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Entrevista: Cleber Miranda, investigador da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher

CLEBER MIRANDA arquivo pessoal site
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A Lei Maria da Penha completou 16 anos em agosto, quando foi celebrado o Agosto Lilás, campanha que em 2022 teve como tema “Um instrumento de luta por uma vida livre de violência”. Os trabalhos de enfrentamento contra as mais diversas formas de agressão às mulheres, no entanto, continuam durante todo o ano na tentativa de frear a triste realidade: em 2021, uma mulher foi morta a cada sete horas, em média, vítima de feminicídio no país, segundo dados oficiais. Em Juiz de Fora a violência feminina também não dá trégua, e casos são registrados diariamente pela Polícia Militar.

Mas são iniciativas, como a do mestrando em ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Cleber Miranda, que dão fôlego e esperança de que a brutalidade enraizada na mentalidade machista da sociedade se transforme. Investigador da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) há 11 anos, Cleber decidiu pesquisar na pós-graduação a eficácia dos grupos reflexivos para autores de violência contra mulheres, a partir da sua própria experiência nesses encontros.

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“Os homens que participam dos grupos são de vários segmentos sociais, da escolaridade mais baixa à alta, de todas as raças e classes sociais. O que nos faz refletir que essa construção da masculinidade hegemônica e por vezes tóxica é ensinada a todos, independente de sua classe, raça ou classe social. Há um contrato social implícito e coercitivo em como os homens devem se portar, e é esse contrato que queremos rever para que esses homens possam enxergar as várias possibilidades de masculinidade.”

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Cleber Miranda é investigador da Delegacia de Mulheres há 11 anos e, na UFJF, pesquisa a eficácia dos grupos reflexivos para autores de violência contra mulheres (Foto: Arquivo Pessoal)

Tribuna – Qual o nome do grupo, como e quando ele surgiu? De quem foi a iniciativa e qual é a proposta principal?

Cleber Miranda – O nome do grupo é o mesmo que consta na Lei 11.340, mais conhecida como Lei Maria da Penha: Grupo Reflexivo para Autores de Violência contra Mulheres. No ano de 2020, a Presidência da República alterou essa lei e passou a obrigar o agressor a frequentar centros de reabilitação com acompanhamento psicossocial. Desde então surgiram vários grupos pelo país. Aqui mesmo, em Juiz de Fora, o professor Luiz Gibier já desenvolve esse trabalho. Contudo, com a obrigatoriedade de que homens frequentem esse grupo, passou a surgir uma demanda maior de locais que possam acolher esses homens. Como trabalho há 11 anos na Delegacia da Mulher, sempre percebi um alto índice de reincidências de agressores de violência doméstica e sempre me intrigou o fato de não haver um trabalho consistente com esses autores para que tivessem maior consciência de suas atitudes, de suas construções violentas baseadas nos moldes do patriarcado e do machismo. Foi quando soube da alteração da lei e decidi apresentar um projeto de pesquisa no Programa de Pós-Graduação das Ciências Sociais da UFJF, para verificar a validade desses grupos e a real eficácia deles na reincidência da violência doméstica. Estou sendo orientado pela professora Celia Arribas, que já faz um estudo relacionado às questões de gênero. A principal dificuldade era um espaço para que pudessem ocorrer as sessões, inclusive, para que os assistidos não ficassem inseguros ou estigmatizados, pois a proposta é reeducar esse homem, e não marginalizá-lo. Foi então que em conversa com a Senira Regina, idealizadora da Casa de Therta, que conseguimos o espaço para nossos encontros. O primeiro grupo iniciou no mês de junho. Atualmente temos três grupos funcionando na Casa de Therta e com previsão de novos grupos.

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“O objetivo [do Grupo Reflexivo] é abrir os olhos para as várias outras possibilidades de ser homem”

Quantas pessoas fazem parte do grupo atualmente?

Cada grupo é integrado por sete homens assistidos por mim, enquanto pesquisador, e pela psicóloga Karladriane Silva, e todos são coordenados e estruturados pela Senira. Os homens que participam dos grupos são de vários segmentos sociais, de escolaridade mais baixa à alta, de todas as raças e classes sociais. O que nos faz refletir que essa construção da masculinidade hegemônica e por vezes tóxica é ensinada a todos, independente de sua classe, raça ou classe social. Há um contrato social implícito e coercitivo em como os homens devem se portar, e é esse contrato que queremos rever para que esses homens possam enxergar as várias possibilidades de masculinidade.

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Como funciona o atendimento? Quantas pessoas já foram recebidas?

Os grupos funcionam às quintas-feiras, às 19h, e aos sábados acontecem dois: às 14h e às 16h. Temos uma média de uma hora e meia de conversa e, por muitas vezes, se estende até duas horas e vinte, pois esses assistidos sentem muita necessidade de serem ouvidos e de falarem de si.

“O homem foi construído socialmente para ser valente, e isso o faz ser violento de várias formas”

Qual o retorno que vocês têm e qual a percepção do impacto desse trabalho realizado? Acredita que os autores de violência doméstica são fruto dessa sociedade patriarcal e machista e que podem mudar a partir dessas reflexões?

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Estamos tendo um retorno incrível. Quando iniciamos os grupos, geralmente os participantes chegam muito calados, com medo de se comprometerem, acreditando que estão ali para ouvir “sermão”, como muitos relataram, porém, na medida em que os encontros vão avançando, eles vão criando vínculos entre si e com nós que estávamos à frente do projeto. O mais gratificante é que muitos já reconheceram sua construção e seus erros em relação às parceiras. A violência doméstica é um gigante problema que acredito que perdurará por mais alguns anos justamente pela construção social, tanto dos homens como das mulheres, em que se cria uma hierarquia de poder daquele sobre esta. O molde patriarcal da sociedade em que vivemos é, sem dúvida, um dos grandes motivadores da violência doméstica, e essa violência gira em torno das mulheres, dos filhos, dos idosos. O homem foi construído socialmente para ser valente, não estar aberto ao debate, e isso o faz ser violento de várias formas. É importante ressaltar que o projeto reflexivo e a crítica ao patriarcalismo não é uma crítica ao sujeito homem, pois ele também é vítima dessa construção machista, basta fazer uma breve pesquisa sobre homicídio e suicídio entre homens e o grande número de morte deles no trânsito. O objetivo é abrir os olhos para as várias outras possibilidades de ser homem, além dessa tóxica que está posta em nossa sociedade.

Você atua como pesquisador da Faculdade de Ciências Sociais e como investigador da Delegacia de Mulheres. Como é realizar esse trabalho social com esses autores?

Trabalho há 11 anos como investigador na Deam, e lá o meu maior contato é com as mulheres vítimas de violência doméstica e sexual. Nesses anos percebi que as mulheres eram acolhidas e tratadas nas diversas redes de proteção. Meu contato com os autores gira em torno da investigação, o que me faz ser mais técnico. Já nas Ciências Sociais, estou focado mais nas questões do universo do homem. Ali realmente consigo fazer uma análise desse processo em que nossa sociedade foi construída, em como homens e mulheres foram ensinados a performarem esses papéis sociais e em como isso reverbera diretamente no meu trabalho na delegacia.

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“A proposta é reeducar esse homem, e não marginalizá-lo”

Como os interessados devem fazer para participar?

Os três grupos que estão funcionando são de homens que foram encaminhados pela Justiça, mas estamos aceitando homens que não estão em conflito com a lei e que queiram fazer um debate sobre suas masculinidades. O homem que se interessar basta nos procurar na Casa de Therta, localizada na Avenida Getúlio Vargas 627, Centro.

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