográficos, entre curtas e longas, já iniciados, e outros só no campo do desejo. “Não é só fomento, não é só formação. É iniciativa e replicação. Quanto mais fizermos, mais expandimos a cultura audiovisual. Quanto mais expandimos, mais demandas vão aparecer, criando mais formação e, consequentemente, mais fomento. Tudo começa com o movimento.”