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Espetáculo combate a violência contra a mulher

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ROSACHOQUE 01
Cena de “Rosa choque”, que desperta para abusos não apenas físicos, cometidos diariamente contra a mulher. (Foto: divulgação)
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A vítima, violada em seu corpo, sua dignidade, sua sanidade e em todas as formas em que pode perceber-se, dirige-se à delegacia, com o que lhe resta de forças.

– Eu sofri um estupro.
Como acontece tantas vezes, policial, do sexo oposto, tenta desmerecer o relato, como se crime fosse delatar quem agride.
– Mas você tinha bebido? Que roupa estava usando? Por que andava só por aquela rua?
A autoridade máxima do local repete a ladainha, e na insistência da vítima em não se calar, por fim, determina.
– Então faz um corpo de delito.
É o único crime em que o relato de quem sofreu não vale por si só. Em que seu corpo é revirado uma vez mais, só para provar a primeira (primeira?).

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O jogral acima se repete diariamente na vida real, com uma infeliz naturalidade que já não choca com facilidade. Imagine, agora, que a vítima do estupro é homem, e que todos os interlocutores que questionam seu discurso são mulheres, constrangendo o denunciante de inúmeras formas e tentando fazê-lo crer que é culpado pela violência que sofreu. Causa estranhamento, não? É exatamente sob o choque da inversão de papéis que o espetáculo “Rosa choque”, do coletivo Os Conectores, de BH, lança holofotes sobre questões imprescindíveis como as diversas formas de violência, extermínio, silenciamento e opressão contra a mulher.

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“A ideia é mostrar, por meio do incômodo que causa assistir a cena vivida por um homem, o quanto essa violência é naturalizada contra as mulheres e o quanto isto é inaceitável, um absurdo”, diz a atriz Cris Moreira, que divide o palco com Guilherme Théo na peça dirigida por Cida Falabella e construída a partir de notícias de jornal, falas de grandes ícones feministas como Frida Kahlo e de relatos de experiências vividas por ambos e também pelo restante da equipe. “Foi um processo muito coletivo de ouvir as pessoas, sobretudo as mulheres. “Usar vivências permite que a gente execute o que chamamos de teatro da realidade, que é criar ficções a partir de acontecimentos do cotidiano. Quase tudo em ‘Rosa choque’ é construído no real, e o peso disto em cada depoimento que embasou a peça mostra a relevância e a urgência de se discutir o tema continuamente.”

Desconstrução e reconstrução

(Foto: divulgação)

“Rosa choque” estreou em 2015 e já teve mais de 50 sessões desde então. Em 2017, o espetáculo venceu as principais categorias do Prêmio Copasa/Sindicato dos Produtores de Artes Cênicas de Minas Gerais (Sinparc), sendo eleito o melhor espetáculo, com melhor direção, melhor ator e melhor iluminação. O espetáculo integra o festival Teatro em Movimento, realizado via Lei Estadual de Incentivo à Cultura, com o patrocínio da Oi. O projeto completa 16 anos neste ano e visa a descentralizar o acesso às grandes montagens do eixo Rio-São Paulo. Desde sua criação, a iniciativa contabiliza 178 montagens, com mais de 526 apresentações, envolvendo cerca de 552 artistas, em 14 cidades, 27 teatros e público superior a 390 mil pessoas.

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A montagem é repensada a cada apresentação, por razões que só fortalecem o impacto e a importância do espetáculo. “Há uma cena com as ‘notícias do dia’, em que lemos relatos da imprensa de casos de abuso e violência. Caso não haja nenhuma matéria no dia, o plano é fazer com as da semana, mas até hoje, infelizmente, não houve uma vez que tivesse faltado notícia”, lamenta Cris. Ainda temos que esperar pelo dia, mas a observar o noticiário nacional da semana, com um homem ejaculando em uma mulher que dormia no ônibus e o estupro da escritora Clara Averbuck em uma corrida de uber – só para mencionar os casos midiáticos -, não há de haver escassez de matéria-prima.

Outro aspecto interessante é a sintonia da dramaturgia com os tempos, abordando temas de grande visibilidade na mídia e na sociedade ou chamando atenção para casos de machismo e opressão da atualidade. “Quando houve na internet a campanha #meuamigosecreto, de mulheres denunciando abusos de homens próximos a elas, incorporamos vários depoimentos à peça. Também nos posicionamos na época do impeachment da presidente Dilma Rousseff, que sofreu vários ataques que um homem no mesmo cargo não sofreria: a crítica às suas roupas, a seu corpo, e o uso de imagens que faziam apologia a um abuso sexual conta ela, como o adesivo no tanque de gasolina de carros que trazia a presidenta com as pernas abertas onde se encaixa a bomba de gasolina”, diz a atriz.

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Em tempos em que o significado do movimento é tão deturpado, Cris faz questão de dizer que “Rosa choque” é, sim, uma obra feminista. “Partindo do princípio de que o feminismo busca a igualdade, para que a mulher tenha poder de escolha sobre o que quer ser, fazer, vestir, dizer, onde e como quer estar. O espetáculo é feminista porque busca o diálogo para que isto possa acontecer, inclusive com os homens. Eu, por exemplo, sou mãe de um filho homem e preciso dialogar com ele para que ele entenda que meu lugar no mundo é tão importante quanto o do pai dele. É esta troca que queremos promover com a peça. Sem ela, não sei se é possível avançarmos como sociedade”, opina Cris.

“Machistas não passarão” – e não vêm passando

Em um clique na seção de comentários de qualquer matéria que traga mulheres como vítima de abuso, agressão e/ou violência, é possível encontrar várias novas formas de opressão: “Aposto que estava de saia curta/decote/ insira aqui outra vestimenta”; “Não devia estar na rua a essa hora”, “Tem que ver se é verdade mesmo”, só para ficar entre as publicáveis. Apesar disso, Cris Moreira afirma que a receptividade da peça tem sido emocionante, e que a única reação negativa se deu on-line, na divulgação da estreia. “Fizeram um comentário ameaçando ir à estreia ‘jogar ovo nas feministas’. Mas ninguém apareceu, acho que se acovardaram (risos).”

Cris acredita que a boa recepção, sobretudo entre os homens, vem da maneira como o texto, a dramaturgia e cada etapa da peça foram pensados. “Não apontamos para os homens e dizemos ‘a culpa é sua’. Entendemos que há uma estrutura social em que as mulheres são mais assassinadas, estupradas, violentadas e oprimidas de diversas formas apenas por serem mulheres. Há homens e mulheres que reproduzem esta lógica, que começa desde cedo, com a diferenciação de brinquedos de menino e menina, quando ensinamos meninas a serem delicadas e meninos a serem espontâneos. Enfim, ocorre uma limitação dos papéis e direitos femininos desde sempre. Para mudar isso, precisamos mudar a sociedade integralmente. A peça é um convite à reflexão e por isso dá uma rasteira em quem vem com discursos de ódio prontos”, opina Cris.

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A atriz acrescenta que o fato de experiências pessoais do elenco e da equipe fazerem parte do espetáculo cria uma poderosa atmosfera de cumplicidade. “Ao final de cada uma das apresentações, pelo menos uma mulher veio dividir com a gente, emocionada, alguma vivência de abuso que tenha sofrido. Igualmente, já cansamos de receber homens chorando, porque percebem, por exemplo, que violência não é só física e que, em pequenos atos do dia a dia, podem estar sendo abusivos e nos agradecem, dizendo ‘eu não percebia que era assim, preciso mudar'”, conta a atriz, que acrescenta: “E quanto mais isso acontece, mais eu vejo que ‘Rosa choque’ precisa circular. Mais do que eu pensava na época da estreia.”

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