Clara Castro, 26 anos, compôs letra e melodia de “Fome de gritar” de uma só vez. Mas a música carrega um paradoxo. Um ar místico, suave, diminuto na melodia. E compreensivo, mas inconformado na letra, como define a própria cantora, compositora e instrumentista natural de Barbacena. “O paradoxo vem da minha própria personalidade”, admite. Já na pandemia, Clara pôde assistir a algumas horas de imagens da própria infância após a família converter algumas fitas VHS. Ali, ela percebeu que já havia uma contradição. “Sempre fui colocada durante a minha vida como uma menina muito doce, quietinha. Só que, ao mesmo tempo, sentia um rock’n’roll por dentro. ‘Fome de gritar’ nasceu nesse clima. A minha voz é doce, só que tem outras coisas além da doçura”, explica. A canção, lançada na última sexta-feira (28), é a primeira das sete do EP “Ana” a ser trabalhada. O álbum será lançado apenas em julho.
LEIA MAIS: Clara Castro faz sua estreia com “Caostrofobia”
“Fome de gritar” nasceu a partir de uma conversa com a amiga Ana Clara. “A gente conversava e falava sobre a pandemia. ‘O que é isso? Como a gente explica?’ Até hoje não consigo processar muito bem o que está acontecendo. Tínhamos vontade de fazer alguma coisa. Mas fazer o quê se podemos fazer nada?”, relembra. A impotência, inclusive, está registrada logo no primeiro verso da composição. Só que, ao mesmo tempo, Clara quer ser um “fogo louco”, aquele que Eduardo Galeano disse em entrevista ao programa “Sangue latino”, do Canal Brasil. “É meio essa vontade. É esse fogo que eu quero ser. Às vezes, recebo mensagens de pessoas falando que é muito gostoso ouvir ‘Fome de gritar’. Ao mesmo tempo, quando penso na música… sei lá. É de uma raivinha também. A doçura da voz suaviza um recado bravo.”
Esse mundo sem cor, esquisito, sem manifestações de vida é o que está para além da doçura da voz de Clara na letra de “Fome de gritar”. “A pandemia revelou também o que a gente fez com a nossa vida durante a humanidade. Eu estava lendo o livro ‘A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami’, do Davi Yanomami, que compara a visão ocidental do mundo à dos yanomami, e como eles têm a nossa visão como absurda. No sentido de que a gente não se importa com o que realmente importa.” A fome de gritar é o desejo de encontrar a cura para essas “criaturas tristes e normais” que não se importam com o que importa, como Clara descreve no refrão. “Somos nós mesmos, mas também essas pessoas que não se permitem descobrir, mergulhar. É muito gostoso olhar para a própria imperfeição. Se desapegar do desejo de ser uma pessoa perfeita.”
A direção e a produção musical de “Fome de gritar” são de Nathan Itaborahy – Clara também assina a produção, diga-se. Já a captação de áudio é de Bernardo Mehy. E a mixagem e masterização, de Luiz Otávio. A música foi lançada tanto como single quanto como videoclipe. O EP “Ana” será audiovisual. Além de cantora e compositora, Clara tem experiência no teatro, conta. “Tudo foi gravado no mesmo cenário. A cenografia é do Fernando Fernandes, inclusive as luminárias, e a direção de Ananda Banhato, que é uma amiga de infância. Foi gravado em take único”, detalha. “Eu busquei muito nesse EP uma energia do teatro. Tanto é que o videoclipe de ‘Fome de gritar’ está descrito como o primeiro ato. Quando tocamos à vera, não podemos voltar o take. Temos que aceitar a imperfeição. O EP audiovisual vai funcionar como um curta mesmo. Todas as músicas têm uma continuidade entre si.”
‘Tem de tudo’
Entretanto, conforme Clara, “Fome de gritar” não dá o tom do EP. “De jeito algum. Tem de tudo”, brinca. A próxima faixa a ser divulgada, revela, se chama “A torre”, interpretada em parceria com Laura Januzzi. “Essa música é até a que tem mais relação com ‘Fome de gritar’. Já tem uma saída para o mundo, por assim dizer, porque se trata do contato com a subjetividade da Laura. Se ‘Fome de gritar’ fala em bruxa, menina, cigana, ‘A torre’ é o ritual de bruxaria.” O EP vai desde ‘Fome de gritar’ até uma faixa sobre a mãe, Glória Bittar, intitulada “Gênesis”. “É bem diferente a energia (das músicas). O álbum tem muito de Juiz de Fora, inclusive. A segunda faixa se chama ‘Fé na fé’, que tem imagens da Avenida Rio Branco. É essa coisa de olhar para o vizinho do prédio ao lado, saber tudo sobre a rotina dele, mas, ao mesmo tempo, não conhecê-lo, não saber o seu nome.”
O EP “Ana” será o terceiro álbum de Clara Castro. A sua discografia já tem “Quarto crescente” e “Caostrofobia”. Só que o próximo trabalho foi uma pesquisa em busca de se reencontrar consigo mesma. Tanto é que o título do EP é parte do nome composto da cantora: Ana Clara. “É mais fácil pra mim agora estar no mundo, saber o que posso oferecer sobre mim”, afirma. Clara, reforça, se livrou de “amarras” e “caixinhas” para assimilar a imperfeição. “Pode ter uma nota que não está tão afinada, mas é verdadeiro. É uma construção para achar um lugar que desperta quase cruamente quem é a Ana que estou procurando, em vez de buscar um lugar apenas estético.” Clara se questionava a quem a sua palavra enquanto artista serviria. “O que as pessoas vão ouvir de mim para compreender as próprias vozes? O EP partiu de um amadurecimento meu enquanto pessoa, de entender, inicialmente, que o mundo é o prédio onde mora, o seu apartamento, o lugar pode interferir.”
De acordo com Clara, em “Caostrofobia”, por outro lado, havia uma pretensão maior, uma coisa sonhadora. “No trabalho anterior, tudo só ia acontecendo, ia acontecendo, e só depois eu parava pra pensar. Foi de muito de fora para dentro”, conclui. Só que, como pondera. Por isso “Ana” é um reencontro. “Foi muito importante, porque se ninguém tivesse me falado como faz, jamais saberia como fazer. Absorvi durante todo o processo tudo o que as pessoas que tinham experiência e estavam ali fazendo o bruto me diziam. O encontro com o Rodrigo Campello (produtor) foi maravilhoso.” Mas “Ana” é um lugar diferente para Clara Castro. “De antes pensar, refletir e depois entender o que posso colocar no mundo. A ideia de fazer tudo a partir do zero foi gestada durante muito tempo, as composições foram revisitadas.”