As vivências fazem fervilhar as ideias nas cabeças de 25 alunos do Colégio de Aplicação João XXIII, que acabam de voltar para o Brasil, após duas semanas de intercâmbio na Dinamarca, na Mariagerfjord Gymnasium. Eles se dividem entre os choques culturais aos quais foram expostos e a expectativa de compartilhar a experiência. Os estudantes e professores que tiveram acesso a essa viagem partem agora para uma segunda etapa, de discussão sobre a possibilidade de adaptar ações e os conhecimentos recebidos na Europa para a realidade da própria escola.
A parceria entre as duas instituições permite uma troca maior, já que os estudantes dinamarqueses também vêm ao Brasil para conhecer a estrutura educacional e o projeto pedagógico do João XXIII. “É muito interessante, porque temos uma escola pública de qualidade, cujo processo de seleção não é prova, mas um sorteio. Por isso, temos um espectro social amplo contemplado”, diz Marco Aurélio Mendes, professor de Língua Inglesa e coordenador da iniciativa.
Desde que começou, em 2014, três turmas de brasileiros e três de dinamarqueses tiveram acesso ao programa. “Os alunos ficam na casa de famílias dinamarquesas, assim como os estudantes de lá ficam hospedados por famílias brasileiras. Elas oferecem alimentação, transporte, têm todas essas necessidades supridas”, destaca Marco Aurélio.
Aproveitando que não há voos diretos para a Dinamarca, o grupo passou três dias na capital francesa, onde pôde praticar o francês, que é outra língua ensinada no colégio, além do contato com todo o conhecimento vivo de lá. “Foi um ganho enorme em diversos aspectos: artístico, cultural, histórico. Ter uma aula de arte em uma imersão no Louvre é incrível. Conseguimos ver na prática o que estudamos na escola. Vimos, por exemplo, o Arco do Triunfo, em que Napoleão entrou, o quadro em que ele foi coroado”, descreve o estudante Marcus Vinicius Reis, 17 anos.
A preparação para a viagem foi intensificada dois meses antes da ida. Eles embarcaram com dois professores, que, além de acompanhar suas atividades, também os assessoravam nas tarefas, como a produção prévia de uma apresentação de assuntos que foram pedidos pela escola dinamarquesa. Entre elas, manifestações artístico-culturais, religião, processo de formação do povo brasileiro e o quadro político atual.
Seleção inclusiva
Nessa edição do intercâmbio foram disponibilizadas dez bolsas para estudantes em situação socioeconômica desfavorável. Os outros 15 selecionados viajaram com recursos próprios.
“Como o inglês é a língua em comum entre os estudantes dinamarqueses e brasileiros, a prova foi baseada no conhecimento do idioma. A prova foi elaborada conforme o nível de inglês dado na escola, para que os alunos todos, mesmo os que não tiveram oportunidade de fazer um curso particular pudessem ter condições de participar”
Marco Aurélio Mendes, professor de Língua Inglesa e coordenador do intercâmbio
Ele explica que assistentes sociais fazem um levantamento e determinam quais alunos preenchem os requisitos previstos em edital.
Os estudantes também passaram por avaliações de conhecimentos gerais, sobre a Dinamarca e sobre a instituição anfitriã. Ainda conforme o coordenador do projeto, nas condições em que é feito o trabalho, com parte do custo absorvido pela escola e outro pelas famílias receptoras, o gasto dos 15 alunos que foram sem bolsa é infinitamente menor do que poderia ser em uma viagem turística.
“Se não fosse por meio desse programa, talvez eu não conseguisse conhecer a Europa. Essa oportunidade precisa ser muito valorizada, porque enriquece muito a nossa vivência na escola”, reforça o intercambista Marcus Vinícius.
Educação que estimula a discussão e a reflexão
Os alunos juiz-foranos foram recepcionados pelas famílias anfitriãs e viviam o cotidiano dos estudantes dinamarqueses. “Participávamos das aulas que duravam cerca de uma hora e meia. Os professores chegavam, passavam um resumão da matéria, dividiam a turma em grupos para discussão do tema e depois apresentávamos o que tínhamos elaborado”, descreveu a intercambista Maria Eduarda Masiero, 17 anos.
A estrutura das aulas era, segundo ela, bem diferente. “Vemos uma participação muito maior do estudante nesse processo. O professor dá o apoio, e todos vão aprendendo, ajudando.” Fora da escola o aprendizado continuava. “Não ficávamos restritos às salas. Fizemos passeios, conhecemos um Centro Viking, vimos bankers nazistas montados até hoje. Nesses espaços aprendemos sobre história, geografia, arte”, completa Maria Eduarda.
Ao mesmo tempo, eles também levavam as vivências brasileiras. “Eles nos ouviram falar sobre o impeachment, corrupção, resistência, cultura e a construção do país. É muito legal, porque também pudemos representar nosso país de uma maneira positiva, porque sabemos que há uma visão muito estereotipada do brasileiro lá fora”, lembrou a estudante Ana Esther Rofino, 17 anos.
O aprendizado também acontecia junto às famílias anfitriãs. De acordo com os alunos, as famílias não davam nada para eles nas mãos. “Quando acordávamos, não havia ninguém para preparar o café da manhã. Eles deixam tudo a disposição, mas nós temos que fazer. Se quiséssemos levar um lanche para a escola, nós mesmos tínhamos que preparar”, destacou Maria Eduarda.
O intercambista Marcus Vinícius ainda lembrou que, quando chegou à residência de sua família dinamarquesa, eles disseram que eu tinha total liberdade de abrir a geladeira, os armários e de fazer o que quisesse. “Foi diferente de quando recebi o aluno dinamarquês quando ele ficou em minha casa. Nós nos preocupávamos em fazer tudo para eles, dar tudo nas mãos. Lá eles nos ensinaram a ter mais autonomia. Isso também foi um aprendizado importante.”
Outro aspecto citado por Ana Esther sobre o contato com as famílias é a dedicação em compartilhar conhecimento. “Qualquer pessoa que teve acesso à educação básica de lá pode dar uma aula sobre a história da Dinamarca. Eles nos explicavam sempre sobre as passagens históricas do país, os acontecimentos e as suas consequências. Em um dos dias, a bandeira da escola estava hasteada pela metade. Minha anfitriã explicou que era em função da lembrança da invasão nazista. Eles têm orgulho de compartilhar esse conhecimento.”
Jovens intercambistas relatam o choque de cultura
O contato com outra forma de construir o ensino foi impactante para os alunos do Colégio de Aplicação João XXIII. “Percebemos que o nosso modelo é arcaico, antigo. As cadeiras ficam voltadas para o professor, que fala sozinho por 50 minutos, o que é muito desgastante. Também é desmotivante perceber que os alunos não ficam confortáveis com essa formatação”, pontua Maria Eduarda Masiero.
As pressões sentidas pelos brasileiros, como vestibular, emprego, término do ensino médio não pesam para os dinamarqueses. “Aqui, se deixamos a oportunidade de entrar em uma faculdade logo que formamos, é possível que não tenhamos outra. Lá, quando eles terminam o ensino médio, tiram um ou dois anos para viajar, conhecer o mundo e decidirem o que vão fazer. Eles não têm a preocupação de pensar em ajudar no orçamento doméstico, com essa desigualdade tão grande”, detalha Ana Esther Rofino.
No trabalho, as desigualdades também chamaram a atenção dos juiz-foranos. “Lá eles ganham R$ 45 por hora de trabalho já convertido. Minha anfitriã, por exemplo, limpa vidros em casas de repouso, duas vezes na semana, por cinco horas. O mesmo trabalho aqui no Brasil não tem valor, as pessoas não conseguem se sustentar”, avalia Maria Eduarda.
Ana Esther acrescenta o olhar preconceituoso sobre o trabalho. “Se a gente disser que limpa os vidros de casas de repouso, as pessoas naturalmente vão nos classificar como inferiores, vão associar com falta de educação. Como muitos fazem com trabalhadores de fast food.” Na Dinamarca, esses empregos são ocupados por jovens. Não por necessidade financeira, mas para que possam ser ainda mais autônomos. “Lá é comum eles trabalharem, buscarem o próprio dinheiro para viajar, sem essa concepção hierárquica que criamos. Lá não tem essa cultura de um ser melhor do que o outro, as pessoas são tratadas com igualdade”, arremata Ana.
A responsabilidade por trás da autonomia
As relações na Dinamarca também foram vistas de formas diferentes pelos intercambistas juiz-foranos. Maria Eduarda Masiero conta que a maneira de lidar com o corpo dos dinamarqueses é muito diferente. “Nas praias e nos parques as pessoas se banham com roupa íntima, e isso é visto com total naturalidade.” Essa visão permite, conforme Ana Esther Rofino, uma liberdade muito maior. “Saímos em um grupo de meninas e voltamos para casa a pé de noite tranquilamente, o que equivaleria a 23h do Brasil. Enquanto caminhávamos, eu pensava em quando poderia fazer isso aqui. Nunca voltaria a pé para casa nesse horário. Teria medo de assalto, de assédio, estupro. Lá eles têm essa liberdade.”
O mais interessante, segundo Marcus Vinicius Reis, é que essa mentalidade é construída desde pequeno. “Em um dos passeios que fizemos, havia um grupo de crianças pequenas, com no máximo 3 anos de idade. Elas seguiam a fila direito, coordenadas. As professoras não precisavam falar nada, nenhum comando era dado. Elas as seguiam em silêncio. Isso foi o bastante para nos deixar impressionados, porque não faz parte da nossa realidade.” Essa concepção de ensino também chamou a atenção dos professores.
“Eles priorizam a formação de hábitos, ao invés das disciplinas que temos aqui. Por trás da autonomia dos alunos dinamarqueses, há uma responsabilidade grande. Não há professores gritando, não há estresse, porque há um contrato social, em que todos entendem como se portar”
Marco Aurélio Mendes, professor de Língua Inglesa e coordenador do intercâmbio
“Nossos alunos são mais dependentes, e há uma dificuldade grande em acatar alguns apontamentos. As nossas escolas são mais agitadas. Lá as decisões tomadas em sala de aula são mais democráticas”, avalia o coordenador do intercâmbio. A professora de artes visuais Renata Oliveira Caetano, que atuou como docente auxiliar na viagem, também considerou que a estrutura favorece os resultados.
“Toda a formação dos professores é muito diferente. Mas dá para pensar em como incorporar alguns aspectos desse ensinar dinamarquês. Porque ao mesmo tempo em que temos todos esses desafios, eles ficaram impressionados com o nível de diálogo que temos com os nossos alunos. Eles dividem tudo conosco. A relação é mais próxima, nos contam coisas que os alunos deles jamais trariam para um professor. Eles não conseguem criar essa ligação ainda. É algo que também ensinamos.”
Intercambistas atuam como multiplicadores no João XXIII
As duas semanas na Europa não vão ser engavetadas como um souvenir de uma viagem qualquer. Os alunos do Colégio de Aplicação João XXIII demonstram a todo momento a vontade de contribuir para modificar a realidade do ensino e falar sobre o acesso a essa experiência. Ao mesmo tempo, os professores também se preparam para dividir suas impressões e sugestões com seus pares, atuando de maneira incisiva na melhoria do sistema educacional.
“Temos um programa de compartilhamento dessas vivências. Os intercambistas percorrem as turmas e se tornam vetores desse aprendizado. Quem não teve a oportunidade de ir fica sabendo o que aconteceu pelo ponto de vista do aluno. Alimentando a vontade de participar e o entendimento de que podem ir”, frisa o professor Marco Aurélio. O compromisso de transmissão do conhecimento é corroborado por todos.
“O intercâmbio não acabou! Queremos e vamos levar o que aprendemos para a nossa escola e para todas as outras. Precisamos entender que a educação precisa mudar. O aluno precisa ter mais autonomia para aprender do jeito que é melhor para ele. Essa é a nossa missão”, diz Maria Eduarda Masiero. A experiência mostra que a mudança não é inalcançável. “Isso aflora a vontade de manifestar a nossa vontade, mostrar que é possível sim fazer diferente.”
Ana Esther Rofino lembra que é importante reforçar que a infraestrutura é diferente, mas que é possível adequar soluções. “Representamos essa intenção. Se a gente conseguiu, todos podem ter essa oportunidade. Hoje, como já aconteceu comigo, posso debater com meus professores de história e geografia coisas que vi na Dinamarca. É algo que podemos aplicar.”
Romper com o modelo
Conforme a professora de artes visuais Renata Oliveira Caetano, outros professores manifestam vontade de romper com o modelo engess
ado de ensino brasileiro. “Ter o professor como facilitador é desafiador, porque é outra lógica, muito mais complexa. Ele se prepara para responder ao que os alunos propõem. Isso é sensacional, mas exige uma outra preparação. Sabemos que não dá para incorporar tudo, mas somos capazes de pensar adaptações que podem chegar a resultados muito eficazes.”
Esse é o momento, de acordo com Marco Aurélio, de pensar no que é viável, envolvendo toda a comunidade escolar. “Há esse ganho enorme, embora estejamos em uma realidade completamente distinta. Mobilizamos um conjunto de saberes muito grande, e é possível tirar da experiência soluções possíveis. Já estamos em contato com outros professores, que estão muito interessados em fazer diferente. Isso nos motiva.”