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Pesquisadores resgatam memória do poeta Belmiro Braga

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BELMIRO BRAGA, nascido no século XIX em Vargem Grande, então parte de Juiz de Fora e hoje município que homenageia seu filho mais ilustre (Foto: Reprodução/Acervo Mapro)
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É um trabalho incansável esse do pesquisador, de ir preenchendo as lacunas deixadas por aqueles que, em vida, talvez não imaginariam que, um dia, seriam motivo de interesse a ponto de serem minuciosamente investigados. É pegar os cacos e transformá-los em biografia quase como um retrato de uma vida. Duas horas de uma entrevista sobre o escritor Belmiro Braga foi pouco. O historiador Sérgio Augusto Vicente tentou resumir suas 400 e tantas páginas de pesquisa para seu doutorado em História, na Universidade de Juiz de Fora (UFJF), sobre a trajetória biográfico-literária do escritor juiz-forano, para, ao menos, direcionar o caminho trilhado em vida por ele, pelas terras de Minas Gerais. Na vizinha Belmiro Braga, a Secretaria de Cultura, Lazer e Turismo dá os primeiros passos na direção da criação de um museu em homenagem ao poeta.
Belmiro Braga deixou vestígios. Mas, hoje, tão pouco se fala sobre ele que investigá-lo se torna um trabalho de tirar poeira de cima dos arquivos e em busca de uma estrada que passou a ser desvendada pela professora Leila Barbosa, considerada uma das primeiras, no ambiente da academia, a pesquisar a obra do escritor, no campo da teoria literária. Leila, embora seja sobrinha-neta de Belmiro Braga, teve pouco contato com a história de seu tio-avô, cuja obra começou a esmiuçar nos anos 1970. Sérgio, 50 anos depois, faz uma continuação desse trabalho, mas com um olhar de historiador que tem um pé na literatura. O motivo de tudo é entender por onde andou o “homem-poeta, maravilhoso” que “subsiste, irrevogavelmente”, nas palavras de Murilo Mendes, no livro “Idade do serrote”. E, mais que isso, desvendar o mistério que existe nele até hoje, que, para Sérgio, faz com que a obra seja maior que a vida.
Leila e Sérgio mantêm contato rotineiramente. “Ele me liga para contar as últimas descobertas e eu fico toda feliz. Ele já sabe muito mais que eu. Os créditos são dele”, brinca Leila sobre as últimas pesquisas do historiador, alegre ainda por ter ficado sabendo que, em São Paulo, existe uma rua chamada Belmiro Braga. Leila tinha uma relação sanguínea com ele. Mas isso não é sinônimo de conhecer o parente, e a ex-professora deixa isso claro. Ela teve, sim, facilidades em achar arquivos. Mas foi um trabalho incansável que, ainda assim, a faz se sentir surpreendida com as descobertas de Sérgio, em um mundo contemporâneo com sua facilidade de acesso a arquivos digitalizados.
Sérgio não tem relação alguma com o escritor, a não ser pelo lugar onde seus pais moram, próximo a Sobragi, distrito do município de Belmiro Braga, em um sítio comprado pelos seus tararavós portugueses, que teve a escritura lavrada exatamente por Belmiro Braga, o poeta, quando era tabelião. Sérgio só conhecia o básico do escritor. Mas, depois de ter contato com uma carta escrita por ele direcionada a Machado de Assis, que integra uma compilação de correspondências publicada pela Academia Brasileira de Letras, o historiador foi descobrindo outros pontos que ligavam a própria vida do escritor à sua vida. Vários livros dele estão disponíveis para pesquisa no Mapro, onde Sérgio trabalha. E foi lá que ele viu o livro “Dias idos e vindos”, a autobiografia de Belmiro Braga. A partir desse primeiro contato, Sérgio tentou ligar tudo o que via ou lia a Belmiro Braga. E, basicamente, conseguiu.

Caricatura de Belmiro Braga com Príncipe, seu cachorro, produzida pelo cartunista Raul Pederneiras e publicada na Revista da Semana, Rio de Janeiro, em 19 de junho de 1910 (Foto: Raul Pederneiras/Reprodução/Acervo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional)

Da roça para o resto do mundo

Mas, então, quem foi o juiz-forano Belmiro Braga? Comecemos, pois, pelo começo. Ele nasceu em Vargem Grande, na época, 1870, distrito de Juiz de Fora. Hoje, cidade emancipada, recebeu o nome de Belmiro Braga, em sua homenagem. Filho de fazendeiros, até tinha certo patrimônio, mas Sérgio os caracteriza como “aristocracia em declínio”. No começo da vida, já ajudava nos afazer da roça. Aos 11, então, começa a estudar na cidade, no caso, em Juiz de Fora. Mas, logo em seguida, com a morte da mãe, precisa voltar para a fazenda para ajudar seu pai. Ele fica um tempo em Vargem Grande. Até que seu pai decide que era hora de ele conhecer o resto do mundo, e o libera para viajar. De acordo com Sérgio, é esse o momento, a partir de 1885, em que ele faz a própria vida. E isso foi essencial para definir seu estilo literário.
“Ele passa por algumas dificuldades perambulando pela região. Torna-se um homem errante e trabalha com tudo. Mas vira um colecionador de narrativas, das rimas que passam de boca em boca e mergulha na tradição oral popular.” Ele era comerciante, e sua profissão o fazia rodar, mas sempre atento às leituras. “Enquanto a vida o faz caminhar como comerciante, ele carrega as trovas que o liga ao cordão umbilical.” Ou seja: mesmo conhecendo outras cidades, Belmiro Braga carregava saudade de sua terra. E isso seria uma das características de sua escrita: “Ele tinha um lirismo de origem, com pé no romantismo, no saudosismo. Ele, constantemente, fala sobre sua origem na roça. E isso é porque ele tinha uma angústia de não conseguir ficar na terra natal”. Por estar entre os caminhos e também por sua localização geográfica, Leila o chama de “poeta à beira do Caminho Novo”.
Esse sofrimento passa quando ele volta a morar em Cotegipe (hoje, distrito de Simão Pereira), já casado e com filho. Foi nesse lugar, inclusive, onde ele ganha ascensão na literatura. É da estação de Cotegipe que ele enviava cartas aos amigos escritores, como Machado de Assis. É lá que ele conhece Antônio Sales, escritor cearense que tinha prestígio na época e projetou Belmiro Braga na imprensa brasileira. Acabou que, anos depois, já o mineiro em ascensão, foi ele o responsável por não deixar cair no esquecimento, em Minas Gerais, o nome do cearense. Mas, voltando a Cotegipe, foi no distrito que ele conseguiu se firmar de maneira a ter tempo para ler e escrever. Foi lá que ele passou a ter contato com os letrados: essencial para a sua formação, interrompida cedo com a morte da mãe. O terreno já estava aprumado.

Um homem de dois mundos

Juiz de Fora pulsava industrialização na virada do século XIX para o XX. O ambiente pacato de Cotegipe não era suficiente para as ideias que fervilhavam na cabeça de Belmiro Braga. Ele se mudou então para a cidade, deixando o distrito. E, já conhecido, começa a atrair, também, o que Sérgio chama de “elite letrada”. Naquela época, por maior que fosse prestígio social, não havia como viver do que escrevia. Ele se tornou tabelião. Por ter vindo da roça, convivido com as pessoas mais humildes e sugado essa tradição oral comum nesse ambiente, Belmiro Braga, na cidade grande, vivendo com os letrados, acaba que vivia entre dois mundos: dos que sabiam ler e daqueles que não. “Ele transmitia, em seus escritos, o sentimento do homem simples. Por isso, escreve de maneira simples e acessível.”
Sérgio Vicente relaciona essa característica ao fato de ele ter sido chamado para escrever para alguns jornais, como “O Pharol” e “Correio de Minas”. Logo depois, a imprensa ilustrada já encontra, nele também, caminho para falar com todos. “Apesar de ter escrito muita coisa, a maior parte da sua obra era poesia. E a rima é a forma mais fácil de fazer o texto sair do papel e chegar à língua do povo. E ele chegou aos povos.” Antes de ir para o Rio de Janeiro, é importante recuperar que ele foi um dos fundadores da Academia Mineira de Letras, nessa sua vontade de fazer crescer e perdurar o cenário da literatura juiz-forana.

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Múltiplas faces de Belmiro Braga

Belmiro Braga se mudou para o Rio de Janeiro e uma nova função foi somada a sua carreira: humorista, em um formato que hoje seria o de “stand up comedy”. Tornando-se amigo dos cartunistas da imprensa ilustrada, essa parceria fez aflorar seu lado crítico e comediante, ainda mais depois de ir para a Europa, quando passou a fazer crítica aos costumes dos povos de lá. Mas, como comediante, seu papel era nos teatros. Naquela época, no começo da ascensão do cinema, tinha-se o costume de apresentar peças antes do filme para atrair espectadores ainda não acostumados com o formato do cinema. O gênero desse tipo de teatro feito por Belmiro Braga era o ligeiro: mais improvisado, com menos atores e com caráter de comédia. Sua primeira peça foi “Coisas da vida”, escrita em parceria com Gastão Tojeiro, em 1909. Outra de sua autoria e conhecida é “Na roça” que, ainda hoje, circula pelo Brasil, muitas vezes sem o devido crédito a ele, já que virou como de domínio público.
Ele foi mesmo um homem multifacetado. Fez de tudo um pouco e, além de escritor, tabelião e comerciante, Sérgio faz questão de enumerar outras funções de Belmiro Braga: fiscal de jogos em Poços de Caldas, vendedor de seguros, inspetor de ensino estadual, municipal e federal, entre outros. Apesar de tudo isso, e de ter sido um dos responsáveis pelo desenvolvimento cultural de Juiz de Fora no século XX, Belmiro Braga é frequentemente esquecido, segundo Sérgio. Ele afirma que, até os anos 1950, o poeta era cotidianamente citado, mesmo 13 anos depois de sua morte, que foi em 1937. Mas, a partir de 1960, foi acontecendo um gradual apagamento de sua memória.

Busto de Belmiro Braga no Parque Halfeld foi erguido após sua morte, na década de 1940, por amigos (Foto: Felipe Couri)

Saindo de cena

Por que aconteceu esse apagamento? Está aí uma das perguntas da pesquisa de Sérgio. Ele morre ainda com fama, mas falando que foi jogado no limbo pelos modernistas, sendo eles, de acordo com o historiador, um dos motivos de seu desaparecimento. Belmiro nunca quis ser classificado por escola literária nenhuma. “E os modernistas acabaram formando um cânone literário que definiu quem era lembrado e quem era esquecido, exatamente por não militar por essa literatura que eles queriam, apesar de, desde o começo, Belmiro ter feito uma literatura inteiramente brasileira.”
Outro motivo que Sérgio elenca é que Belmiro Braga era autodidata e não teve inserção acadêmica. Isso, ainda mais naquela época, era importante para ascensão e permanência nesse meio. “Belmiro, além de tudo, viveu na precariedade.” O último é que ele morreu em uma época em que a poesia, segundo Sérgio, não estava em alta, e os romances ganhavam mais destaque. Tudo isso, para Sérgio, contribuiu para seu apagamento. E foi mesmo gradual. Porque, entre o final de 1939 e o começo de 1940, amigos arrecadaram dinheiro para fazer um busto de Belmiro Braga no Parque Halfeld. Mesmo com dificuldades, conseguiram. Sérgio conta que, depois, até caravanas faziam para ir ver o busto. “Era como uma imagem de santo. Ele era ovacionado e foi cultuado principalmente em vida.”

Atual exercício de busca

Belmiro Braga tinha uma grande biblioteca em Juiz de Fora. Mas, ao mudar-se para o Rio de Janeiro, vendeu praticamente tudo, cerca de mil exemplares, a uma livraria da cidade. Tantos anos depois, esse acervo está espalhado em casas de pessoas que podem nem saber da estante de quem eles saíram. No entanto, um desses livros (não escrito por Belmiro, mas de sua coleção) acabou parando na Biblioteca do Mapro, perto de Sérgio.
Reunir esse acervo, de forma a facilitar as pesquisas e até fazer com que o povo conheça melhor a vida de Belmiro Braga é uma das vontades do atual secretário de cultura, lazer e turismo de Belmiro Braga, Afonso Cézar Valério Tassara Gouvêa. A cidade não tem nada que lembre que foi naquela região que nasceu o escritor. De acordo com o secretário, eles, agora, vão contar com a ajuda de Leila Barbosa para recuperar essa história e demarcá-la em tempo e espaço, em seu devido lugar. Quem sabe, com um merecido museu. “A cidade está comemorando 60 anos, e a gente está tentando fazer esse resgate para deixar registrado que foi aqui que ele nasceu. Mas a gente realmente não tem nada. Por isso, o contato com a Leila: para reunir esse acervo e pensar em um espaço para ele. É ainda o começo de um projeto, de uma ideia.”

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