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Do Grande Irmão à “Fazenda dos Animais”

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Com o avanço da extrema-direita e do fascismo em diversas partes do globo, livros como “1984”, de George Orwell, voltaram a ser lembrados, lidos e relidos, tiveram sua relevância reforçada pelo poder de suas histórias e, em muitos casos, retornaram à lista dos mais vendidos e ganharam novas reedições.

Pois a obra do escritor britânico, publicada em 1949, deve ter seu alcance ampliado a partir de 1º de janeiro de 2021, quando entra em domínio público. Morto em 21 de janeiro de 1950, o escritor britânico está na lista de artistas cujas obras terão os direitos autorais encerrados nos países em que as obras passam ao domínio público no ano seguinte ao 70º aniversário da morte do criador.

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Ao entrar em domínio público, a obra de um artista pode ser utilizada de diversas formas sem a necessidade de pagamento de direitos autorais aos herdeiros. No caso da literatura, qualquer editora pode publicar a obra ou criar novas versões a partir do original. As versões para o cinema também estão liberadas de qualquer negociação. No geral, uma obra em domínio público pode ser adaptada, recriada, ganhar sequências ou novas histórias, utilizada em propagandas, e isso também vale para filmes, obras de arte, músicas e outras criações que se enquadrem nessa questão.

Anticomunista?

Quando se pensa em George Orwell, “1984” é a obra que primeiro vem à memória. O livro – uma distopia sobre um regime totalitário que reescreve a história, proíbe a liberdade de expressão e pensamento e vigia com mão de ferro todos seus cidadãos – ganhou força e novos debates graças ao avanço da extrema-direita e regimes antidemocráticos em países como os Estados Unidos, Brasil, Polônia, Hungria e Belarus, entre outros. Mas é outro trabalho do autor, “A revolução dos bichos”, que tem causado maior repercussão, pelo menos por aqui.

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Lançado em 1945 com o título “Animal Farm” (“A Fazenda dos Animais”, em tradução literal), ele chegou ao Brasil no início dos anos 60 com o título pelo qual é conhecido até hoje. Na ocasião, o responsável pela publicação foi o Ipes (Instituto de Pesquisa Social), considerado por muitos pesquisadores e historiadores como um dos maiores propagadores do anticomunismo no país e ideólogo do golpe militar de 1964, e no qual trabalhava um dos maiores escritores brasileiros do século XX, Rubem Fonseca. Como não se tratava de uma editora, ela na verdade bancou a publicação do livro pela gaúcha Editora Globo, com o compromisso de assumir eventuais prejuízos.

Na época, o responsável pela tradução foi o então tenente Heitor Aquino Ferreira, que foi secretário do general Golbery do Couto e Silva (criador do SNI, Serviço Nacional de Informações) e do presidente Ernesto Geisel. Ainda que seja uma sátira ao regime comunista soviético, a história nunca teve o viés anticomunista que pode se observar na tradução de Heitor Aquino a partir de certas “liberdades de adaptação”.

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Agora, com “A revolução dos bichos” em domínio público, várias editoras preparam novas versões traduzidas da obra. Algumas irão manter o título pelo qual o livro se tornou popular por aqui, enquanto outras já anunciaram que vão adotar a tradução literal. Então, se por acaso topar na livraria ou na internet com “A Fazenda dos Animais” de George Orwell, não se tratará de uma obra inédita e descoberta recentemente; será apenas uma versão mais “próxima”, por assim dizer, do original.

“Tarzan” em domínio público

Outro escritor cujas obras entram em domínio público em 2021 pela “regra dos 70 anos” é o norte-americano Edgar Rice Burroughs, criador de personagens como Tarzan e John Carter, que agora terão suas dezenas de histórias escritas por ele livres do pagamento de direitos autorais, além de tantas outras obras de ficção científica de sua autoria. O mesmo vale para o dramaturgo, romancista, contista e jornalista britânico George Bernard Shaw, Prêmio Nobel de Literatura em 1925 (recusado por ele) e autor de obras como “Pigmaleão” e “Cesar e Cleópatra”.

Além destes, também terão suas obras em domínio público (entre outros) o chargista e ilustrador brasileiro J. Carlos; o pintor japonês Hiroshi Yoshida; o pintor e artista gráfico alemão Max Beckmann; o trompetista de jazz norte-americano Fats Navarro; o inglês George Cecil Ives, que foi escritor, poeta e ativista dos direitos dos homossexuais; o compositor alemão Kurt Weill, autor da “Ópera dos Três Vinténs”; o escritor alemão Heinrich Mann; o diretor, produtor, roteirista e ator norte-americano Rex Ingram; e o poeta norte-americano John Gould Fletcher.

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Jimi Hendrix “free”… na Bolívia

O acordo que garante os direitos autorais para os descendentes do artista até 70 anos após sua morte (no Brasil, os direitos caducam automaticamente se não houver herdeiros) foi assinado em 1886 na Suíça, e até hoje países como o Brasil, Paraguai, Chile, Nigéria e toda a Europa (exceto Espanha e Belarus) seguem a chamada Convenção de Berna. Porém, há países em que o direito autoral deixa de valer após os 50 anos da morte de seu criador, casos do Uruguai, Bolívia, Japão, Vietnã, Nova Zelândia, África do Sul, Argentina, Canadá e Coreia do Sul, entre outros.

Nesses países – e somente neles, se tentar dar uma de “João Sem Braço” por aqui não vai colar -, passam a ser de domínio público a partir de 1º de janeiro de 2021 as obras de artistas como o guitarrista Jimi Hendrix; o escritor britânico E. M. Foster; o escritor japonês Yukio Mishima; o artista plástico norte-americano Waldo Pierce; o filósofo britânico Bertrand Russell; e o músico de blues norte-americano Slim Harpo. Há países que são ainda mais radicais, como a Colômbia (80 anos) e México (“eternos” 100 anos).

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E nos Estados Unidos…

Por ser o centro do universo da cultura pop e de entretenimento em nosso mundo – além de ser o mais capitalista dos capitalistas entre as nações -, os Estados Unidos têm uma relação absolutamente particular com os direitos autorais. É lá que estão muitas das principais gravadoras, emissoras de TV, editoras, escritores, cantores, músicos, conglomerados de entretenimento, estúdios de cinema… e a Disney.

Até 1976, valia nos Estados Unidos a lei de direitos autorais de 1909, que estipulava um prazo de 56 anos para a duração dos direitos sobre obras e personagens. Neste ano, porém, com o lobby da Disney, o Congresso norte-americano aprovou o Copyright Act, que estabelecia a validade dos direitos autorais até 50 anos depois da morte do autor (ou autores) e até 75 anos para copyrights pré-existentes. Com isso, os direitos sobre o Mickey Mouse, que caducariam em 1984, foram estendidos, e o desenho animado “Steamboat Willie”, primeira aparição do Mickey (1928), entraria em domínio público apenas em 2004. Não é nada, já seriam alguns milhões ou bilhões de dólares apenas para o cofre da empresa.

Preocupada com a proximidade – novamente – da perda da exclusividade, a Disney voltou à carga nos anos 90 e conseguiu o apoio de outros conglomerados de mídia para modificar a legislação em 1998. Daí veio a chamada “Lei de Proteção ao Mickey Mouse”, que estabelece os direitos de copyright por 95 anos. Com isso, os Estados Unidos só voltaram a ter trabalhos em domínio público apenas em 2019 – por causa da nova lei, apenas o que foi criado até 1922 estava livre da cobrança de direitos autorais, e foram mais de duas décadas sem mudanças.

Fitzgerald

Para 2021, entram em domínio público livros, filmes, músicas e outras obras lançadas em 1925, como “O grande Gatsby”, de F. Scott Fitzgerald. Também entram em domínio público obras de artistas que morreram em 1950, desde que nunca tenham sido publicadas. Como um levantamento do próprio Congresso norte-americano já apontou que apenas 2% das obras com mais de 55 anos têm algum valor comercial, não haverá nenhum grande auê nos Estados Unidos.

Quanto ao Mickey Mouse, o tempo de “Steamboat Willie” está passando. A animação entrará em domínio público em 2024, assim como o visual do ratinho no desenho (preto e branco e sem as luvas brancas e o calção vermelho). Até o momento, a Disney não tem feito nenhum movimento para tentar postergar seus direitos sobre a animação e o visual do personagem. Uma possibilidade seria alegar, a partir de 2024, para a acusação de violação de marca registrada, que é eterna. Mas aí é uma questão que deixaremos para os advogados especialistas no assunto.

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