ENTREVISTA Leila Ferreira, jornalista e escritora
Leila Ferreira só participa de um, apenas um, grupo de WhatsApp. Nele estão três amigas da infância em Araxá, onde nasceu. Jornalista por formação, com passagens pela Globo Minas, Rede Minas e Alterosa, ela reconhece a importância dos avanços tecnológicos. “É ao mesmo tempo fantástica e perigosa. É muito fácil perdemos a noção do limite. A internet é extremamente sedutora. Nunca fui muito chegada a esse mundo das redes sociais. Entrei nisso por sugestão da agência que cuida das minhas palestras, mas é um mundo onde ando pouco à vontade. Agora é que faço mais publicações e postagens”, conta ela, em entrevista feita, justamente, pelo WhatsApp. Ainda que não integre grupos, Leila consome a ferramenta em seu cotidiano. Sem, contudo, deixar-se consumida pelo aplicativo.
Numa conversa de mais de uma hora com mais de 30 áudios enviados, a jornalista, palestrante e escritora defende o equilíbrio como caminho possível para enfrentar e se reerguer diante da pandemia. O conceito também está em seu “A arte de ser leve”, livro com mais de 100 mil exemplares vendidos desde sua publicação, em 2012. Resultado de entrevistas realizadas em diferentes cantos, de Portugal aos Estados Unidos, passando por Holanda e pelo interior mineiro, o trabalho começou do próprio desejo da autora. “Eu queria ser leve”, diz. Após lançar “Mulheres – Por que será que elas….?”, de 2007, a Editora Globo solicitou-lhe um novo projeto que estivesse ligado à ideia de qualidade de vida. “Eu estava vendo que cada vez mais as pessoas estão obcecadas com o peso do corpo e esquecendo o peso da alma. Brinco que nosso grande risco é a obesidade mórbida de espírito.”
Naquele momento, Leila vivia uma rotina de ansiedades, angústias, excesso de trabalho e preocupações. Como muitos à sua volta. “Por dentro estamos cada vez mais intolerantes, impacientes, raivosos, ásperos, ríspidos, carregando um peso cada vez maior dentro de nós. Propus um livro sobre leveza para que eu pudesse aprender a ser leve”, pontua. “Quis escrever um livro, antes de mais nada, para reduzir o peso que estava carregando dentro de mim e, se possível, inspirar as pessoas a fazerem as mesmas coisas.” A receita, a jornalista que fala sorrindo afirma não ter. Continua desejando, incessantemente. E, talvez, seja esse seu grande convite para momentos tão tensos quanto o que enfrentamos agora e que norteou essa entrevista. “Brinco que já corri muito atrás da felicidade e hoje prefiro andar, sem qualquer pressa, em busca da leveza.”
Tribuna – Como está sua rotina após a medida de isolamento? Como te afetou?
Leila Ferreira – O que estou sentindo é o que a imensa maioria das pessoas está sentido: uma pausa estranha. Nós temos vivido num ritmo frenético, acelerados, viciados na pressa e sempre nos queixando de que não temos tempo para nada e que gostaríamos de ter mais tempo livre. Nós associamos um estilo de vida que exige pressa a uma ideia de que temos que estar fazendo coisas o tempo todo. Tem um psicanalista inglês, o Josh Cohen, que fala que estamos vivendo a tirania do fazer, porque achamos que temos que estar fazendo alguma coisa o tempo todo mesmo nos momentos que deveriam ser de descanso. Ninguém nos preparou para essa pausa estranhíssima. Gosto muito de ficar sozinha, ficar em casa. Minha vida é feita, por um lado, de viagens sem parar, com as palestras. Viajo o Brasil todo, uma viagem atrás da outra, aeroportos, hotéis, eventos, muita agitação e gente. E a coisa que mais prezo, quando não estou trabalhando, é ficar quieta, sozinha e em silêncio. Poder ficar em casa é uma coisa que deveria me dar muito prazer, mas a angústia que acompanha a pandemia, a ansiedade, o medo, a tristeza, a preocupação com as pessoas para as quais parar significa não ter como pagar as contas, o temor em relação à doença e às pessoas próximas, tudo isso contamina o que poderia ser um tempo da parada que precisávamos. São sentimentos muito ambivalentes.
“Poder ficar em casa é uma coisa que deveria me dar muito prazer, mas a angústia que acompanha a pandemia, a ansiedade, o medo, a tristeza, a preocupação com as pessoas para as quais parar significa não ter como pagar as contas, o temor em relação à doença e às pessoas próximas, tudo isso contamina o que poderia ser um tempo da parada que precisávamos. São sentimentos muito ambivalentes”
Na sua vida teve um momento em que você se percebeu nessa necessidade de pausar, de colocar o pé no freio?
Venho sentindo isso há muito tempo. Ano passado diminui muito minhas palestras e viagens. Achei que era preciso mais: e comecei este ano disposta a desacelerar um pouco mais. Essa questão da pausa e da desaceleração me interessa tanto que poucos dias antes de começar a quarentena chegaram para mim dois livros sobre pausa, de dois ingleses, um filósofo e um psicanalista. É um ironia: eu estava me preparando para pausar de forma mais radical quando ela chegou. O filósofo inglês, autor de um dos livros, fala que quando a gente não pausa a vida vem e pausa por nós.
Quando você fala da leitura na pausa, você indica a possibilidade de fazer essa pausa mais leve. Como essa pausa se relaciona com a leveza?
Há duas possibilidades de leveza dentro dessa pausa: uma é viver essa pausa de forma mais leve e a outra é usar essa pausa para refletir no sentido de ter uma vida mais leve depois. Para ter mais leveza nessa pausa – é claro que é uma pausa que vem acompanhada por ansiedade, angústia, medo e tristeza, e não há como fugir disso -, se cobrar menos tira um pouco do peso inevitável que acompanha esse momento. A gente quer aproveitar esse tempo “livre” para fazer mil coisas e não conseguimos. Aí vem a sensação de culpa de que os dias estão passando e não estamos fazendo nada. Não podemos nos cobrar porque é um tempo diferente, atípico, marcado por muitos sentimentos conflitantes e complexos. A gente tem que se perdoar mais por não estar reagindo da forma como gostaríamos. Depois, acho que esse pode ser um momento de reflexão muito rico e profundo. Sem cobranças, não é para refletir como dever de casa, mas inevitavelmente, essa experiência traumática está nos fazendo pensar. E podemos pensar de forma construtiva: que espécie de vida venho levando? Que espécie de vida eu quero levar daqui para frente? Tenho sido fiel aos meus valores? Quero rever alguns valores? Esse filósofo inglês com quem tenho conversado fala que é hora de nos perguntarmos do que estou sentindo falta e do que não estou sentindo falta. O que eu faria se pudesse? O que eu , definitivamente, não faria? É um momento que, apesar de ser muito pesado e complexo, nos dá uma possibilidade de lucidez que nas nossas vidas corridas não temos tido. Uma possibilidade de entender melhor o que é importante para nós e, a partir disso, criar um futuro mais consistente, mais coerente, que nos traga mais paz e, acima de tudo, um futuro mais solidário. A palavra-chave para os tempos que hão de vir é solidariedade, também compaixão e empatia, essa família de substantivos que andam tão em falta.
“Para ter mais leveza nessa pausa – é claro que é uma pausa que vem acompanhada por ansiedade, angústia, medo e tristeza, e não há como fugir disso -, se cobrar menos tira um pouco do peso inevitável que acompanha esse momento. A gente quer aproveitar esse tempo “livre” para fazer mil coisas e não conseguimos. Aí vem a sensação de culpa de que os dias estão passando e não estamos fazendo nada. Não podemos nos cobrar porque é um tempo diferente, atípico, marcado por muitos sentimentos conflitantes e complexos”
Muito tem sido dito sobre o excesso de informações. Como você percebe a influência do noticiário nesse momento?
O jornalismo sério, bem intencionado, que informa, conscientiza e alerta é o maior aliado que podemos ter neste momento. O problema é que vêm junto as fake news, as informações mal-intencionadas, o jornalismo sensacionalista e alarmista. Como tudo na vida, o que equilíbrio está no meio. Precisamos dessas informações, temos que acompanhar o que está acontecendo, porque a alienação é a última coisa que podemos viver agora, mas temos que dosar o consumo de informações. Do contrário, criamos um clima tóxico para nós mesmos.
Na sua fala está implícita a noção de que é possível ter qualidade de vida mesmo em momentos de tensão como o que vivemos agora. Do que dependeria a qualidade de vida, então?
Às vezes temos uma noção de qualidade de vida muito associada às condições ideias: muita saúde, prosperidade financeira, realização amorosa. A vida nem sempre nos dá as condições ideais. Aliás, raríssimamente. Temos que aprender a encontrar certa paz na adversidade. A dor, a angústia, a frustração, a ansiedade fazem parte da condição humana. Temos negado a tristeza e a depressão, tentamos esconder nossos estados mais sombrios em nome dessa cultura que prega a alegria, a animação e o prazer. Aí vem um acontecimento como o dessa pandemia e nos obriga a tirar a máscara da alegria. É doloroso, mas é saudável. A gente pode ter qualidade num momento como esse no sentido de se permitir mais, reconhecer seus próprios sentimentos, seus próprios limites, aceitando-os e tentando aprender a como conviver com eles. Não é um momento de bem-estar extremo, mas dentro dos limites, é possível ter um ensaio de serenidade. Ao mesmo tempo, não podemos nos esquecer do sofrimento das pessoas que não têm nosso privilégio, daqueles que moram em barracos, que procuram restos de comida em lixos vazios, dos que estão sem trabalho e sem ter como pagar as contas. Vivemos num país e num mundo profundamente desiguais, e essa parada é sinônimo de sofrimento para muita gente. Que esta zona de “conforto emocional” que temos que criar para nós mesmos não nos isole do que está à nossa volta. Não prego o sofrimento para todo mundo, mas não podemos perder a consciência, pensando no que podemos fazer para ajudar, para melhorar e tornar esse mundo menos desigual.
“Que esta zona de “conforto emocional” que temos que criar para nós mesmos não nos isole do que está à nossa volta. Não prego o sofrimento para todo mundo, mas não podemos perder a consciência, pensando no que podemos fazer para ajudar, para melhorar e tornar esse mundo menos desigual”
Pesquisadores de diferentes áreas, inclusive economistas, sugerem que o momento atual exigirá uma cooperação entre nações, uma solidariedade de todo o mundo, já que só será possível se reerguer em conjunto. Compartilha dessa perspectiva?
Completamente e irrestritamente. Sem cooperação não haverá futuro, sem solidariedade não haverá solução. Esse mundo todo atravessado por fronteiras, muros, terá que ser redesenhado e reinventado. Vivemos uma cultura de individualismo radical, de preconceitos, de xenofobia e de desigualdades gritantes e implacáveis. Temos a chance de atravessar para o outro lado do rio. Temos que ir para a outra margem. Para chegar a um futuro – que nunca foi uma incógnita tão grande – que não nos destrua, a única saída é a soma, a cooperação, a união, a solidariedade. Estamos vivendo um momento propício para sentirmos vergonha da nossa omissão, da nossa cumplicidade com o estado das coisas que se vê por aí. Um exemplo que me vem à cabeça agora é o do drama dos refugiados. Vi aquele artista plástico chinês Wei Wei, que tem acompanhado a situação dos refugiados nos últimos tempos, falando que viu um grupo de crianças andando 70km até chegar a um acampamento sem chorar, depois de uma travessia implacável. Ele não entendeu elas não chorarem mesmo sentindo fome, sede e frio. Depois ele pensou: é porque as lágrimas acabaram, elas têm chorado tanto que não têm mais lágrimas. Um mundo onde as crianças param de chorar por falta de lágrimas, excesso de sofrimento, é um mundo inaceitável. Talvez nunca tenhamos uma oportunidade como esta de subverter as regras desse mundo, virá-lo do avesso para fazer algo melhor, mais decente e mais digno. Como dizia o maravilhoso Ariano Suassuna, “eu não sou otimista, nem pessimista, sou um realista esperançoso”. A gente precisa de um realismo esperançoso neste momento. Temos que acreditar agindo.
“Um mundo onde as crianças param de chorar por falta de lágrimas, excesso de sofrimento, é um mundo inaceitável. Talvez nunca tenhamos uma oportunidade como esta de subverter as regras desse mundo, virá-lo do avesso para fazer algo melhor, mais decente e mais digno”
Você falou desse acreditar agindo . É possível ter pensamento sem ação? O pensamento prescinde da ação?
O mais comum é esse pensamento sem ação. O pensamento que não é seguido de ação tende a se esgotar muito rapidamente. Pode-se, até, adiar a ação, mas aceitar o pensamento considerando que ele se basta não é possível. O pensamento é o começo do caminho, tem que nos impulsionar a agir. A gente não pode ficar parado no porto. Temos que explorar novas possibilidades, ultrapassar a fronteira do ego e buscar novos territórios, como os territórios da compaixão e da ética. Cada gesto de bondade é um ato ético.
Qual é a sua avaliação das redes sociais? Concorda com as teorias de que a internet contribuiu para nos afastar?
Tem uma pesquisadora do Instituto de Tecnologia de Massachusetts que estuda o fenômeno das redes sociais, Sherry Turkle, que fala que não é contra a tecnologia, a internet ou as redes sociais, mas é a favor da verdadeira conversa e acha que deve haver as duas coisas. Esse mundo das redes sociais é extremamente atraente e, por isso mesmo, deve ser visto com extrema cautela. Podemos nos descobrir passando boa parte do dia mergulhados nisso. Às vezes nos aproximam dos que estão longe e nos afastam dos que estão perto. De novo é preciso dosar. Esse detox digital que muitos lugares propõem não é à toa. O sistema público de saúde mesmo oferece. Esse mundo da internet vicia. Visitei uma escola pública de periferia na França que propôs às famílias dos alunos, e elas aceitaram, ficar dez dias sem ligar computador, televisão e videogame, para ver se conseguiam conviver e conversar. Claro, não conseguiram. E depois a escola fez o que queria desde o começo para propor o debate: Vocês querem ser famílias que não conversam? Nossa fascinação com as redes sociais não pode prescindir de senso crítico. Precisamos avaliar o que isso significa e temos que usar a internet a nosso favor. É muito fácil perder a medida e deixar que nos engula.
“Nossa fascinação com as redes sociais não pode prescindir de senso crítico. Precisamos avaliar o que isso significa e temos que usar a internet a nosso favor. É muito fácil perder a medida e deixar que nos engula”