“IMO” (2018) é um dos filmes que estreia na Mostra Aurora, durante a 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes que acontece entre os dias 19 e 27 de janeiro. A diretora é Bruna Schelb Correa, que veio da cidade de Cataguases estudar cinema em Juiz de Fora, no Instituto de Artes e Design da UFJF. O longa-metragem é uma coprodução da Cansada Filmes, Desapego Cinema e Luz del Fuego. Memória, mulheres e surrealismo são elementos que aparecem no roteiro. “Memória é lugar de voltar, ainda que doa”, a frase apresenta um teaser publicado há cerca de um mês no Facebok da Cansada Filmes, dando leves pistas da fotografia, locação e ritmo como foi filmado, junto a uma breve apresentação das três personagens, interpretadas por Helena Frade, Mc Xuxú e Giovanna Tintori.
Além de “IMO”, a Mostra Aurora selecionou os filmes “Madrigal para um poeta vivo” (SP), de Adriana Barbosa e Bruno Mello Castanho, “Ara Pyau – A primavera Guarani” (SP), de Carlos Eduardo Magalhães, “Dias vazios” (GO), de Robney Bruno Almeida, “Baixo centro” (MG), de Ewerton Belico e Samuel Marotta, “Lembro mais dos corvos” (SP), de Gustavo Vinagre, e “Rebento” (PB), de André Morais.
O âmago, o mais íntimo
Bruna Schelb senta-se despretensiosamente em uma cadeira de diretora de cinema, de madeira e tecido jeans, talvez tie-dye, conversando com o clima hippie-místico e mais uma mistura de referências, incluindo um quadro dos Beatles, da animação “Yellow Submarine”, tudo em seu apartamento na Rua São Mateus. “A minha avó tem uma loja de coisa indiana, daí que vem toda essa parafernália”, diz ela rindo, enquanto sua gata Nefasta atravessa para lá e para cá o tapete em que estamos sentadas para uma conversa. Pela primeira vez, um filme de Juiz de Fora está na Mostra Aurora, uma das principais e mais cogitadas para a Mostra de Cinema de Tiradentes.
A exibição de “IMO”, que será lançado no dia 23 de janeiro durante o festival, é certamente um marco para a história recente do audiovisual de Juiz de Fora, muito decorrente da habilitação em cinema do Instituto de Artes e Design da UFJF. “IMO” é um filme feito por amigos que conheceu por conta da faculdade. Bruna escreveu o roteiro, produziu toda a parte burocrática – planilhas e mais planilhas -, trabalhou para arcar com boa parte dos gastos, dirigiu, fez o som e chamou a equipe totalmente por afinidade e não somente conhecimento, técnica e portfólio. Essa escolha foi importantíssima, faziam e refaziam até chegar ao resultado que queriam, sem discurso de sofrimento, apesar dos perrengues. A direção de produção ficou com Renata Schettino, e Luis Bocchino fez a montagem e a fotografia, além de ter contribuído na edição de som. Ana Luiza Fernandes assina a direção de arte, e Isadora Martins, os figurinos.
O nome de Bruna constar na Aurora, junto a somente outros seis, de imensa maioria homens, tirando apenas Adriana Barbosa, de São Paulo, reforça o quão potente está sendo (essa nova geração? esse recente movimento?) não sei qual palavra usar para não cair em categorias. Mas é fato que muitas minas do audiovisual estão naturalmente, à medida que produzem, escrevem, dirigem e gravam, aparecendo e sobressaindo com seus nomes, ainda pouco ou nada conhecidos, no cinema de Juiz de Fora, historicamente marcado por homens. Se pegarmos as fichas técnicas de produções cinematográficas de Juiz de Fora serão sempre os mesmos nomes e as mesmas produtoras com oportunidades e reconhecimento. E, claro, que ótimo que temos estes destaques, mas Bruna, assim como muitas meninas do cinema que vimos ser premiadas no Festival Primeiro Plano deste ano, trazem um frescor de linguagem, proposta sensível e talvez o apontamento de uma nova estética para um audiovisual muito demarcado pelas mesmas figuras.
Realidade surreal
A característica surrealista é o que chama a atenção no roteiro de Bruna Schelb. O cinema autoral independente brasileiro é, quase sempre, de ficções com características do realismo. Bruna parte de uma questão social realista, sobre a opressão e violência contra as mulheres, mas coloca sua percepção crítica em planos de câmera fixa que filmam a memória coletiva das mulheres, puxando os elementos incomuns e bizarros de quando tentamos retomar este lugar, a memória. Quando nós voltamos ao passado através de memórias, não expomos apenas um pensamento onírico, mas uma realidade em cima do que apareceu em nossa mente. É comum a gente fazer careta, chorar, rir, repugnar, ou seja, sentir, ao relembrar. Quase como se vivêssemos aquela cena novamente. Uma realidade interna é tão importante de ser vivida e sentida quanto uma realidade externa. Isso é algo que já escrevi em reflexões pessoais e reescrevo aqui, porque “IMO” parece se tratar exatamente disso.
A Mostra Aurora, que nesta edição teve curadoria de Cleber Eduardo e Lila Foster, tem por base escolher filmes de diretores estreantes no cinema, isso culmina também em outros critérios relacionados a criatividade e inventividade. Justamente por estarem iniciando, esperam-se novas possibilidades para o cinema, não somente analisando a temática, o pano de fundo dos enredos, mas principalmente a originalidade estética e o caráter experimental das produções. O que parece fazer todo sentido com o “sem-sentido” de “IMO”. Bruna Schelb não quer de maneira alguma entregar nada pronto, o filme é uma abertura para ser sentida, é sinestésico e sensorial. As metáforas traduzem as muitas coisas que a narrativa quer dizer, por meio de planos longos e estáticos, às vezes com o som contando mais histórias do que as próprias imagens. Não há qualquer movimento de câmera o filme inteiro. E, por não ter diálogos, vamos dizer que o “texto” virá na cabeça de quem for assistir. Talvez uma experiência que se assemelhe, em certa medida, com a identidade que vem sendo construída pelo cineasta e documentarista juiz-forano Marcus Pimentel. O “silêncio” e as imagens são a potencialidade total de suas produções.
Sem diálogo
“O ‘IMO’ é um filme que não tem fala, não tem diálogo, é apoiado mesmo no que está ali, no visual. Quando fomos planejar, pensamos muito na fotografia, muito na arte, porque esses outros elementos que são convencionais em um filme, e a gente entende como convencional, que tem uma certa explicação dentro do cinema, não são o principal aqui. A gente tentou fazer coisas bonitas mesmo, boas de olhar.”
A passagem do momento das três protagonistas, em atividades rotineiras e intimistas, para a quebra que as leva ao encontro do lugar onírico, que é a própria memória, é completamente demarcada pelo som. Sem dúvida, a captação de áudio e a edição deste material foram o que deu mais trabalho em todo o processo. “O que eu tentei fazer aqui foi colocar essas mulheres na memória como se fosse um lugar físico. Esse lugar onde elas estão não existe, é a memória delas. Até dentro da realidade, elas estão em memória. Quando a gente revisita uma coisa que aconteceu no passado, a gente cria em cima daquilo.” O som de todo o filme é seco, há somente uma trilha, um red time dos anos 1920 na cena final, o restante são sons que evidenciam sensações do que está acontecendo em cena. “O roteiro é todo trabalhado para o som de as coisas falarem, o som foi escrito como se fosse uma ação.”
Após essa quebra, todas as três personagens, com nomes que significam “feiticeira” em outros idiomas, encaram realidades bizarras que retratam a opressão da mulher. “As meninas passaram por umas provações reais. A Helena [Frade], durante a cena em que ela arranca os próprios olhos, estava cega o tempo todo, literalmente. A gente tampou o olho dela com maquiagem e ela ficou cinco horas de gravação sem enxergar”. Essa também foi uma escolha de Bruna para intervir o mínimo na direção de atores, querendo pegar exatamente o jeito de cada uma das mulheres que foram convidadas a atuar.
Memória coletiva e social
“Toda mulher tem um momento em que passou por uma parada parecida, se sente exposta, o filme trata a nudez e é pautado na memória coletiva das mulheres, que são vistas como sujeito social diante das situações provocadas pela sociedade onde estão inseridas. Então, não é a memória de uma forma lúdica, é a memória de uma forma social”, explica a diretora, afirmando que “IMO” desperta de maneira diferente nas mulheres, que os homens jamais estiveram na pele de uma mulher, compartilhando medos, vergonhas, preconceitos, mas também vontades deste universo.
“Sabe quando você sente um cheiro e lembra de outra coisa? É um filme construído assim. Eu não preciso apontar ‘aqui está uma opressão’ ou ‘aqui está uma reação a uma opressão’. É um filme sobre sentir e querer fazer isso. São lembranças que a gente explica no filme de uma forma não-real. Para uma mulher, ver esse filme é uma experiência diferente de um homem. A ideia é essa: uma mulher vai sentir esse filme, um homem vai ver esse filme.”
O filme foi todo gravado na Fazenda do Vale em Matias Barbosa, trazendo um clima bucólico à fotografia, inesperado no roteiro escrito para ser filmado em ambiente urbano. Bruna tinha o desejo de gravar em Cataguases, onde cresceu, criança, vendo quadros do Humberto Mauro na parede do seu avô, pensando que fosse um amigo dele, e sempre lendo sem parar. “Meu crescimento é de contar história lendo. E como fui estudar cinema, aprendi a técnica e fui fazendo. Mas não quer dizer que eu planejei trabalhar com cinema, não houve um ensaio na vida”, diz Bruna, sentindo-se feliz, principalmente em poder mostrar, através desta conquista, a suas irmãs bem mais novas que é possível elas serem elas mesmas, realizando e fazendo o que gostam.
Sobre referências, estas que vão sendo traçadas ao longo de toda nossa vida, Bruna tem o cineasta Rogério Sganzerla como maior fonte de vontade de fazer cinema. Tanto “IMO”, mas principalmente seu recente curta “Vampiro da ocupação”, premiado no Festival Primeiro Plano, teve influência do cinema de Sganzerla. “Essa liberdade de criar e não ter vergonha de ser brasileiro, de ter sua própria referência, sem medo de ser reprovado. De ser eu. Toda vez que eu duvidava de alguma coisa, eu ia na memória que eu tenho dele.”