Desde setembro do ano passado, o Centro de Psicologia Aplicada (CPA) da UFJF abriu mais um espaço para que travestis e transexuais pudessem falar. A ideia do projeto de extensão Ambulatório Trans, coordenado pela professora do Curso de Psicologia, Alinne Nogueira Silva Coppus, é abrir o canal de escuta para que essas pessoas possam trazer o que quiserem, no seu sentido mais amplo, sem restrições. Podem participar pessoas trans e travestis de qualquer idade, basta que deixem seu nome e telefone, que a equipe do projeto entra em contato. “Do início até agora tivemos mais de 45 inscrições, o que já é muito mais do que nós imaginávamos, sendo que não houve divulgação do projeto fora do site da UFJF. Lidamos atualmente com uma variedade muito grande de faixas etárias. Temos adultos, adolescentes, pessoas na terceira idade e agora, inclusive, estamos recebendo os primeiros casos de crianças”, destacou Alinne.
O ambulatório oferece atendimento psicanalítico individual gratuito aos que que não se identificam com o gênero designado no nascimento. Os atendimentos acontecem no CPA, localizado na Rua Santos Dumont, 214, Centro. Alinne reforça que não há um tempo determinado para que o acompanhamento aconteça. Os interessados podem permanecer o período que quiserem, e não há limitação de temática a ser trabalhada. Cada um segue o seu ritmo, a sua forma e o seu tempo. Os estudos de Alinne sempre se voltaram para a relação do sujeito com o corpo e isso está presente na iniciativa. “Sempre pensei que a relação do sujeito com seu corpo diz muito sobre ele, sobre a forma como lida com as pessoas e com o mundo.”
No ambulatório, as situações individuais tocam nos impasses que falam sobre o corpo e vão além dele. “Nenhuma das pessoas que passou por aqui tem algum problema em ser trans. Elas não têm dúvidas. O que chega para nós é muito diferente disso. É a dificuldade em conseguir namorar, algum problema com a família, no trabalho e outras inúmeras situações. Há casos em que há violência e elas vêm falar sobre isso. Nossa intenção é manter as portas abertas na medida do possível, para acolher esses relatos.” Outro objetivo é resguardar o contato individual, preservando cada caso sem generalizações, o que vem trazendo resultados considerados muito positivos na equipe.
“Quero que essas pessoas experimentem a vivência de falarem de si e do que quiserem. Estamos recebendo pessoas que tentaram acesso ao atendimento psicológico por outras vias, mas não conseguiram. Elas vêm para trabalhar suas próprias questões individuais. O ambulatório é um convite a esse trabalho.”
O reconhecimento vem, inclusive, em forma de troca de ideias. A professora Alinne comenta que fez contato com a cartunista Laerte Coutinho, cujo trabalho é uma fonte de inspiração para o grupo, e ela se interessou, respondeu, pediu material e elas continuam em contato.
Espaço para fala
A vulnerabilidade e a violência, tanto física quanto simbolicamente, a qual sujeitos trans e travestis são expostos e a falta de espaços de fala foram alguns dos motivadores para a criação do projeto. Se, para o público amplo, o atendimento psicológico individual está, de alguma forma, mais popularizado agora, nem sempre é acessível para essas pessoas.
“Em alguns casos, elas não contam com o apoio da família e podem estar em condição de marginalidade. Aqui, a partir do momento em que elas se escutam, vão descobrindo outras questões, mas também veem que têm condições de estudar, apesar de alguns olhares, de buscar uma profissão, de trabalhar, de construir. Mas é importante dizer que algumas pessoas ainda não conseguiram chegar até nós. Os trans e travestis em situação de rua, por exemplo. Talvez, nós tenhamos que ir até eles, porque essa população ainda não chegou aqui.”
Também não aconteceu ainda, de acordo com a professora, de chegarem histórias da outra ponta. De pessoas trans de classes econômicas mais abastadas ou que tenham um grau de escolaridade maior. “Ainda temos a ideia de que é um lugar de atendimento gratuito, que esse público não encontra em outros lugares e aqui tem. O que é maravilhoso, porque queremos mesmo que elas cheguem até nós. Temos pessoas que ainda não são vistas e precisamos ouvi-las.”
Despertar o interesse e o diálogo
Os estudantes que dão suporte ao trabalho destacam que o contato com o público é surpreendente. “Muitos de nós esperávamos que poderia aparecer alguma questão ou outra relativa à transexualidade, por exemplo, mas isso não ocorreu. A maioria das pessoas que chega aqui não tem qualquer problema com esse assunto. Recebemos demandas muito mais singulares, que dizem respeito ao indivíduo e, nesse processo, percebemos que o que temos são transexualidades e não um caminho único”, destaca Fernanda Sartori, bióloga e estudante de Ciências Humanas.
Esse interesse que surgiu entre os estudantes foi algo que chamou a atenção da professora. “É um tema muito interessante e os assuntos que tocam a comunidade LGBT despertam mesmo essa atenção. Há muitas pessoas que querem pesquisar sobre o tema ou têm curiosidade e apreço por ele. Temos estudantes do Direito, da Comunicação, do Bacharelado Interdisciplinar em Ciências Humanas e mesmo que eles não atendam na clínica, pediram para participar e conhecer.” A coordenadora explica que, no ambulatório, há um espaço de estudo, em que são usados textos da psicanálise que falam sobre a transexualidade e a relação do sujeito com o corpo. “Temos outro ambiente para a supervisão dos casos, onde acompanhamos tudo muito de perto.”
Iniciativa visa a quebrar tabus
O “trans” presente no nome do projeto sinaliza um cuidado que pode não estar presente em outros espaços. A identificação, nesse caso, ajuda a quebrar uma resistência a estar em um local como esse. O que Alinne recebe no ambulatório é um medo de ser patologizado. “Se não há nenhuma questão em ser trans, porque elas vêm até aqui? Elas dizem que, só pelo nome (do espaço), há uma expectativa de que vão ser bem acolhidas, bem atendidas. Não é a toa que elas vêm direto para o ambulatório, e não por outro canal de acesso, já que no CPA temos atendimentos individuais por outras vias de entrada.” Isso impactou na rotina do espaço como um todo, já que todos os trabalhadores do núcleo foram instruídos a atender as pessoas conforme a identidade de gênero com as quais elas se identificam. O processo de fala e de escuta, segundo a coordenadora, tem o objetivo de permitir uma relação mais possível com o próprio corpo. “Por meio desse processo, o sujeito vai construindo uma relação singular consigo, ponderando sobre o que é possível manejar, contornar e costurar.”
O respeito em relação à identidade de gênero é uma das demandas que se apresentam de maneira constante nos atendimentos. “Entre aqueles que trabalham, mesmo que a pessoa tenha mudado o nome social, há histórias de empresas que exigem comportamento e vestimenta dentro do que elas acreditam estar adequado ao gênero de nascimento. Isso gera um sofrimento enorme, porque o nosso reconhecimento depende um pouco do reconhecimento do outro. Nosso espelho é o outro.” Por isso, na percepção dela e dos integrantes do projeto, faz muita diferença o respeito ao nome social, aos artigos “o” e “a” conforme a identidade de gênero, e até de perguntas simples, como: “Como você prefere ser chamado (a)?”
“Além disso, também faz uma enorme diferença o reconhecimento da família e da empresa, além de ter acesso a um atendimento psicológico e às políticas públicas. Infelizmente, ainda é necessário ter um discurso duro de defesa contra uma série de atrocidades”, pontua Alinne. A sexualidade, ainda de acordo com ela, ainda é um ponto que traz dificuldade porque aponta para muitas coisas sobre as quais alguns grupos não gostam de ver, nem de falar. “Esse mal estar que gera, em relação à população trans, acaba tocando na discussão sobre o corpo e sobre a sexualidade. Então, poder falar sobre e acolher as diferenças, em tempos em que qualquer diferença pode ser alvo para violência, acredito que também contribua muito.”