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O centenário de José Amaro da Silva

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José Amaro da Silva vive em uma casa de fundo no Bairro Santa Luzia, na própria avenida que dá nome ao bairro, ao lado da companheira Maria da Glória da Silva (Foto: Fernando Priamo)
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José Amaro da Silva chega aos cem anos com “dores nas cadeiras”, como o próprio admite. Ao menos, emenda, lhe fazem relativizar outras que já o aperrearam. Mas o centenário, comemorado nesta terça-feira (2), foi incapaz de furtá-lo as memórias do início da vida adulta como um dos músicos do quarteto Conjunto da Saudade. José Amaro era o do pandeiro, às vezes aquele do surdo, embora bateria completa mesmo não tocasse, contou. O Conjunto da Saudade dava expediente em carnavais e aniversários em “casas de família”. Além de memórias de uma Juiz de Fora distante, a vida reservou a José Amaro cinco filhos – três ainda vivos – e, há dez anos, a companheira Maria da Glória da Silva, 53 anos, com quem divide uma casa no Bairro Santa Luzia, Zona Sul.

José Amaro não viveu em Juiz de Fora por apenas cinco anos, tempo em que esteve no Rio de Janeiro, capital. “Fomos eu e mais três para o Rio a pé, em quatro dias, dormindo na estrada e comendo rapadura. Trabalhava entre lá e aqui. Queria servir à Marinha, mas diziam que nos jogavam no mar. Tinha medo que me jogassem ao mar. Na verdade, sempre tive medo de água. Fui à praia muitas vezes, mas nunca entrei. Então, voltei a Juiz de Fora para servir ao Exército”. Ele já fez de tudo na vida, garante, “até dormir na rua”, mas nunca passou fome, o que Maria da Glória confirma após ser indagada pelo companheiro de supetão. Além de quadro militar, José Amaro já trabalhou com capina, em companhia ferroviária – “no bonde” – e como porteiro.

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Embora dispersas, as memórias de José Amaro paradoxalmente ainda lhe dão detalhes preciosos, sobretudo da juventude, quando morava no Lamaçal, atual Bom Pastor. “Ali antes era tudo brejo”, lembra. “Depois que abriram as ruas e começaram a vender os terrenos. Eu tocava direto na antiga Fábrica São Vicente, onde também trabalhei.” Para agradar a mãe, Cecília Rosa da Silva, José Amaro já levou ovos de urubu e gambá para casa. “Você sabe que Juiz de Fora era conhecida como cidade dos gambás, né?!” A mãe o tocou de casa, lembra a risadas. “Eu morava em uma casa de sapé. Dava um vento, o sapé subia e a gente via a claridade lá no céu. Quando chovia, tinha uma goteira em cima da outra dentro de casa e a gente pegava aquelas latas de querosene para não molhar o chão.”

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A carteirinha de músico profissional de José Amaro, expedida em novembro de 1961, é ainda guardada intacta (Foto: Fernando Priamo)

A carteira profissional de músico mesmo foi expedida para José Amaro da Silva em novembro de 1961, quando já tinha 40 anos. O documento do Conselho Regional de Minas da Ordem dos Músicos do Brasil o intitulou como guitarrista de música popular. Mas, nas observações, fez-se o registro: instrumentista. “Nunca bebi, nunca fumei. Mas perdi muita noite de sono nesse negócio de baile. Toco um cadinho de violão, um cadinho de cavaquinho, pandeiro, surdo, um cadinho de acordeom e teclado.” Multi-instrumentista, sim, mas também compositor e parente de Geraldo Pereira. “Eu componho, faça uns sambas, faço uns xodós. Eu tinha um primo… primo, não, meu tio. Tio de segundo grau. Ele é irmão de um tio meu.” As canções de própria autoria chegam a 30, revela.

Todos os músicos à época tocaram com José Amaro em bailes, assegura. “Em todo ‘circo’ que tinha aqui em Santa Luzia a gente ia tocar. O pessoal vinha aqui pra casa. ‘Ah, vamos tocar lá?’ Vamos. Aniversário, casamento… tocávamos em uma festa do Jóquei Clube. Só dava nós. Antigamente não tinha microfone. Era peito mesmo. Tinha quatro camaradas que cantavam. Cantavam, mas a turma ajudava, né?” José Amaro às vezes arriscava como intérprete, mas o ofício, de fato, era reservado aos instrumentos. A roupa, ao menos, relembra o instrumentista de décadas passadas: camisa social listrada já desbotada, presa a uma calça verde militar e sapatos brancos.

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Homenagem ainda em vida

Mas uma das passagens mais gratificantes da carreira de José Amaro deu-se há apenas cinco anos, quando ele fazia aulas de teoria musical na Associação Cultural e Beneficente Ítalo-Brasileiro Anita Garibaldi, no Bairro Dom Bosco, onde morava à época. Na ocasião, José Amaro conheceu a intérprete Sil Andrade e lhe convidou para visitá-lo, porque queria mostrar a Sil as próprias composições. A princípio, uma visita. No final das contas, meses de convívio. Sil, então, levou algumas composições para concursos de marchinhas, e outra, intitulada “O luar”, para o EP “TREMinhão: mineirices & poesia”, lançado em 2016. A canção é a única de José Amaro da Silva gravada.

O teclado, disposto à frente do raque da sala, é um dos vários instrumentos tocados por José Amaro da Silva (Foto: Fernando Priamo)

O Senhor José, diz Sil, além de tudo, é um cronista. “O Senhor José Amaro é um centenário, um homem negro, compositor e periférico. Durante todos aqueles meses, eu frequentei o Dom Bosco tentando tirar dali uma cultura muito forte. Eu me encantei pela coisa do luar. ‘O luar é muito bom’, sabe? Uma coisa que, para a gente, para a minha geração, é desconexo, mas bem metafórico, bem poético, bem questionador.” No último sábado (30), Sil, ao lado do músico Gilberto Costa, homenageou José Amaro em uma intervenção no Recuo do Sol, no Calçadão, no qual ele esteve presente.

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Sil, agora, enquanto conselheira de cultura, pretende indicar José Amaro da Silva, no ano de seu centenário, à Medalha Geraldo Pereira. “A Funalfa tem que armazenar essa memória, tem que valorizar, principalmente pelo fato de ele estar vivo, que é o que a gente precisa, homenagear quem está vivo. Do contrário, fica igual a esses viadutos, com o nome de gente que nunca vai se pesquisar quem é. Daqui a seis, sete anos, o Senhor José Amaro pode não estar aí. O que eu puder fazer para deixar esse registro cada vez melhor, vou fazer.”

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