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Tribuna mostra como é uma visita guiada ao Cine-Theatro Central

Cine-Theatro Central
Cine-Theatro Central
Os bolsistas Matheus e Paulo conduziram a reportagem da Tribuna por uma visita guiada ao Central (Foto: Fernando Priamo)
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Lá do alto, de avião, o piloto sabia que estava em território juiz-forano porque o teto de um grande prédio, bem no Centro da cidade, tinha escrito em letras brancas: “Juiz de Fora”. De cima, ele sabia do que se tratava: era o Cine-Theatro Central. Distante, já tinha o deslumbre do reconhecimento. De baixo, quem passava pelo Calçadão da Rua Halfeld era atraído pela timidez de uma construção que era também, no solo, estratosférica. Na última quarta-feira (30), no dia em que o teatro completou 93 anos, a reportagem da Tribuna esteve no espaço em uma visita guiada, que é promovida cotidianamente pela administração. Os estudantes Paulo Henrique Ribeiro e Matheus Corrêa foram os guias. Eles dizem que, cada dia que passam pela porta do saguão, chamado antigamente de “foyer”, aprendem uma coisa nova sobre a construção. De cor, os bolsistas da UFJF conseguem contar cada história, das paredes ao teto, do chão ao balcão nobre. Estar no equipamento cultural gerido pela Universidade desde 1994, mesmo ano em que ele foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), é revisitar uma época que deixou marcas em sua própria estrutura, e essas nunca serão apagadas.
Em 1927, Juiz de Fora vivia um dos períodos mais efervescentes economicamente. Tanto que foi possível a quatro amigos – Francisco Campos Valadares, Químico Corrêa, Diogo Rocha e Gomes Nogueira – idealizar um espaço de amplitude que acolheria, na época, 10% da população da cidade nos espetáculos. A ideia surgiu porque eles não encontravam um lugar que fosse grandioso o suficiente para servir de lazer à alta sociedade juiz-forana. Os teatros até então eram pequenos. Toda a estrutura do prédio foi pensada para suprir esse desejo de grandeza. Não existem pilastras que sustentam a construção. Uma estrutura metálica foi trazida da Inglaterra, o que ainda era inédito na cidade. Isso tudo foi ideia do arquiteto Raphael Arcuri, que pensou em uma obra que ia até além do orçamento definido pelo quarteto. Ela só foi possível de ser concretizada pela entrada do arquiteto na sociedade, que levava o nome de Companhia Central de Diversões (CCD). A Companhia Construtora Pantaleone Arcuri conseguiu entregar o teatro com pouco mais de um ano de obra. Já naquela época, a engenharia deu conta dos mínimos detalhes: entrada e saída de ar quente e frio (dentro do teatro, a temperatura é menor que a ambiente), acústica, inclinação do palco e das plateias. E, para mostrar o poder que tinham, bem em cima do palco, o brasão da CCD é o único item banhado a ouro.

Brasão da Companhia Central de Diversões é banhado em ouro (Foto: Fernando Priamo)

As pinturas de Bigi

Mas, para além da técnica, tem uma beleza também única. O pintor italiano Ângelo Bigi estava no Brasil de passagem e fez residência no país depois de se apaixonar por uma brasileira. Ele, então, foi contratado para pintar o teto e as paredes do Cine-Theatro Central. A técnica que ele usou foi pintar no gesso ainda molhado, para trazer a impressão de imagem mais viva. Estima-se que ele tenha feito isso também em um ano, já que sua assinatura no teto data de 1928. Bigi representou todas as artes que um teatro abarca. Suas referências musicais estão impressas nos desenhos, com os rostos de Giuseppe Verdi, Wagner, Beethoven e Carlos Gomes nas laterais, cada um em uma direção. As máscaras que ficam logo abaixo do segundo e terceiro andar representam a comédia e a tragédia, e, no breu, fazem jogo entre claro e escuro. Tudo isso harmonizado com o azul do céu entre nuvens, que deixa espaço para, bem no centro, ter um lustre com adornos milimetricamente decorados, com a elaboração do gesso. Com tanta precisão, as paredes parecem ser de papel. Mas foi também Bigi quem as pintou, com o uso do estêncil, que hoje é popular nos grafites.
Mas já na entrada, no foyer, onde os espectadores iam para socializar e conversar sobre o espetáculo, Bigi deixa um gosto do que virá com potência quando se entra na segunda porta. Nas paredes, que também são pintadas com estêncil, bem em cima de duas portas e bem do lado delas, estão quatro ninfas. Paulo e Matheus descobriram recentemente que elas representam as quatro estações. Já lá dentro, logo debaixo do palco, um fosso foi construído para dar espaço às orquestras. Elas, na época, ainda faziam a trilha sonora dos filmes mudos que eram projetos do palco mesmo. A estrutura, como explicam os estagiários, era diferente: a projeção era feita atrás da tela, e não na frente.

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 Ninfas estampadas nas laterais representam as quatro estações (Foto: Fernando Priamo)

Cada um no seu lugar

Os espaços, como todo o resto, foram bem pensados. Em quatro janelinhas, bem ao lado do palco, na tribuna de honra, ficava não quem queria ver melhor a apresentação, mas quem queria ser visto pela plateia inteira. O segundo andar todo tem também a vista privilegiada, com os camarotes nas laterais e o balcão nobre ao fundo. Logo em cima dele, um outro espaço era como uma arquibancada sem assentos. Foi pensado para receber o público que não tinha condições nem prestígio para estar em qualquer um dos outros pontos. Matheus chama atenção para o perigo que também rondava aquele espaço, já que o parapeito era muito pequeno, e as pessoas se sobrepunham para assistir às apresentações. “Por mais que tenham acontecido algumas mudanças, essas marcas são irretocáveis, e mostram, também, para qual público o teatro foi feito”, nota Matheus. Mas o detalhe é que quem está nessa arquibancada tem uma visão também privilegiada, a mesma que tem quem está no palco. Apontando para o lustre que fica no meio do teto, os estudantes mostram o coração que os demais lustres formam, mas que só pode ser visto dessas posições. Para quem está em qualquer outro ponto, os lustres formam simplesmente um círculo.
Nesses 93 anos, o Cine-Theatro Central viveu muitas épocas e acompanhou o processo de crescimento da cidade, assim como as mudanças culturais. Há 50 anos, por exemplo, ele foi palco de um dos principais eventos de Juiz de Fora. Subia ao palco do Central a cantora Clara Nunes para defender a música “Tristeza, pé no chão”, de Armando Fernandes Aguiar, o Mamão, na quinta edição do Festival da Música de Juiz de Fora, que, além dela, atraiu outros importantes músicos brasileiros. E a lista de artistas que se apresentaram em outras ocasiões é extensa. João Gilberto, pai da bossa nova, conhecido pela rigidez na exigência da qualidade técnica dos espaços em que se apresentava, já fez show no teatro.

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O lustre central do teatro é um de seus pontos de maior beleza (Foto: Fernando Priamo)

Quase fim do Central

No entanto, depois de ser uma sensação na cidade, com o tempo, o Central foi caindo no desuso. Nos anos 1980, já sob administração da Companhia Franco-Brasileira e exibindo predominantemente filmes comerciais, começou um burburinho de que o Cine-Theatro seria destruído para dar lugar a um shopping center. Em desacordo com esse suposto apagamento, alguns artistas que já haviam feito espetáculos no teatro, como Milton Nascimento, realizaram atos pedindo o tombamento em nível federal. Isso porque, naquela época, ele já era tombado pelo município. Em termos práticos, isso significa que um espaço pode até ser alterado no interior, desde que a fachada seja mantida. Para explicar como esta dinâmica funciona, Matheus dá o exemplo do prédio onde hoje funciona uma loja da Riachuelo, na esquina entre o Calçadão da Halfeld e a Rua Batista de Oliveira. A fachada é a mesma; o interior, no entanto, foi todo alterado. Graças ao movimento artístico, o teatro foi, então, tombado pelo Iphan em 1994, mesmo ano em que foi adquirido pela Universidade Federal de Juiz de Fora, com recursos do Ministério da Educação.

Recomeço

Depois do tombamento, uma ampla reforma foi realizada para restaurar o prédio tal como ele era quando foi inaugurado. A equipe responsável pelo trabalho teve que praticamente cavar sete camadas de tintas de algumas paredes para recuperar as pinturas de Bigi, já que algumas delas haviam sido cobertas ao longo dos anos. O mesmo foi feito com o piso de entrada de ladrilho hidráulico: alguns soltos ou desgastados foram recuperados e, mesmo que haja uma mínima diferença de tonalidade, a equipe conseguiu um similar que completa o mosaico que ele forma. Hoje, mesmo com algumas alterações para adequação à segurança, pode-se dizer que o Central é igual a aquele inaugurado 93 anos atrás.

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Pinturas de Ângelo Bigi ornam todo o teatro, especialmente o teto (Foto: Fernando Priamo)

 

E agora?

O trabalho no Cine-Theatro Central sempre foi de formiguinha, e isso Matheus e Paulo dizem o tempo todo, tanto para construir quanto para manter o equipamento em atividade, recebendo artistas e plateia. Paulo, antes de entrar como estagiário, tinha ido ao teatro apenas uma vez, para um show. Matheus, no entanto, só entrou lá para trabalhar como bolsista. E isso não é atípico na cidade: muitos nunca passaram pelo saguão ou sequer subiram aquelas escadas estreitas. Apesar da curiosidade atenta à fachada, não sabem que ele é um bem público, com entrada gratuita em algumas atividades promovidas pela própria equipe, como é o caso das visitas guiadas.
Por enquanto, a visita guida é uma das únicas formas de entrar no teatro. Desde 2020, suas atividades estão restritas por determinação do Ministério Público, que exige o Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB). Na semana passada, mais um passo para essa autorização foi dado: os bombeiros fizeram o treinamento com a equipe para conseguir a liberação. Agora, eles aguardam o envio do relatório para encaminhar ao Ministério Público e, por fim, receber o aval para a reabertura.

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Confira o vídeo feito pelo fotógrafo Fernando Priamo:

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