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‘O brasileiro tem lido, sim, e mais’, garante executivo do mercado livreiro

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Aos 13, em 1979, Marcus Telles começou a trabalhar como office boy na livraria fundada pelo irmão Emídio com o primo Lúcio em Belo Horizonte. No ano seguinte já tinha a carteira assinada pela empresa criada um ano após seu nascimento. Foi caixa, vendedor, gerente e, hoje, aos 54 anos, 41 deles dedicado ao negócio familiar, é o diretor da rede de Livrarias Leitura, que este ano se tornou a maior em número de unidades físicas no país. Superou a Saraiva, que, assim como a Cultura, segue em recuperação judicial e, durante a pandemia, reduziu sua capilaridade pelo país. A mais recente loja da rede nascida na capital mineira abriu na última semana, em Juiz de Fora, onde já havia chegado no início do século, quando ganhou fôlego sua política de expansão.

Dono de um discurso otimista e de um olhar generoso em relação ao universo dos livros, Marcus é atualmente uma das principais vozes do mercado, respondendo pela diretoria de comunicação da Associação Nacional de Livrarias (ANL), pela diretoria livreira da Câmara Brasileira do Livro (CBL) e pelo conselho fiscal da Câmara Mineira do Livro (CML). Contrário às teorias apocalípticas, defende um modelo de gestão financeira sem dívidas, que permita enfrentar as muitas crises do negócio ligado à cultura e à educação, áreas historicamente fragilizadas no país. Também defende a paixão como motor para guiar os que estão dos dois lados do balcão.

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“Sempre gostei de ler muito. Peguei gosto com histórias e quadrinhos, como a Turma da Mônica, Disney, e passei a ler bastante”, conta o empresário. “Na minha juventude toda mantive uma leitura acima de um livro por mês. Atualmente não mantenho o hábito tão forte. Consigo ler, completos, cerca de seis ou sete livros por ano e mais alguns que leio partes. Acabo não tendo tempo. Hoje meu tempo é muito ocupado por e-mails, mensagens de WhatsApp e outras coisas”, lamenta Telles, reforçando o resultado da recente edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, que apontou uma queda da preferência pelos livros em detrimento das redes sociais e internet no uso do tempo livre.

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O que lê o diretor da maior rede de livrarias do país? “Acabei de ler a trilogia do Ken Follett, a ‘Trilogia do Século'”, responde Telles, explicando os volumes sobre a Primeira Guerra, a Segunda Guerra e a Guerra Fria. “Também reli, junto deles, a história da Malala”, diz, referindo-se à ativista paquistanesa vencedora do Prêmio Nobel da Paz, Malala Yousafzai. Em entrevista por telefone à Tribuna, o livreiro também critica a taxação dos livros, proposta pelo Governo federal, retrata o impacto das vendas on-line, aposta na juventude leitora e fala sobre os projetos da rede e aponta para sua próxima leitura: “Devo reler ‘O mundo de Sofia’, que li há alguns anos e conta de modo fácil a história da filosofia”.

Há 41 anos atuando no mercado dos livros, Marcus Telles tornou-se uma referência no setor e, também, voz dissonante sobre pessimismo que envolve cadeia. (Foto: Divulgação)

Tribuna – A despeito do que viveram as pequenas livrarias, em crise após longo período fechadas, durante a pandemia a venda on-line cresceu bastante. O que representa o mercado virtual hoje para o universo dos livros?
Marcus Telles – A venda do livro físico on-line ocupou um bom espaço no mercado, até porque as primeiras lojas virtuais no mundo e no Brasil começaram com livrarias. A Amazon, quando iniciou, era uma livraria apenas, e foi assim durante muitos anos. No Brasil, a primeira loja virtual foi uma livraria. Já temos, então, 24 anos de venda on-line de livros. No mundo, são 25 anos. É uma presença importante e representa mais de 40% das vendas. Durante a pandemia, chegamos a ver 90% dos livros sendo vendidos on-line, com as lojas físicas fechadas. Agora, esses espaços já recuperaram mais de 90% das vendas. A Leitura, este mês, vai vender 72% do que vendeu em setembro do ano passado. Estamos numa recuperação bastante boa e, até o final do ano, vamos vender entre 80% e 90% do que vendemos ano passado, mesmo estando com horário reduzido. A venda virtual é importante. Começamos nesse mercado em 1997, ficamos fora durante a crise econômica, saindo em 2015 e só voltando em 2019. Crescemos bastante na pandemia e vimos isso em relação a várias livrarias pequenas, também, que criaram suas lojas on-line.

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O mercado on-line muitas vezes pratica valores bastantes distintos dos praticados em lojas físicas. É possível manter a competitividade?
O mercado virtual tem um problema: empresas, principalmente multinacionais, vendem livros com um preço com margem negativa. Por exemplo: compram por R$ 21, vendem por R$ 24 e oferecem frete grátis, que custaria R$ 10. A venda on-line precisa de equilíbrio. Não adianta vender muito, porque pode perder dinheiro praticando margem negativa. O importante é facilitar ao máximo para o cliente: ele pode escolher comprar o livro físico on-line, pode ser o título digital, pode comprar da loja física e receber em casa ou visitando uma livraria. As pessoas gostam de socializar. A volta das vendas físicas, muito rápida, confirma isso. A venda on-line é bastante madura. E temos espaço para livrarias físicas e on-line. Quando chegou a TV no Brasil, falava-se que o cinema ia acabar. Depois vieram as videolocadoras e anunciaram que os cinemas acabariam. Veio a TV a cabo, os serviços por streaming e, hoje, mais pessoas assistem filmes em vários formatos, momentos diferentes e o cinema mantinha seu crescimento. Assistir a um filme no cinema não é como assistir em casa. A entrega de comida não acabou com a ida ao restaurante. As pessoas são sociais e continuarão visitando livrarias, que já estão acima da média do comércio nessa retomada.

“A entrega de comida não acabou com a ida ao restaurante. As pessoas são sociais e continuarão visitando livrarias, que já estão acima da média do comércio nessa retomada”

Discorda da teoria sobre o fim do livro físico?
O livro é muito resiliente, já tem mais de 500 anos. Falaram que o livro digital poderia ultrapassar o livro físico e, no mundo, não chegou a 20% das vendas. Em alguns países em que passou de 20%, voltou a cair a 17% ou 18%. No Brasil, conforme a área, o livro digital pode estar entre 4% e 5%. Por exemplo, os livros de literatura chegam a 10%. Os livros didáticos, por sua vez, praticamente não são vendidos no formato digital.

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Como a taxação sobre os livros, discutida pelo Governo federal atualmente, impactaria o mercado livreiro e editorial do país?
Essa isenção começou no papel para livro, em 1946, quando o (escritor) Jorge Amado era deputado federal. As constituições mantiveram a isenção para o livro, e a de 1988 manteve a isenção para livros, jornais e revistas. Acreditamos que será mantida agora. Teve uma campanha grande, com mais de um milhão de assinaturas, apoio de muitos senadores e deputados, e apostamos que eles manterão o livro isento. Seria muito triste, depois de tantas crises, o livro ainda ter esse novo imposto. Seria um problema sério para o ramo. O livro é tabelado pelas editoras. Há um valor de tabela que podemos vender abaixo, mas ninguém vende acima. Sem a isenção, é possível que as editoras subam em 10% o preço dos livros, mas com a queda nas vendas esperada, pode ser que esse percentual chegue a 20%. A livraria tem uma margem de desconto fixa e não pode incluir no livro o imposto que cabe a ela, não pode repassar. Então, para as livrarias, que têm uma margem de 4% sobre as vendas, o impacto do imposto pode ser enorme. O livro é um bem educacional muito importante. Mais da metade dos livros vendidos são para escolas, e o mais interessante é que, do total dos livros vendidos no país, cerca de 30% é comprado pelo próprio governo para repassar para as escolas públicas. O impacto da tributação resultaria em pouco imposto e afetaria muito um mercado já difícil, que briga para crescer e se manter. Ele é muito pequeno como arrecadação e muito grande para a educação e cultura do país.

“O impacto da tributação resultaria em pouco imposto e afetaria muito um mercado já difícil, que briga para crescer e se manter. Ele é muito pequeno como arrecadação e muito grande para a educação e cultura do país”

A quinta edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, divulgada este mês, revelou a perda de 4,6 milhões de leitores no país. Acredita que não somos, de fato, um país de leitores?
A verdade é que o país cresceu muito de 20 anos para cá. Houve momentos como essas crises que atravessamos, principalmente a de 2015 a 2017 e a de agora, da pandemia, em que as livrarias, como todo o comércio, tiveram quedas nas vendas. O brasileiro tem lido, sim, e mais, principalmente os jovens. Se a gente achava que com a internet eles leriam menos, isso não aconteceu. Há 30 anos, quase todos os livros lidos pelos jovens eram indicados na escola. Eles não liam livros que tinham escolhidos. Agora, leem séries enormes. Desde (a saga) “Harry Potter” criamos muitos leitores, vieram outras séries, como “O Senhor dos Anéis” e muitas outras. Só da série “Diário de um banana”, apenas a Leitura compra cerca de 10 mil exemplares de cada livro que é publicado. No Brasil as pessoas estão estudando mais, e a tendência é que leiam mais. Quanto mais cresce o nível educacional, quanto mais pessoas terminam o Ensino Médio e ingressam numa faculdade, cresce o número de leitores.

O mercado editorial, durante a pandemia mesmo, viu a lista dos mais vendidos ser frequentada por novas casas e selos independentes. Percebe uma mudança em curso entre as editoras?
O Brasil tem mais de mil editoras, considerando as pequenas. Temos uma boa bibliodiversidade. Hoje temos mais de 200 mil títulos vivos no português do Brasil. E há uma média de lançamentos, conforme o ano, de 1.500 a 2.000 livros por mês. Mudou o perfil de leitura. Durante os anos nós começamos a investir mais na área de não-ficção, com biografias, história, e também na de auto-ajuda. Durante a pandemia, o que notei foi um crescimento na venda de clássicos e de títulos de auto-ajuda. A auto-ajuda dá para entender, porque as pessoas estão nesse momento mais tenso. Já em relação aos clássicos, acredito que as pessoas, com mais tempo em casa, resolveram revisar os livros que demandavam um pouco mais de envolvimento e atenção.

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É necessário que livrarias diversifiquem sua oferta de produtos, não restringindo-se apenas aos livros?
O livro chegou a 56% das nossas vendas e agora voltou a crescer e está em 58%. É possível que feche o ano com mais de 60% das vendas. É o principal produto, mas temos uma diversidade enorme. A gente dá mais opções. Com lojas maiores, resolvemos vender material escolar, papelaria, presentes e alguns jogos mais inteligentes. Só de caderno, tem lojas nossas que chegam a ter de 200 a 400 modelos diferentes. O mais interessante é que, diferente do que o senso comum pensa, o livro físico voltou a crescer no mundo, na China, na Inglaterra, nos Estados Unidos, na Alemanha. No Brasil ele também estava em recuperação, mas tivemos algumas crises pela frente. No geral, acredito no livro e vamos continuar investindo, entendendo que o Brasil é muito grande e tem muitas áreas desassistidas, com espaço para crescer ainda.

“O mais interessante é que, diferente do que o senso comum pensa, o livro físico voltou a crescer no mundo, na China, na Inglaterra, nos Estados Unidos, na Alemanha. No Brasil ele também estava em recuperação, mas tivemos algumas crises pela frente”

Quando a Saraiva e a Cultura entraram em recuperação judicial falou-se muito que o modelo das megastores estava falido. Concorda com isso? É uma regra?
Fizemos diferente da maioria. Quando os outros cresceram com capital de terceiros, empréstimos, tentamos ao máximo crescer usando capital próprio. Isso foi muito importante para enfrentar as crises. Conseguimos passar melhor os momentos difíceis por não termos dívidas e não pagarmos juros. Também temos um custo operacional muito enxuto, com os sócios tocando as lojas e trabalhando, o que me permitiu que mantivéssemos um modelo de crescimento. Houve, sim, uma diminuição de área. As lojas com mais de 2.000m² estão ficando mais difíceis, porque os custos subiram muito e as vendas não acompanharam. Por outro lado, temos lojas com muito sucesso e 2.000m². Ano passado abrimos uma loja grande, com quase 1.800m² em Campinas e foi um sucesso. O importante é abrir em locais com carência. O Brasil é muito grande. Há lugares com muita concorrência e cidades grandes com poucas livrarias. Na Zona Norte de Juiz de Fora, por exemplo, não havia livraria. Tinha uma área grande desassistida.

“O importante é abrir em locais com carência. O Brasil é muito grande. Há lugares com muita concorrência e cidades grandes com poucas livrarias”

Como a nova loja se enquadra no projeto de expansão da Leitura?
A Leitura começou em Belo Horizonte em 1967, e uma das nossas primeiras lojas fora da capital foi a Leitura que fica na Avenida Rio Branco, em Juiz de Fora. Isso foi no início dos anos 2000. Depois a rede cresceu para todo o Brasil, e hoje estamos em 20 unidades da federação, 19 estados e o Distrito Federal. Continuamos crescendo em Minas Gerais. Entendemos que havia uma região da cidade pouco atendida e que comportaria uma nova loja, a segunda em Juiz de Fora. Em Minas Gerais ela é a 21ª e, no total, é a de número 75. Temos planos de, no ano que vem, abrir outra loja no interior do estado, no Triângulo Mineiro.

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Esse momento de pandemia permite investir em novos negócios?
Essa loja estava contratada no ano passado, deveria abrir por volta de maio, mas o comércio estava fechado. Mesmo assim, estamos mantendo nosso plano de expansão. A pandemia foi muito dura, tivemos, em média, quatro meses fechados. Como não tínhamos dívidas, mantivemos nosso planejamento. Durante a atual crise, redes em recuperação judicial fecharam lojas e nós acabamos ampliando o número. Para este ano estavam previstas cinco lojas, e serão abertas, até dezembro, nove. O ritmo de expansão é grande desde julho.

“A pandemia foi muito dura, tivemos, em média, quatro meses fechados. Como não tínhamos dívidas, mantivemos nosso planejamento. Durante a atual crise, redes em recuperação judicial fecharam lojas e nós acabamos ampliando o número”

A que credita o crescimento da rede? Ao modelo de negócio de não trabalhar com franqueados, mas sócios? Existe uma receita?
Temos um cuidado muito grande de crescer evitando dívidas. Cerca de 90% da nossa expansão é feita com capital próprio. Para os gerentes antigos, em quem confiamos e que apresentam um resultado bom, acabamos abrindo novas lojas e oferecendo a sociedade. Hoje, das 75 lojas, em mais de 40 tem um sócio que gerencia a loja. Em Juiz de Fora temos um, e na nova loja, a esposa dele. São sócios que tocam as lojas, adaptam-se à cidade, estão próximos do público e conseguem responder mais rápido às mudanças, fazendo adaptações quando necessário e fornecendo um estoque mais adequado ao local onde está instalado. Em Minas nós falamos, né: “É o olho do dono que engorda o boi!”.

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