A Juiz de Fora que cresceu a partir da Avenida Rio Branco e da tradição industrial; dos nomes célebres das letras, música, artes plásticas; dos parques e museus; do comércio pulsante da região central; que olha para o coração-umbigo e não se volta para o entorno da entidade viva da urbe, que se espalha de norte a sul, Leste a oeste, muitas vezes esconde/ignora uma realidade toda própria da periferia, que nem sempre é tão distante do Calçadão da Halfeld, da Praça da Estação e outros CEPs sempre lembrados quando se pensa nos marcos históricos do município.
Pois é do São Benedito, um desses bairros que observam o coração de JF do alto de seus morros – ato que não encontra reciprocidade -, que o rapper RT Mallone apresenta o cotidiano que não aparece em livros, canções e pinturas por meio de “Vendedor de sonhos”, mixtape que disponibilizou em seu canal no YouTube no dia 31 de março e que em breve deve marcar presença nos serviços de streaming. Com dez músicas, o trabalho lançado por meio da gravadora paulista Artefato Produções conta com a participação de diversos nomes do cenário local do rap e hip-hop e serve ainda como prévia de seu álbum de estreia, “Eclesiastes”, que deve ser lançado e provocar um barulho bom ainda este ano. Na semana anterior, no dia 23 de março, houve o lançamento do videoclipe da música “Deuses”, com direção de Andreidys Belizzi, que já ultrapassou as três mil visualizações.
O indivíduo que trabalha com o coletivo
Ao receber a reportagem da Tribuna na última quinta-feira, RT Mallone estava na rua, próximo à sua casa, conversando com dois amigos. O assunto? Música, claro. Apresentações feitas, ensaio fotográfico nos locais que considera importantes, a entrevista começa na casa do rapper. Simplicidade, simpatia, consciência do contexto que o cerca, espírito de coletividade, desejo e determinação de viver da música que ama são algumas das características que puderam ser observadas durante a hora de conversa.
O desejo e a determinação de viver da música são visíveis pelo orgulho de lançar o seu primeiro trabalho, que teve produção musical, mixagem e masterização do DJ Poty e foi concebido aos poucos, sem pressa. As batidas e melodias que acompanham suas rimas são resultado de parcerias com nomes do rap e do hip-hop juiz-forano, como Everton Beatmaker, Muxima, LR Beats, Nobre, Erik RK, além das participações especiais de Marte MC, Hattori, Jullyo Mallone, Munir, Eddu Chaves e J. Vito, entre outros. É a realização de um sonho vindo na sequência de uma série de singles e participações em álbuns alheios, passando por Nezcau, João Beghelli, Brackes, Nego E, Muxima e outros parceiros da arte.
“Foi importante para mim ter a produção instrumental feita pelos beatmakers da cidade, eles têm essa sensibilidade de fazer a cama para você trabalhar seus temas, mesmo com estilos diferentes o trabalho apresenta uma unidade. É uma festa em que você convida as pessoas que admira, ídolos que também são seus amigos”, afirma. “O rap tem essa coisa da competição, mas que é saudável acima de tudo. O que fica é o sentimento de família, celebração.”
Crônicas do balcão da padaria
A partir dessa base sonora, RT Mallone pode apresentar as canções que ele define como “uma exposição de vivências”, histórias que – mesmo que não fossem suas – ele acompanhou de forma bem próxima. Muitas dessas ideias, inclusive, vieram de um ponto de vista inusitado: o balcão da padaria do bairro em que trabalhou durante algum tempo, última experiência profissional que teve após batalhar o pão como pintor, gesseiro e em uma estamparia.
“Encontrava com amigos, parentes, ouvia muitas histórias e experiências sobre os mesmos pontos de vista a respeito da realidade que vivemos, a situação do negro na sociedade, até mesmo sobre querer se vestir e comer bem, frequentar certos lugares.”
“O tema principal (do disco) é querer se sentir bem, afinal”, acrescenta. “É dividir a experiência de ter que trabalhar num lugar que não quer, afinal você precisa pagar suas contas. Eu mesmo sou dessas pessoas que não se adaptam com patrão, ter rotina. Mas, veja bem, nunca fui um mau funcionário, só não era exemplar (risos). O que eu quero é viver de música, se puder pagar as contas, ajudar a família, tá bom demais.”
Por conta disso, RT Mallone vendia na época do emprego na padaria um CD demo com seis músicas (cinco delas aproveitadas na mixtape) envolto por uma embalagem que lembra o famoso papel para embrulhar pão em que escrevia as letras. “Não podia usar o celular, então era o que tinha à mão”, lembra. O preço? Os mesmos dois reais cobrados por um sonho. “Desde o início queria falar de sonhos, traçar metas. Por isso já tinha em mente o título (‘Vendedor de sonhos’) para o trabalho, assim como a arte que lembra o papel de pão.”
Para transformar o sonho em realidade
A questão do sonho versus realidade, aliás, é um tema recorrente na conversa, e RT Mallone se mostra disposto a seguir em frente. “Acho um desperdício a pessoa que abre mão de seus sonhos, mas entendo quem precisa (fazer isso). Neste ponto a família me apoia muito e acredita que estou no caminho certo. Só posso agradecer por ter essa opção de fazer música, seria bom no futuro mostrar que isso é possível. Fico muito triste por ter perdido amigos que desistiram e foram para o caminho do crime. Mas sempre há esperança, tenho um amigo que ficou preso por dois anos e hoje vê que, mesmo sendo difícil, o que faço serve de exemplo pra ele.”
A força da produção local
Se algumas adversidades, como a ausência de espaço nas rádios, se fazem presentes, RT Mallone lembra que a internet, hoje, dá muito espaço para ele e outros artistas locais. “Desde o ano passado, tivemos vários discos lançados, como os do Brackes, Lucas Azalim, todo mundo está produzindo. A (casa noturna) Danke Club abriu espaço pra gente, tem as Batalhas de MCs, a ‘RodAbsurda’ na CasAbsurda. É um momento muito empolgante, e por estar numa gravadora de São Paulo (a Artefato Produções) é bom saber que posso chamar atenção para a cena de Juiz de Fora.”
Ainda de acordo com o rapper, uma prova de que o rap/hip-hop local passa por um bom momento é a repercussão do coletivo Wav, formado por ele, MC Marte, Thainá Kriya e Everton Beatmaker. O quarteto se reuniu para abrir o show de Criolo em Juiz de Fora e desde então marcou presença abrindo para Marcelo D2, 3030, Cone Crew e a banda Medulla, além de outros eventos. “A garotada mais nova assiste, ouve, fica animada, pergunta quando terá outro evento. Precisamos ter mais desses eventos, principalmente na periferia. É importante tocar na sua casa, ser exemplo ao vivo”, acredita. “Já vemos isso com as Rodas de Rima, que antes aconteciam só no centro e já se espalharam pela cidade.”
Música que vem da infância
Com 23 anos vividos e a sensação de que o caminho mal teve início, RT Mallone começou a cantar há 13 anos no programa social Curumim, no próprio São Benedito, tendo participado de eventos como o Coral de Natal. “Minha família gosta muito de música, rolava muito Tim Maia, Cassiano, ouvia minha mãe na igreja. Quando entrei para o coral do Curumim foi muito intenso”, relembra.
O hip-hop entrou de vez na sua vida há dez anos, quando participava de um projeto de dança da Amac (Associação Municipal de Apoio Comunitário).
“De tanto ouvir, comecei a fazer minhas músicas, vi que podia também. Na escola eu terminava meus exercícios e ficava no canto escrevendo minhas letras.”
Mas foi apenas em 2012, graças ao MC Marte, que ele participou pela primeira vez dos Encontros de MCs que rolavam no DCE da Avenida Getúlio Vargas. “Meu primeiro adversário foi o Hattori, que, assim como o Marte, participa do ‘Vendedor de sonhos'”.
Cada Encontro de MCs só aumentou a confiança de Victor Alexandre Pereira, que posteriormente se tornou RT Mallone. “O Mallone é uma família de amigos que fundamos há alguns anos, tem vários espalhados por aí. O ‘RT’ era uma sigla que vi muito entre 2011 e 2012 ao ter mais acesso à internet, ao Twitter, que tinha o ‘RT’ (retweetar). E também nas construções por onde passava sempre havia um ‘RT’ (responsável técnico) nas placas ao lado do nome das pessoas, como se fosse algo muito importante. Isso passou a significar ‘pessoas muito importantes’ na minha vida, e adotei a sigla no meu nome. Mas depois precisei dar um significado, daí usei duas palavras de línguas diferentes da África, Roho (‘alma’) e Tahir (‘puro’). E ‘alma pura’ era algo que ouvia muito na infância.”
O resultado dessa força de vontade são os singles lançados, participação em trabalhos de outros parceiros, o reencontro com uma ex-professora do Projeto Curumim em uma apresentação e a realização de um sonho com o lançamento da mixtape. “Não é só a questão de vender um trabalho. Gosto muito de cantar, estar no palco, mostrar nosso cotidiano e que podemos acreditar no poder da mudança, algo que lembramos apenas quando o tempo passou. Nós vivemos realidades diferentes, mas elas convergem porque, no fundo, passamos pelas mesmas coisas.”