Marcílio França Castro se deparou com o personagem Ângelo Vegécio durante os estudos de doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O copista do século 16 chamou sua atenção por vários motivos: além de ter uma caligrafia que foi considerada como a mais bonita na época, também foi tardio, ou seja, manteve o ofício trabalhoso em uma era em que o livro manuscrito estava começando a desaparecer. Vivendo em um momento emblemático da história, de total transição, sua existência e sua influência, que mais tarde inspirou a fonte Garamond, fez com que o escritor começasse também um artigo ficcional, publicado em 2019 na Piauí, e para isso precisasse mergulhar no acervo existente desse copista. Quatro anos depois, também veio o romance, que está sendo publicado agora pela Companhia das Letras, e tem como ponto de partida esse mesmo artigo, para se aprofundar sobre a vida de outros personagens e pensar sobre esse ofício da escrita. Também é a estreia do autor no gênero, após ter recebido o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional pelo livro de contos ‘Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse’. Apesar de trazer um personagem histórico, o romance em questão se passa no momento atual, e busca justamente refletir sobre o contemporâneo.
O artigo publicado anteriormente, apesar de assinado por Marcílio, traz como autor um personagem de sua criação, que, como ele, é escritor e brasileiro. Na época, esse personagem estaria morando em Paris e visitaria uma exposição sobre o copista, decidindo então fazer um comentário sobre ela. Em entrevista à Tribuna, feita por telefone, o escritor mineiro explica que o objeto desse ensaio é ficcional, porque, na verdade, essa exposição não foi realizada – mas criada por ele apenas para a escrita. “Para poder escrever essa ficção ensaística, eu tive que pesquisar todo o acervo sobrevivente do Ângelo Vergécio, espalhado em várias bibliotecas do mundo. Seria uma exposição factível, que poderia ter acontecido. Esse é o ponto de partida do romance”, conta. A narrativa é deflagrada justamente pela leitura desse mesmo ensaio por um dos personagens, que é aquele que, no livro, conversa com o autor do ensaio. “Esse personagem é um revisor em Belo Horizonte, que tem nome de Eduardo Pena, e lê o ensaio em uma revista. A publicação desse ensaio e a leitura dele modificam a vida tanto do personagem do revisor, quanto da ilustradora que se torna amiga dele e ainda do próprio autor do ensaio, que aparece no romance como ouvinte da narrativa”, conta.
O indivíduo que transcrevia manualmente os textos, e que era conhecido pela sua caligrafia, nasceu em 1505 em Creta, foi trabalhar na corte do rei Francisco I, na França, e morreu em 1569. Tudo isso já poderia torná-lo um personagem interessante nas mãos certas, mas, para ele, também foi o que criou pontes de reflexão bastante atuais. “O fato dele ser um personagem histórico em uma época de transição entre duas eras, a do manuscrito e a do livro impresso, me chamou a atenção porque também me fez refletir sobre a época que estamos vivendo hoje, que traz uma transição dramática da era do papel para a era digital, ou da era analógica para a era virtual”, conta o escritor. Para ele, tanto esse personagem quanto os que aparecem ao longo do romance se encontram em uma situação parecida, em que as pessoas se preparam a vida inteira para algo que já não existe mais.
Retomada de tensões
O romance se passa em Belo Horizonte, de abril de 2019 até o fim de 2022, mas a conexão com o século 16, a partir do ofício do personagem que inspira o artigo, traz uma retomada de tensões. “Esse personagem é testemunha de uma virada milenar na condição humana, no ponto de vista das relações, da tecnologia e, mais especificamente, do regime de leitura e de escrita”, explica. Essas mudanças, em sua visão, não estão mais tão distantes: “O século 16 acena pro século XXI”.
Para o autor, há uma retomada de questionamentos que movem a sociedade: “Ao mesmo tempo que a tecnologia está muito avançada, há um reavivamento de ideias pré-modernas. Ao mesmo tempo que há pesquisa tecnológica de ponta, há grupos de terraplanistas; ao mesmo tempo que tem pesquisa astronômica de ponta, há uma retomada de interesse pela astrologia e alquimia. Esta época em que estamos vivendo, hoje, de alguma maneira, é como se retomasse, em espiral, uma tensão que havia no século 16”. Essa é a única janela que aparece no romance, no entanto, já que o escritor também destaca o uso de diferentes recursos para a narrativa, como também os postais enviados por uma das protagonistas, que está fazendo uma viagem relacionada com a vida do copista.
Cidade conectada com o mundo
Um ponto importante dentro da narrativa criada por Marcílio vem a partir de uma série de manuscritos do Angelo Vegécio, que acabou se tornando mais conhecida e famosa pelas ilustrações que pela própria caligrafia. Esse encontro entre a imagem e a escrita se repete na própria obra, através dos personagens, que são uma desenhista e um revisor, mas também a partir do próprio formato que traz. “O livro é todo recortado de postais e no final tem uma carta. Então você tem uma pequena usina de gêneros e possibilidades”, explica.
Esses recursos, como o autor já deixou claro, funcionam como janelas, replicando algo que surge com ainda mais força nesta era digital, e também sinalizam uma mudança em relação às narrativas situadas em Belo Horizonte. A partir dos personagens criados por ele, a capital mineira está em plena conexão com outras cidades do mundo. “BH não está virada pra dentro, está aberta pra fora. O romance tem essa ambiguidade do local e do cosmopolita, existe uma espécie de tensão. Também podemos encarar esse romance como um romance sobre migrações no tempo e no espaço, ou como um romance sobre o acaso na era da internet, sobre amizade e sobre como a leitura de um texto pode impactar a vida das pessoas”, ressalta.
Posição intermediária
Como Marcílio afirma, os procedimentos que Vegécio usava como copista são muito parecidos com os que hoje um revisor ou editor de texto usa – o que também ajudou a criar uma aproximação entre os dois, já que ele trabalhou como revisor a vida inteira. Em determinado momento deste artigo, que dá início a narrativa, chega a ser afirmado sobre a proximidade entre esses ofícios: “Para tornar-se escritor, é preciso sempre se tornar escriba”. Para Marcílio, isso sinaliza algo importante: um escritor nunca está verdadeiramente seguro da sua condição. Para que a escrita aconteça, é sempre necessário retomar ao ponto em que não existe autoridade da escrita, é como se você voltasse em uma situação da página em branco, e tivesse que voltar a escrever. Essa é a experiência cotidiana do escriba, copista, revisor ou editor – eles estão sempre a meio caminho entre uma autoridade e um leitor comum. Então também se faz essa ponte, de como você faz um romance e se faz literatura a partir dessa posição intermediária entre autor e leitor”.