Com o retorno da presencialidade das aulas, ao contrário do que muitos pesquisadores e professores pensavam, incluindo Liamara Scortegnana, professora do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), que trabalha há anos com educação digital, não houve interesse em adotar de forma tão intensa a tecnologia nas salas de aula. “Voltamos a um ensino convencional, com professor falando, sala de aula e um quadro. Na maioria das vezes, com o não uso das tecnologias ou o uso de forma muito limitada”, explica. Para ela, isso acontece por três grandes motivos, a partir da experiência de uso de forma emergencial que aconteceu na pandemia: falta de infraestrutura para o uso de tecnologias, lacunas de formação e formação continuada para os professores saberem utilizar esses meios e usos inadequados/excessivos dos recursos disponíveis.
Apesar das dificuldades da implementação nas salas de aula, no entanto, a liberdade digital já influencia a postura dos alunos fora das escolas – o que gera urgência nas pesquisas neste âmbito. “Hoje, temos as IAs para fazer apresentação e textos, por exemplo. Como o professor não tem uma formação específica, ainda não se sabe como lidar com essa situação. Nós, na universidade, ainda estamos analisando esses casos. O que os professores devem fazer quando receberem um texto que não foi escrito pelos alunos, e sim pela IA? Usar ou não usar, não cabe a nós. Se eles quiserem usar, vão usar independente do que nós dissermos”, afirma Liamara.
Mesmo diante os desafios, o uso de tecnologias já tem se mostrado benéfico para diversas escolas saírem do tradicionalismo e se mostrarem mais atrativas aos alunos, conforme explica a professora do curso de Pedagogia da Estácio Francisca Pires. Para ela, as tecnologias podem ser usadas em diferentes graus de escolaridade, mas se estiverem de acordo com esses mesmos tópicos que Liamara explicitou. “Mesmo nas escolas privadas, com todos os recursos disponíveis, isso pode não bastar se o professor não se engajar nesse processo, se não for capacitado e formado para fazer aulas realmente diferentes. Muitas vezes, as tecnologias podem ficar limitadas a aulas tradicionais, e não é isso que seria o grande benefício”, afirma. Da mesma forma, Eliane Medeiros Borges, professora da Faculdade de Educação e diretora do Centro de Educação a Distância da UFJF, deixa claro que o uso das tecnologias em si não garante melhor qualidade da educação, mas que são importantes recursos a serem integrados aos modos mais tradicionais de aprendizado na escola, as técnicas de leitura, escrita e oralidade.
Antes da tecnologia
Para a prefeita de Juiz de Fora, Margarida Salomão (PT), também professora, para além de incentivar o uso da tecnologia de forma igualitária, o município tem preocupações anteriores e ainda mais urgentes, mesmo com todo esse avanço: garantir creche para todos, alimentação adequada para os alunos e o piso nacional para o magistério. “As crianças da classe média vão para a escola para estudar e socializar. Mas as crianças que precisam se alimentar não vão aprender nada sem antes isso (alimentação)”, afirma. Essas ações foram as prioridades nesse âmbito durante o governo do município, conforme explica, mas a implementação de tecnologias também é necessária. “Nós estamos apresentando um projeto ao BNDES para que as crianças todas tenham acesso a tablets, e os professores tenham acesso a laptops, melhorando a estrutura”, explica. Para ela, essa também é uma forma de existirem núcleos de produtores de materiais pedagógicos dentro da própria Secretaria de Educação, que poderiam tornar esses materiais, inclusive, melhores.
Democratização do ensino
A democratização dessas ferramentas tecnológicas, como já fica claro, continua sendo um obstáculo para o avanço dos potenciais. Conforme destaca a professora Eliana Borges, mudar isso exige não só a presença de equipamentos tecnológicos, mas acesso à internet de qualidade, equipamentos compatíveis e estruturas gerais de uso. Alice Queiroz Frascaroli deixa isso claro na sua experiência como professora das redes estadual, municipal e privada: “As dificuldades são de ordem estrutural. A grande parte das escolas públicas não tem equipamento, e quando tem, não tem um ambiente favorável para seu uso. Por exemplo, não adianta ter ‘data show’ se a sala de aula não tem cortina”, exemplifica. Conforme ela explica, os alunos da escola pública ficam com uma defasagem muito grande por conta dessa falta de investimento, tanto em relação à falta do equipamento em si quanto ao investimento na aula em ensinar como lidar com esses dispositivos que os professores poderiam oferecer. “Isso acentua uma desigualdade educacional que já há entre escola pública e privada”, afirma.
Da mesma forma, como esclarece Lawrence Gomes, diretor do Colégio Cave, há dificuldades na implementação da capacitação do uso da tecnologia para os professores. Apesar dos avanços cada vez mais rápidos da tecnologia, isso não acontece do dia pra noite. “Fazer com que um professor inclua em sua didática um processo tecnológico não é simples e trivial. Algumas coisas podem ser feitas, mas ainda não temos uma implementação plena”, diz. Apesar dos desafios para atingir a todos igualmente, os recursos tecnológicos, em sua essência, poderiam democratizar o acesso à informação e facilitar o processo de construção de conhecimento, que é o que a escola deve fazer, conforme destaca Eliana. Mas para isso, como ela explica, é preciso investir em políticas públicas contínuas de inclusão digital no âmbito da educação. “Os custos dessa implementação na educação são demandas que correspondem a um investimento no futuro do país, tanto breve quanto um pouco mais distante. Não deveriam ser considerados ‘problemas’.”
Riscos da exposição
Apesar de os recursos tecnológicos não nascerem para servir à educação, para Alice, podem fazer com que os alunos sintam que estão fazendo parte desse meio. “A gente pode extrapolar os limites físicos da sala de aula”, explica. Para ela, no entanto, há claramente mudanças comportamentais que esses meios geraram entre os públicos mais novos, que os usaram de forma excessiva nos últimos anos. “A pandemia colocou esses meninos inseridos no meio tecnológico com muita intensidade, mas sem orientação adequada para o uso. Percebo que eles ficaram limitados a leituras muito curtas e também superficiais, e até a vídeos curtos, o que impede o acesso ao conhecimento. Vejo que até eles percebem isso. Ficou tudo muito acelerado, e o estudo demanda tempo e ‘monotonia’.”
Os impactos sociais desse uso intenso, como Lawrence destaca, podem até mesmo ser mais assustadores do que os cognitivos “Se hoje não criarmos valores, dentro da escola, para os alunos interagirem, construírem com pessoas, criarem redes de apoio e emocionais, essa tecnologia se torna algo muito complicado”, destaca. Para ele, medidas para incentivar a socialização e interação entre alunos, como a criação de grêmios, projetos de crescimento pessoal e desenvolvimento artístico, podem ajudar nesses problemas gerados por uma socialização através das telas. Para Lawrence, ainda, a conscientização é o principal caminho, e tudo deve ser feito de maneira gradual. “Ano passado, tive a oportunidade de visitar a Microsoft em Seattle, nos Estados Unidos. Através de um programa deles, visitei seis escolas lá, que usam a tecnologia 100% integrada. Teve um diretor de uma escola que disse que levou 12 anos para implantar o que eles têm hoje. É algo que funciona desde a alfabetização, mas que, ainda sim, tem papel, caneta e quadro.”
Educação digital
“Escuto muitos pais falando: ‘Meu filho não lê, só fica no celular’. Mas o celular pode ser o melhor lugar para ler, dá acesso a textos incríveis. Só que não há educação e orientação para buscar esse conteúdo”, afirma Alice. Em sua visão, a principal medida para ser adotada nas escolas é de uma educação digital, que ajude os alunos a usarem esses meios de forma responsável e aliando o conhecimento que pode ser obtido. Isso ajudaria a combater parte dos problemas que enxerga com a chegada das IAs: “Nosso papel é mostrar o benefício desse tipo de ferramenta, mas sem um bom ensino na área de linguagem, o aluno não tem nem condição de avaliar o melhor texto que essa tecnologia pode produzir, por exemplo, para atender o objetivo dele”, diz.
Da mesma forma, Francisca ressalta que a utilização de ferramentas tecnológicas sem o auxílio de professores pode ser combatida se na educação básica já tiver uma “formação diferenciada para esses alunos, entendendo a importância de autoria dos seus trabalhos, de combate ao plágio, de construção de suas próprias ideias”. Orientar esse uso, conforme destaca Eliana, também envolve desafios próprios, mas precisa ser um caminho urgente para um futuro em que ignorar os impactos desses recursos não seja uma opção. “Isso evidencia questões éticas que deveriam ser trabalhadas na escola, mas também na sociedade em geral. Isso implica na necessidade de que, concomitantemente ao uso, se promova uma formação crítica para as mídias, que não são neutras e têm interesses, para que os alunos tenham mais liberdade e autonomia no seu uso.”