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Mulheres de Luta: ‘Buscar o entendimento pelo diálogo’

brune coelho marcelo ribeiro CAPA
brune coelho marcelo ribeiro
Brune Coelho Brandão, 27 anos, doutoranda em psicologia
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Eu me lembro bem de quando conheci a Brune. Foi quando eu e o repórter Mauro Morais fazíamos uma série sobre identidade de gênero, e a Brune, na época mestranda, se dispôs a se sentar conosco e explicar termos e debates inerentes ao tema e até a montar um glossário que, da melhor maneira possível (e com a ausência de profundidade de um glossário), pudesse ajudar na compreensão das discussões que propúnhamos na época. Desde então, fui me interessando por questões de gênero e buscando, na medida do possível, dar voz a pessoas invisibilizadas por sua identidade. Por meio da Brune, conheci outra militante incansável da causa trans, Bruna Leonardo. Também por conta deste contato, estava muito melhor preparada para entrevistar uma das maiores militantes da área da América Latina, infelizmente falecida, a travesti e ativista Lorena Berkins. E ainda por causa deste encontro com a Brune, sinto-me mais atenta e empática, por exemplo, às questões que minha amiga Bruna Rocha, travesti e negra, vivencia em seu cotidiano, e relata em nossa turma de pós-graduação. Cercada de privilégios, sendo branca, cis, heterossexual, de classe média e com ensino superior – e vivendo na bolha que eles me proporcionam-, talvez eu passasse a vida sem conviver com pessoas trans nos espaços em que eu circulo. Por isso é tão fundamental que mais Brunes e Brunas cheguem à universidade (e a todos os lugares em que desejarem estar). Para que seus discursos cheguem cada vez mais longe.

Esse trabalho “de formiguinha”, de sentar e explicar termos, “como agir”, entre outras formas, tem sido uma constante na vida de Brune. “Não tem problema algum as pessoas não entenderem muitas questões de gênero. Eu também não sabia, minha família não sabia, ninguém nasce sabendo. O problema é não saber e não querer fazer algo a respeito deste desconhecimento”, diz ela, que sempre que convidada participa de reuniões, processos de capacitação, palestras e outros mecanismos para aumentar a conscientização sobre identidade de gênero e/ou identidades trans. “Às vezes, temo que seja repetitiva, sinto que estou há anos falando as mesmas coisas, mas muitas pessoas ainda não ouviram qualquer coisa sobre identidade de gênero, e todo mundo precisa. Tenho uma apresentação básica que vou adaptando de acordo com as necessidades do público a que falo. E cada encontro é diferente, fomenta discussões que não se esgotam ali, e isso é ótimo”.

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Agora cursando doutorado em psicologia, área em que é bacharela e mestra, Brune reconhece ser privilegiada, apesar de também ter enfrentado barreiras. “É muito difícil para uma mulher trans que tenha outros marcadores sociais chegar a um doutorado. Uma mulher trans negra, por exemplo. Faço sempre questão de ressaltar meus privilégios para ressaltar a urgência de que pessoas que não os têm possam conquistar as mesmas coisas que eu consigo sendo detentora deles. Estou dizendo que é fácil para mim? Não. Mas certamente é muito mais difícil para muitas outras mulheres trans, para homens trans, para pessoas LGBTTI com outras realidades sociais, enfim. É preciso tornar a universidade e todos os espaços mais trans, mais gays, mais lésbicos, mais periféricos, mais abertos e abrangentes.”

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Segundo Brune, um dos grandes desafios de estudar gênero sob um viés feminista sendo trans é vencer a deslegitimação de seu lugar como pesquisadora. “Ainda há muita dificuldade em se aceitar a credibilidade de uma ciência socialmente engajada. Muitas pessoas acreditam que isso ainda deve ficar no âmbito da militância, quando na verdade elas podem e devem caminhar juntas. Outro problema é questionarem minha identidade como trans pesquisando pessoas trans, perguntam muito se meu estudo não será enviesado. Eu acho graça e fico pensando: ‘gente, mas todo mundo tem uma identidade de gênero. Então pessoas cis não podem estudar pessoas cis? Cis é uma identidade. Acho que tomou-se como regra uma ciência que necessariamente impõe distanciamento entre pesquisador e objeto, quando há outros caminhos possíveis sobretudo na psicologia e sobretudo no meu campo de pesquisa.”

Em sua trajetória de vida, Brune espera que suas lutas possam proporcionar a mesma representatividade que sentiu ao ver, pela primeira vez, uma mulher trans na universidade. “Ela já até faleceu, mas quando vi a Tina no ônibus, fiquei tão feliz que queria me sentar ao lado dela e conversar. Pensei, ‘que bom que existem pessoas trans na universidade, e vindas da Zona Norte, como eu’. Essa representatividade é importante porque mostra que há caminhos de resistência, há maneiras de se permanecer na universidade, há dialogo”, diz ela, que espera ter aberto precedentes para outras pessoas trans ao fazer valer uma portaria que permite o uso do nome social no diploma (de graduação ou pós), com o nome de registro menor, atrás. “Antes vinham os dois nomes, o que, além de constrangedor, é confuso para cadastros e outras burocracias”, diz ela. “O meu do mestrado eu solicitei e veio até ‘mestra’, adorei”, conta ela, feliz.

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‘É preciso dar espaço para estas novas vozes’

Outro ponto que alegra a pesquisadora é ver que as novas gerações vêm amadurecendo politicamente mais cedo em relação às identidades de gênero, pelo menos as pessoas LGBTTI. “Posso falar pelas meninas trans, que são mais do meu convívio e vejo que elas estão muito mais maduras do que eu na idade delas. E isso é fundamental. Vejo muitas pessoas trans chegando à graduação e fazendo um trabalho bacana de militância. É fundamental, porque é na base que elas precisam de mais suporte, é nesta base do ensino superior e do início da vida adulta que a representatividade tem um peso muito maior. E sempre acho que é essa galera que tem que falar, que tem que estar em mais espaço públicos. Já falei e falo muito, e nunca vou parar pela importância. Mas é preciso dar espaço para estas novas vozes, que têm muita força.”

Reconhecendo o quão longe chegou, Brune confessa ter temido o futuro pela primeira vez, como se a redoma em que sempre viveu tivesse se quebrado. “No meu mundinho, na minha realidade, nunca tive a segurança de fato ameaçada, o que acontece com a maioria esmagadora de pessoas trans. Mas nunca senti isso na pele. Com o novo governo eleito e discursos de ódio sendo legitimados, pela primeira vez, pensei : ‘talvez eu não passe dos 35 anos e vire estatística. Já tinha pensado que não conseguiria pagar a contas, que não teria um relacionamento afetivo-sexual, mas nunca tinha temido por minha vida. E depois foi mais devastador ainda pensar em quem já tinha a vida ameaçada antes de todo o processo eleitoral. Como seria? Ainda não sei. Mas agora que o baque passou, vejo que há formas de resistência, de lugar de fala e de buscar o entendimento pelo diálogo. É imprescindível acreditar nisso.”

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