Encerrando a série Mulheres de Luta, a Tribuna ouviu cinco jovens do coletivo Las Manas. Elas falam dos preconceitos e das conquistas, além da importância do rap e do hip hop na vida de cada uma. Neste especial, iniciado no último domingo e que marca o Mês da Mulher, o jornal trouxe histórias e trajetórias de diversas mulheres e mostrou a luta de cada uma contra as violências e pelo direito de quebrar estereótipos de gênero, no âmbito familiar e na sociedade de uma maneira geral. A ideia da série pensada e executada por mulheres foi mostrar que estamos em todos os lugares e que continuaremos na luta.
Enquanto via as integrantes do coletivo Las Manas chegando à porta do Cine-Theatro Central, ia conversando com as que já estavam por ali e, sem querer, ia cantando mentalmente a faixa-título do filme nacional “Antônia”, em que quatro mulheres negras da periferia de São Paulo enfrentam violência, machismo e pobreza para viver o sonho de ter o próprio grupo de música: “Oh, Antônia brilha… Antônia sou eu, Antônia é você…”. Mas logo estavam todas ali, sentadas comigo na escadaria, com cabelos, estilos, timbres, muito diferentes uma das outras, mas falando em uníssono sobre o Las Manas: “Foi uma energia feminina muito forte.”
O coletivo surgiu exatamente ali onde estávamos, a Praça João Pessoa, em frente ao Central, não menos emblematicamente que no dia 8 de março de 2017, como relembra Tatá Dellon. “Houve um ato do Dia Internacional das Mulheres, com algumas apresentações. Então tinha muita mulher do rap, do hip-hop, da poesia, da arte… uma energia muito boa e muito acolhedora. Eu não conhecia ninguém, só sabia quem eram as pessoas, e recitei. Aconteceu isso com várias outras meninas. E fui conversando com a Laura, com a Gogô, e a gente com a mesma ideia: “Precisamos dar continuidade a isso, fazer algo assim na cidade, uma coisa em que a gente possa se sentir segura e renovada com essa energia feminina.”
Além de unir mulheres sob um propósito cultural e de liberdade de expressão, sobretudo artística, o coletivo Las Manas criou uma roda cultural, com rimas, rap, hip-hop e diversas outras manifestações. Segundo Laura, muitas mulheres já participavam desta cena, frequentando sobretudo as rodas de sexta do Encontro de MCs, que ocorre na Praça da Estação. “É muito diferente participar da roda dos caras. A gente sempre sentiu, ainda que não fosse intencional, um tom pejorativo, primeiro de em algumas rodas nos vetarem por sermos mulheres. Outro exemplo é, numa batalha, nos chamarem de feias, por exemplo. E a gente viu que não era isso que queríamos. A ideia era criar um movimento que pudesse encorajar outras manas”, explica ela, destacando que as mulheres comandam a roda e toda sua organização, mas homens podem participar. “Não queremos segregar, de forma alguma. Mas nenhum cara pode chegar aqui e vacilar. Esse espaço foi criado por nós. Meu ‘freestyle’, minhas regras (risos)”. O projeto das manas é retomar as rodas, que são realizadas aos domingos, onde tudo começou, em frente ao Central, em breve.
Para Gogô, um dos grandes feitos da Roda das Manas é o encontro de gerações, sobretudo de mulheres. “É idoso que passa, para e fica pra ver, é uma galera nova que se arrisca a recitar pela primeira vez aqui. É um espaço em que não tem opressão, e a gente faz questão que seja assim, principalmente pras meninas, porque para elas é muito mais difícil. Mesmo pra gente ainda é, como coletivo independente”, diz ela, falando sobre como o machismo ainda é uma grande barreira na promoção das atividades do coletivo. “Há muita falta de credibilidade no nosso trabalho. Quando vamos promover o Rap das Mina, nosso evento anual, tudo é mais difícil. ‘Noooossa, mas só tem mulher na organização?’ É algo que ouvimos frequentemente. Fora que, quando dá um problema no som de um evento organizado por homens, é ‘falha técnica’. Se é em evento nosso, é ‘mulher não sabe organizar evento mesmo não”. Outro ponto interessante é que a Roda das Manas tem incentivado “batalhas de conhecimento”, em vez de batalhas por si só. “Assim, em vez de uma pessoa vencer a outra, ela vence por rimar sobre um tema específico. Em uma das rodas, o tema era ‘solidão da mulher negra’, e um menino disse que ‘a mulher negra não ia ficar sozinha porque ele ia namorar ‘com ela’. Total desconhecimento sobre o tema. Perdeu, óbvio. (risos) A gente quer que as rodas sejam espaços de debate e de promoção de conhecimento.”
Reunindo diversas mulheres da cidade e da região, com minas de Santos Dumont e outros municípios vizinhos, o Las Manas transformou não só a cena local, mas também a vida de suas integrantes. “Eu dançava break cerca de dez anos atrás, sou a mais velha do grupo. Fazer parte do Las Manas me fez ver que essa cultura está muito viva, tem talentos incríveis e que eu faço parte dela. Além disso, somos muito amigas, estamos juntas nos perrengues e nas vitórias, é uma família. E a roda é um espaço superfamília, acolhedor, onde posso sempre levar meu filho, aliás, posso levar meu filho em qualquer rolê dos Las Manas, elas são tias dele”, diz ela, aos sorrisos, enquanto, de fato, as outras integrantes paparicam e conversam com o pequeno Zé Miguel.
‘A gente precisa é de apoio’
A DJ Santieska destaca que os espaços criados por meio do Las Manas deram voz a ela, como artista e mulher. “Às vezes, tem evento com minas do Las Manas em vários lugares diferentes, isso é o coletivo se espalhando pela cidade. Para mim, foi uma forma importante de ter liberdade de expressão e o sentimento de que posso tê-la em qualquer lugar, e, além disso, que não estou sozinha”, destaca. Para Tatá, o coletivo também teve um grande impacto pessoal. “Antes do coletivo, eu não tinha força pra assumir minha sexualidade lá em casa e vários pontos de vista que defendo, diferentes do da minha família, muito cristã. Com o Las Manas, passei a me sentir mais segura para me expressar e assumir as responsabilidades porque estava fortalecida, foi um grito de liberdade mesmo.”
Enquanto cada uma tem seus sonhos pessoais, trajetórias diferentes, profissões diferentes e vivem cada uma em um canto da cidade, elas guardam um sonho em comum, de ter mais apoio financeiro para que o coletivo continue acolhendo quem faz cultura. “E também quem pode vir a fazer”, destaca Laura. “A gente precisa é de apoio, tempo a gente rebola, mas arruma, mesmo na correria de cada uma”, completa Gogô. E é quando a entrevista acaba e as meninas se reúnem para posar para as fotos que constato não estar tão longe da minha impressão inicial, Gogô começa a cantarolar o tema de Antônia, fazendo a trilha perfeita para um momento em que mulheres, como no filme, se reúnem para fazer cultura. Um dos belos momentos em que a vida imita a arte.