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Peça Os impostores, com três atores de JF, faz temporada no Rio

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Família aristocrata mantém vida de luxo em bunker enquanto lá fora o mundo acaba. Da esquerda para a direita: Pri Helena, Murilo Sampaio, Suzana Nascimento, Carolina Pismel, Guilherme Piva e Tairone Vale. (Foto: Elisa Mendes/Divulgação)
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O Rio de Janeiro está destruído. Não como hoje, mas literalmente arrasado. A Amazônia acabou. Não como hoje, mas integralmente extinta. “Os impostores” apalpa o que hoje é exagero, temor ou previsão. Faz de hoje o que parece ser amanhã. O mais novo espetáculo dirigido pelo premiado Rodrigo Portella, encenador natural de Três Rios com passagens por Juiz de Fora, é uma distopia na qual as ruínas se espalham do lado de fora e também se fazem paisagem no lado de dentro. Para se proteger de um caos que dura anos, décadas e, talvez, séculos, uma família vive num bunker sob o Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro, com um imenso estoque de alimentos e bebidas grifados. Ninguém sai, mas um hóspede entra e desestabiliza a convivência. “A peça fala sobre o Brasil de hoje, o mundo de hoje, o Rio de Janeiro de hoje. Uma cidade, um estado e um país tomados por um grupo de pessoas que governam não para todos, mas sob uma perspectiva ideológica, que critica as questões ideológicas, mas governa nesse sentido. Um governo que censura, que critica, que reprime e se protege sobre o manto da defesa da família, dos valores, dos bons costumes e da fé. As ações não condizem com as falas”, aponta Portella, sobre a montagem em cartaz até 1º de dezembro no Sesc Ginástico, Centro da capital fluminense.

Em segunda instância, pontua Portella, se apresenta o aspecto ecológico. “Vivemos grandes hecatombes ecológicas no mundo hoje, e o Brasil tem sido o foco disso. Os olhares estão todos voltados para cá. Temos problemas com incêndios, com enchentes, com derramamento de óleo. A peça fala de forma contundente sobre essa questão”, diz, citando uma das cenas da personagem Camille, que pede ao pai dinheiro para salvar a diversidade, e o pai nega, respondendo: “Que diversidade o quê! A gente tem que salvar o que é nosso!”. “É preciso que morra uma parte para que outra possa prevalecer? A peça também toca nessa ideia de ‘limpeza'”, observa o diretor da peça, cuja metade do elenco é formada por juiz-foranos: Pri Helena, que dá vida a Camille, Tairone Vale, que interpreta Neto, o pai, e Suzana Nascimento, a babá Ivani.

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“É uma família bastante heterogênea, também não tem uma unidade”, avalia Portella, chamando atenção, ainda, para os outros três atores: Carolina Pismel, a mãe Glória, Murilo Sampaio, que vive o jovem Amado, e Guilherme Piva, intérprete do hóspede. “A peça fala de uma família que vive num buraco, protegidíssima, tentando manter a vida na aristocracia. Eles estão dentro de um buraco e também têm seus buracos. Por isso, a chegada desse homem é uma salvação, porque ele chega tampando os buracos dessas pessoas, mudando as vidas. Vejo muito isso acontecer hoje. As pessoas, todos nós, têm muitos buracos, muitas fragilidades, com a autoestima em frangalhos, por conta da vida difícil, de tantas coisas ruins acontecendo. Uma figura que chega para salvar acaba hipnotizando”, comenta Suzana Nascimento. “Ele detém a informação, e acho que hoje em dia os maiores tesouros são os dados das pessoas”, acrescenta.

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“O texto foi sendo construído. A linguagem foi se modificando. Ainda estamos entendendo o tom exato dessa peça. Falo para o Rodrigo que o gênero dela, para mim, é o esquisito, no bom sentido, porque a gente não consegue classificar nem como comédia, nem drama, nem farsa. Ela tem uma linguagem complexa, ora de realismo, mas com tons de absurdo”, aponta Tairone Vale, para quem a montagem assume um papel de espelhar os dias e as gentes, sem dissimulações, mas com a potência das metáforas. “A arte em geral é um grande desabafo, um grande espelho, um grande grito de libertação, para botar para fora tudo o que está engasgado. A crítica do teatro surge a partir dessa necessidade de falar. Arte só pelo estético tem seu lugar, mas sem crítica não reflete a totalidade das angústias do que o ser humano passa. Esse espetáculo é pura crítica do poder de cima para baixo, da censura, da dominação da religião.”

“A peça fala sobre o Brasil de hoje, o mundo de hoje, o Rio de Janeiro de hoje. “, defende diretor Rodrigo Portella. (Foto: Elisa Mendes/Divulgação)

Contradizer-se é humano

Projeto de Gustavo Pinheiro, que assina o texto com Rodrigo Portella, ao lado da produtora Cláudia Marques, “Os impostores” parte de “Tartufo”, comédia de Molière. Parte, não estaciona. “O impostor no ‘Tartufo’ fica muito claro logo de cara que é um salafrário, espertalhão e aproveitador. Na nossa montagem, tento redimensionar esse personagem para que não fique chapado nessa ideia de ‘o malvado’, ‘o algoz’, ‘o vilão’. Ele ganha um grau de humanidade, porque diz coisas importantes de serem ditas”, observa o diretor, contando da mãe, evangélica, que segue à risca os preceitos de sua igreja. “Ela é massa de manobra também, mas não é só isso. Além disso, ela é minha mãe, esposa do meu pai, é professora, tem as opiniões dela, não concorda com tudo. Tudo é muito complexo, e eu tento trazer essa complexidade para o palco”, explica ele, aclamado por “Tom na fazenda”, uma das mais premiadas peças do teatro nacional recente.

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“Tento sempre em meus trabalhos não colocar tanto o meu ponto de vista sobre uma coisa. Meu processo é dar uma descamada para fazer com que possamos ter vários olhares. A sociedade contemporânea é muito complexa. Nós, seres humanos, somos muito complexos. Acho que a palavra que melhor define o humano é a contradição. A gente é curvo, com pontas soltas, não se fecha, não tem ideia da unidade. O que tento fazer é trazer humanidade para os personagens em todos os sentidos, falando dos seus atos de violência contra o outro, das suas imposturas, mas também falar das suas dores. Não que uma coisa justifique a outra, mas coexistem na gente, na vida e nesses personagens. A poesia vem desse encontro com o humano, com as contradições. Meu desejo não é só criticar um determinado comportamento. É também, mas, de alguma forma, fazer olhar para outro lado”, define ele, dizendo experimentar lugares inéditos em sua carreira. “Tem uma coisa sacana na peça. Às vezes, fico olhando e digo: ‘Isso é uma grande gozação!'”, diz, citando como referências o dramaturgo norte-americano Nicky Silver e seu trânsito entre realismo e absurdo e o cineasta norte-americano Quentin Tarantino. “É uma coexistência de linguagens num ambiente harmônico. Tem coisas no nível do absurdo e outras no drama pessoal. Os personagens não são coerentes com a lógica que normalmente se opera na ficção.”

Tairone Vale: “A arte em geral é um grande desabafo, um grande espelho, um grande grito de libertação, para botar para fora tudo o que está engasgado. A crítica do teatro surge a partir dessa necessidade de falar”. (Foto: Elisa Mendes/Divulgação)

Ser complexo é humano 

Como numa potente lente de aumento, os personagens de “Os impostores” representam quem anda na ruas, nas vielas, nas avenidas, nos shoppings e nos gabinetes. Neto, o pai, é um patriarca da elite, dono de um patrimônio secular, poderoso e pai de família. É também um homem frágil. “Vivemos hoje um momento social e histórico no qual a masculinidade tóxica está sendo investigada e questionada, e esse personagem me dá a oportunidade de discutir e avaliar isso. Fatalmente em algum momento de nossas vidas vivemos esse contraste de ter que ser um homem forte e, por dentro, estar se desintegrando”, sugere Tairone Vale, mais uma vez dirigido pelo amigo Portella, e mais uma vez numa produção maior, tão robusta quanto a de “Insetos” (com direção de Portella), da Cia dos Atores, na qual participou ano passado como substituto. Seu Neto sofre de dores intensas com ossos que não param de crescer, o que lhe exigiu uma preparação física rigorosa, principalmente para carregar uma mesa pesada, em alguns momentos com atores em cima. Tairone chegou a se acidentar num ensaio. Na última semana, torceu o joelho.

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Pri Helena, por sua vez, torceu-se metaforicamente até encontrar sua Camille. “Ela tem uma trama paralela à principal. É uma menina de 23 anos e quer salvar o mundo, quer salvar as espécies em extinção ou extintas. Ela se preocupa com o meio ambiente, com o solo, as plantas, as aves e passa a trama inteira tentando achar um jeito de sair desse bunker onde a família vive. Ela nasceu ali e nunca viu nada do mundo exterior. Tudo o que ela sabe é pelos livros, então, é muito inteligente, faz contas muito rapidamente, conhece muito sobre vegetação e animais. Ela é tratada pela família como uma criança, exatamente por seus discursos ativistas. Ela não é ouvida. E muitas atitudes dela passam despercebidas. Ela não juga. Ela sente, mas não ressente”, conta a atriz, que, assim como a personagem, também se interessa pelas causas animal e ambiental. “Ela fala de coisas muito importantes, mas a mãe está preocupada com as bebidas dela, o pai em manter a tradicional família brasileira, o outro, com o armazenamento de comida”, ressalta a atriz, já há alguns anos trabalhando com Portella. Camille, segundo ela, traz uma preocupação que não encontra eco perto de problemas muito particulares e fúteis. Para Portella, a personagem é a metáfora do sujeito que o tempo todo, mesmo imerso no caos, busca pela saída.

Ivani, a babá, interpretada pela atriz Suzana Nascimento, parece saber da saída, parece saber muito mais do que diz, mas é menosprezada. “A Ivani é uma babá/governanta/faz-tudo dessa família. Ela é a que organiza tudo, cuida de todo mundo, desde lavar o pé do patrão até depilar a patroa e dar todos os remédios que todos têm que tomar. Ela é muito perspicaz, muito observadora e sabe de tudo o que acontece. Até porque está ali há muito mais tempo do que todos eles. Ela tem uma característica muito especial: está ali há séculos. Ela cuida dessa família há gerações, cuidou do pai, do avô, do bisavô. Não tem uma explicação lógica, e ela está entre dois planos. Ela tem esse lugar da praticidade e também do místico. Ela lê aura, lê mãos, cuida da espiritualidade, por isso é uma personagem muito complexa”, defende Suzana, apontando para uma criação que é onipresente, onisciente e “quase onipotente”, além de representação das desigualdades sociais. “Tem uma cena em que enquanto eles estão tomando champanhe à mesa, ela está no cantinho comendo sua marmita. Ela não senta à mesa com os patrões. Ela é complexa porque em alguns momentos tem muitos poderes, mas, socialmente, tem seu espaço muito definido”, observa a atriz, que pela segunda vez trabalha com Rodrigo Portella, após substituir uma atriz em “Alice mandou um beijo”. “Para mim é muito impressionante o nível de profundidade que ele consegue atingir. Ele se joga inteiro. Doa o que doer, mergulhamos profundo.”

OS IMPOSTORES
De quinta a sábado às 19h, aos domingos às 18h, no Sesc Ginástico (Av. Graça Aranha 187 – Centro). Até 1º de dezembro.

“Os impostores” segue em cartaz até 1º de dezembro, de quinta a domingo, no Sesc Ginástico, no Rio de Janeiro. (Foto: Elisa Mendes/Divulgação)
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