“Para assumir nossas raízes, tem que ter coragem. Viva a nossa atitude de mostrar nossa verdade.” Alessandra Crispin deu boas-vindas no seu primeiro álbum lançado, em 2016, o “Meu nome é Crispin”, com uma canção-manifesto de exaltação ao que se é. Mas é interessante que a segunda música, “Novo olhar”, logo em seguida, afirma que “todas as certezas podem mudar”. Não que uma coisa anule a outra. Alessandra segue acreditando que é preciso exaltar a identidade. Mas, agora, acredita ainda mais fielmente nisso. Faz disso seu motivo para seguir cantando. “Exaltando a riqueza da nossa raiz”, afirma. De 2016 para 2023, um tanto de coisa mudou. E são essas mudanças, esse olhar cada vez mais afetuoso e, ao mesmo tempo, combativo, que a cantora juiz-forana imprime em seu novo disco, “O peso da pele”, que vai ser lançado nas plataformas digitais, nesta sexta-feira (2), com direito a show, no Beco, no sábado (3), a partir das 21h30.
Alessandra sente na pele o peso de ser uma mulher preta. Em 2018, esse peso aumentou. O seu ano começou com o episódio no qual ela sofreu injúria racial. “E foi um baque. Eu senti isso na pele mesmo, mais ainda.” Em março, Marielle Franco é assassinada. Ela não acompanhava de perto a trajetória da vereadora, mas, de cara, encontrou um tanto de semelhanças que a fizeram reviver todo o sofrimento do começo do ano. “Eu pensei: ou me recolho ou desabrocho de vez para falar das minhas demandas.” Ela resolveu desabrochar, escancarar os sentimentos porque sabia que, dali para frente, mais pessoas seriam vítimas dessas injustiças. Em 40 minutos, nasce a canção “Presente”, o mote de “O peso da pele”.
Esse foi o respaldo para a construção de “O peso da pele”. “Foi uma música atrás da outra”, assume. A ideia-primeira era que o trabalho fosse gravado voz e violão e que fosse lançado em 2020, já que, em 2019, ela já tinha todas as músicas prontas. Mas veio a pandemia, e o trabalho precisou de uma pausa. O que foi bom: o álbum foi ganhando novas formas, novas parcerias e até novas músicas. “Que bom que está sendo agora. A gente está conseguindo trazer as canções de forma mais madura. No meio da pandemia surgiu uma música, ‘Laranjeira’, que eu fiz para minha mãe, porque fiquei muito tempo sem vê-la. Eu fechei o disco falando de um afeto incondicional. O disco todo tem essas bandeiras: afetos, resistências, religiosidade. Muitas pessoas vão se sentir tocadas mesmo.”
Outra sonoridade, com o samba
Até a sonoridade mudou. O primeiro artista a ser convidado para participar do disco foi João Paulo Lanini, músico que acompanha Alessandra desde sempre, bem como Mari Assis, com quem ela divide os palcos no projeto Samba de Colher. Mas, além disso, ela queria realizar uma mistura de sonoridade: colocar o samba ao encontro com outros ritmos, principalmente de origem afro. Ela convidou a DJ Black Josie, de Belo Horizonte, para arranjar as músicas, e Almin Bah para completar a percussão. “Um casamento perfeito”, brinca. Mesmo que construído à distância, o trabalho ganhou exatamente o formato que ela queria.
“A gente trouxe esse disco nesse lugar de experimentar mesmo e trazer, através dos beats, outras influências do afropop, da música africana, e a DJ Black Josie foi apresentando novas coisas. E foi interessante. É um projeto que vem não só através das letras apresentando a cultura afro-brasileira. Em cada detalhe dele a gente quis exaltar as nossas raízes.” Isso sem perder de vista o samba, claro, já que foi com ele que Alessandra subiu ao palco do The Voice Brasil há dez anos. “Eu brinco que o samba é como um cômodo da minha casa. Eu falo que esse disco não é só sobre samba, mas tem também.”
“O peso da pele” marca como se fosse uma nova fase na carreira de Alessandra. “Dá para perceber um momento de maturidade. Eu direcionei o que eu quero, a voz que eu quero, a direção da minha fala. O primeiro disco veio falando de amor, de descobertas, samba e alegria. Agora, não é questão de tristeza, é o conteúdo: as bandeiras mais direcionadas. Eu já não sou mais a mesma pessoa de 2016. Eu me deixo levar muito mais pela arte e tenho mais carinho comigo mesma. Sempre fui muito perfeccionista. Hoje eu entendo que a Alessandra fez o que precisava fazer. É autoconhecimento. Por mais que me trouxe a clareza da dor, que você entende que passou e passa pelo racismo, a Alessandra passava por isso de forma calada, gerando muita insatisfação com a vida. Nesse novo momento, eu me permito indagar as coisas.”
O show
No show, Alessandra apresenta tudo isso, junto com João Paulo, na guitarra e no violão, Mari Assis, na percussão, Tiago Lazzarini, no baixo, e João Cordeiro, na bateria e nos samples. Além de suas autorais do novo disco, ela antecipa que vai passar pelo outro disco e ainda vai incluir artistas que a ajudaram a pensar, como referência, o “O peso da pele”. Entre os nomes que vão aparecer no repertório, estão: Dona Ivone Lara, Elza Soares e Luedji Luna. “O disco é para trazer de volta o povo negro e, em especial, a mulher negra para o seu lugar de origem que é a realeza.”