O trabalho prisional é permeado por angústias e contradições. Para a psicóloga e pesquisadora Sidnelly Aparecida de Almeida, pós-graduada em psicologia jurídica, é preciso repensar práticas e olhares sobre a política penal brasileira, em particular àquela aplicada ao público LGBTQIA+. Sidnelly é mestranda em serviço social na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), sob orientação do professor Marco José de Oliveira Duarte. Ela acredita que o meio acadêmico amplia horizontes possíveis através de iniciativas como o Grupo de Estudos e Pesquisas em Sexualidade, Gênero, Diversidade e Saúde: Políticas e Direitos, da Faculdade de Serviço Social da UFJF, e o projeto de extensão Centro de Referência LGBTQIAPN+, que, segundo ela, a ajudaram a transformar em luta todos os lutos e derrotas que profissionais atrelados a direitos humanos têm passado nos últimos anos. Na semana em que se celebra o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, em 28 de junho, a pesquisadora conversou com a Tribuna sobre percalços e avanços, sufocos e respiros na luta por maior dignidade e garantia de direitos aos LGBTQIA+ privados de liberdade.
– Quais são os principais desafios enfrentados pela população LGBTQIA+ em termos de segurança e proteção dentro do sistema penal?
– Uma questão simples para podermos compreender a questão. Pessoas LGBTQIA+ muitas vezes têm seus vínculos familiares rompidos antes de sua prisão, muitas constituem famílias a partir de amigos, amigas e amigues, companheiros, companheiras e companheires que encontram ao longo da vida e até mesmo nas ruas. Uma das diretrizes do sistema prisional é que a visitação e contato familiar seja realizado com parentes de primeiro grau (pai, mãe, irmãos, filhos, companheires com formalização da união em cartório ou casados). Neste contexto, a privação de liberdade intensifica a solidão e fragiliza emocionalmente a pessoa LGBTQIA+ privada de liberdade. Mas a questão vai além do vínculo afetivo, as famílias que acompanham as pessoas em privação de liberdade são responsáveis pela assistência material não fornecida pelo Estado, assim, itens de higiene pessoal, alimentação complementar e até tratamentos médicos e medicamentos não fornecidos pelo SUS são custeados pela família. Na ausência da mesma, há um limbo emocional e material que dificulta os cuidados com o corpo e a saúde. A questão citada é uma entre variadas demandas. Muitas dessas questões envolvendo maior complexidade, tais como o respeito ao nome social, a necessidade de estratégias para enfrentamento à LGBTfobia, o acesso a tratamentos de hormonioterapia, rompimento com a política segregacionista, acesso à escolaridade, formação profissional, inserção no mercado de trabalho, entre outras questões que não apenas proporcionam proteção, segurança, mas afetam substancialmente a qualidade de vida e o processo de ressocialização/reintegração social das pessoas LGBTQIA+.
– Existe evidência de discriminação ou violência direcionada à população LGBTQIA+ por parte de funcionários do sistema penal?
– Um dos grandes problemas quando falamos de instituições totais é a dificuldade para acesso a dados, evidências e informações concretas. Esse tipo de instituição fica protegida dentro dos muros e da própria institucionalidade. Esse é nosso grande desafio enquanto pesquisadores, democratizar o processo jurídico penal, garantir participação popular na regulação das instituições e da execução penal para que possamos ter acesso aos dados, ter transparência com os cidadãos que financiam essas políticas sombrias.
– O sistema penal oferece suporte adequado às necessidades específicas da população LGBTQIA+?
– Penso que podemos ampliar a pergunta. O sistema penal tem oferecido suporte adequado às necessidades das pessoas privadas de liberdade? Só darmos uma olhadinha no número de pessoas privadas de liberdade no Brasil. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), nos aproximamos de 900 mil em algum cumprimento de pena; o Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (Sisdepen) informa que existem pouco mais de 700 mil pessoas privadas de liberdade no país. Minas Gerais informou ao Sisdepen custodiar entre julho e dezembro de 2022 pouco mais de 69 mil pessoas. No mesmo relatório do Sisdepen, o Departamento Penitenciário de Minas (Depen-MG) informou existirem 170 psicólogos, 186 assistentes sociais, 49 médicos clínicos gerais e 16 psiquiatras, 135 enfermeiros, 42 dentistas, 68 pedagogos e 4 terapeutas ocupacionais, entre outros profissionais. Tendo em vista a complexidade das questões abarcadas na execução penal, que vão englobar uso problemático de drogas, transtornos mentais graves e persistentes, rompimento de vínculos, exclusão do mercado de trabalho, infecções e doenças crônicas, vamos considerar adequados os números para a execução do tal tratamento penal? Precisamos muito refletir sobre a realidade das prisões brasileiras, sobre a naturalização da violência contra o corpo pobre e preto, que são a maioria das pessoas em privação de liberdade. É urgente que enfrentemos a dessensibilização quanto à negligência com o sofrimento da população brasileira, nosso povo sofre e nós não podemos naturalizar isso mediante frases como “bandido bom, bandido morto”. Não dá para aceitar um Estado que amarra pessoas, que prende sem julgamento e muitas vezes sem provas, que julga à revelia e que custodia seres humanos em condições até piores que animais. Porque é neste cenário de animalização do humano que ainda mais sofrimento é produzido para minorias sociais. Não adianta falarmos de orgulho LGBTQIA+ se esse orgulho não abraçar o corpo pobre, o corpo preto, o corpo de mulheres trans e travestis, o corpo de lésbicas, de homens trans, o corpo marginalizado. Não é apenas para ter nossa sexualidade e identidade respeitada nos espaços públicos, mas principalmente para que as instituições públicas como a polícia, o judiciário e as instituições totais como as prisões respeitem nossos corpos, identidades e a pluralidade da nossa sexualidade.
– Quais são as consequências do estigma social e do preconceito enfrentados pela população LGBTQIA+ no sistema penal em relação a oportunidades de reabilitação e reintegração?
Bem, se já temos um público marginalizado, excluído antes de possuir uma passagem pela prisão, o registro penal intensifica ainda mais esse processo. As dificuldades de inserção no mercado de trabalho formal, de ampliar escolarização e de garantir vida digna, moradia decente, alimentação adequada entre outras necessidades essenciais do ser humano vão ficando ainda mais inacessíveis. Então, não podemos falar de oportunidade de reabilitação e reintegração se essas instituições não promovem empoderamento da população LGBTQIA+, não promovem acesso a educação, a formação profissional, tratamentos adequados em saúde e em saúde mental, se de fato não há uma articulação em rede e transversal para abarcar a multiplicidade de fatores que conduzem pessoas a práticas de crimes e muitas vezes as mantêm em ciclos de criminalidade como forma de manutenção das mínimas condições de subsistência. A soma aprofobia, LGBTfobia e a dessensibilização com a vida das pessoas em conflito com alguma lei resulta neste cenário, onde se estima que 21% das pessoas reincidem no primeiro ano após a saída das instituições prisionais e 38% reincidem em até cinco anos. Precisamos ter dados e informações consistentes, a população LGBTQIA+ privada de liberdade precisa ser vista, ter suas necessidades enxergadas e consideradas a título de construção de políticas públicas. Sem dados reais e fidedignos dificilmente conseguiremos construir políticas públicas que promovam reflexão, conscientização e novas oportunidades de vida para pessoas que estiverem em conflito com a lei.
– É possível falar de um percurso histórico da população LGBTQIA+ em contextos de sistema penal?
– Sim, o sistema penal brasileiro abrange as principais contradições de nossa sociedade, foi constituído para tal. Ocorre, porém, que há uma lacuna de dados e informações do que acontece nas políticas penais, dificultando muito mapear a realidade e criar condições para sua superação. Sabemos que a ditadura promoveu uma verdadeira caça às mulheres trans e travestis, que por qualquer motivo eram aprisionadas, mas as coisas começam a ser provocadas em 2006 a partir dos Princípios de Yogyakarta, com regras construídas a partir de uma convenção das Nações Unidas, que postulavam o respeito à orientação sexual e identidade de gênero nas prisões. A partir de então, podemos identificar iniciativas que dessem visibilidade ao público LGBTQIA+ nas prisões de Minas Gerais em 2009, sendo sucedidos por outros estados. Apenas em 2014 o Estado brasileiro publica um documento com orientações para acolhimento de pessoas LGBTQIA+ nos estabelecimentos prisionais do país, com a Resolução Conjunta nº1, de 15 de abril de 2014 do Conselho Nacional de Combate a Discriminação – CNCD/LGBTI+ e do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. No entanto, somente no ano de 2020 ganha corpo a Divisão de Atenção à Mulheres e Grupos Específicos (Diamge), com a responsabilidade de fomentar política voltada a minorias sociais no sistema prisional. É também em outubro de 2020 que o Conselho Nacional de Justiça emite a Resolução nº 348 estabelecendo diretrizes para o tratamento de pessoas LGBTQIA+ em todas as fases do processo judicial. Somente então, através da Diamge, o Depen inicia publicação de normatizações voltadas às atividades de custódia e da garantia dos direitos das pessoas LGBTQIA+ no sistema penal através da Resolução no 9/2020. O Sisdepen e a Diamge realizam tentativas de levantar dados sobre pluralidade no sistema penal brasileiro, ainda hoje sem muitas informações que possam dizer adequadamente da realidade enfrentada pela população LGBTQIA+ nas prisões do país, proporcionando meios para o enfrentamento da violência e violação de direitos dos dissidentes sexuais e de gênero.
– Como a discriminação enfrentada pela população LGBTQIA+ no sistema penal reflete nas taxas de encarceramento e na aplicação e duração das sentenças?
– Essa é mais uma questão que carecemos de dados e estudos para compreender, e esse é o papel fundamental da Universidade neste país. O ensino público, gratuito e de qualidade, como a UFJF oferece, é essencial para que a gente consiga acessar esses dados, analisá-los e propor novos caminhos. Em meio a tantas mazelas produzidas pela acumulação capitalista neste país, muitas vezes a população privada de liberdade fica à margem das nossas pesquisas e reflexões, especialmente quando tratamos de grupos vulneráveis. Vemos muito isso com a falta de mobilização social com as mortes de LGBTQIA+ na instituição prisional criada para acolhê-los, na ausência de compaixão da sociedade com essas dezenas de pessoas que, em tão grande sofrimento, se automutilam. E, ainda assim, com apoio do judiciário, não conseguimos avançar em pautas essenciais. É nosso papel a produção de conhecimento científico atinente à realidade social do nosso país e que fomente o respeito aos direitos humanos no nosso território. Como dizia nosso patrono Paulo Freire: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, as pessoas se libertam em comunhão”. Construir uma sociedade livre, justa e plural perpassa pelo desafio de conhecer e enfrentar as mazelas produzidas pela violência institucional e a exclusão social.
– Como a orientação sexual e a identidade de gênero afetam o tratamento recebido pela população LGBTQIA+ no sistema penal?
– A LGBTfobia também está nas prisões. Tanto o Dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) quanto o Diagnóstico LGBT nas prisões do Brasil, publicado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, apontam as violências físicas, sexuais, psicológicas e morais às quais a população LGBTQIA+ está suscetível dentro das prisões. No ano de 2021, por exemplo, ocorreram nove óbitos de pessoas LGBTQIA+ na Penitenciária de São Joaquim de Bicas I – Jason Albergaria, que é exclusiva para acolhimento de pessoas LGBTQIA+ no estado de Minas Gerais. A Defensoria Pública de Minas Gerais instaurou uma ação civil pública para responsabilizar o Estado mediante as mortes e as mais de 60 tentativas de autoextermínio que vêm ocorrendo nesta instituição. As questões apontadas pelas pesquisas acadêmicas, por exemplo, identificam que só existem celas e alas LGBTQIA+ em Minas nas instituições masculinas, assim podemos questionar se as mulheres trans e travestis estão de fato tendo sua identidade de gênero respeitadas. A segregação imposta ao público LGBTQIA+ no sistema penal também é uma questão urgente para toda ciência. Muitas vezes as alas e celas LGBTQIA+ são localizadas junto aos pavilhões voltados a pessoas que cometeram crimes sexuais, os ditos “seguros”, reforçando um estigma de sexualidade criminosa e expondo a população LGBTQIA+ ao ponto mais sensível das instituições penais. É preciso que nos atentemos quanto ao que os óbitos e as tentativas de autoextermínio tão recorrentes junto ao público LGBTQIA+ privado de liberdade têm a nos dizer, olhar a marginalização do LGBTQIA+ para conseguir barrar a barbárie que se apoderou destas instituições.