Em maio, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucionais as normativas do Ministério da Saúde e da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) que proibiam a doação de sangue por “homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou parceiras sexuais destes nos 12 meses antecedentes”, impedimento que afetava, principalmente, homens gays e bissexuais e mulheres trans. Após a decisão, a Fundação Hemominas anunciou que a orientação foi acatada, e desde o dia 12 de junho, perguntas específicas sobre as relações sexuais entre homens foram suspensas do processo de triagem. A mudança é considerada uma conquista por esta população, que celebra, neste domingo, o Dia do Orgulho LGBTQIA+.
O que muda, na prática, segundo a gerente de Captação e Cadastro de Doadores da Fundação Hemominas, Viviane Guerra, é a promoção da universalização do atendimento. “Todos os doadores serão avaliados seguindo os mesmos critérios. Todos os outros critérios para doação de sangue não se alteraram.”
Para quem doa, ou queria doar e era impedido, a decisão do STF tem um significado muito profundo. É o caso do publicitário Kim Menini, que doou sangue pela primeira vez aos 18 anos, quando fez o alistamento militar e havia o incentivo para a doação. “Depois desse primeiro contato, continuei com comparecendo ao Hemominas, sempre que eu podia. Às vezes, acontecia de ter feito uma endoscopia, uma tatuagem, ou o uso de algum remédio e tinha que ficar um tempo sem doar. Mas sempre gostei”, conta.
Nas primeiras vezes, Kim não sabia que havia restrições. Entretanto, ao adquirir mais informações sobre o critério, o questionamento sobre sua vida íntima passou a pesar. “Encaro o ato como uma responsabilidade enorme. Quem vai receber o sangue está com o organismo debilitado. Você precisa ter consciência sobre como está a sua saúde e não ter um comportamento de risco. Mas não é possível que em 2020 ainda tenhamos que passar por algo assim. Conhecendo minha saúde, saber que por conta de um aspecto da minha vida não poderia doar, me causou um grande mal estar. Isso pesou na última vez que eu doei sangue, porque faz com que a gente se pergunte por que está sendo discriminado.”
O revés, no entanto, não o impediu de continuar buscando o ato solidário. “Fiz algumas postagens, mobilizei amigos e fiquei surpreso, porque muita gente não sabia dessa restrição. A organização All Out tinha uma petição sobre o tema e, logo depois, veio a decisão do STF”. Agora, Kim se prepara para a próxima doação, que deve acontecer em julho.
Não à discriminação
O publicitário Kim Menini salienta que a decisão pela inconstitucionalidade da restrição, que de longe parece ser apenas um tópico, representa muito mais. “Significa se sentir leve, tranquilo. Não é certo que a gente vá até o Hemocentro para fazer algo bom e saia de se sentindo pesado. Essa decisão deixa a vida da gente mais leve.”
Kim, que também é cadastrado no banco de doação de medula, lembra que não há, ainda, um produto sintético que substitua o sangue, de modo que a doação permanece imprescindível. “Doar sangue é a postura de pensar um pouco mais no próximo, no outro ser humano. Tem muitas pessoas que só fazem quando o sangue é para alguém próximo, ou algum parente, isso não é suficiente.” Para ele, há um ganho enorme com a alteração. “Muda muita coisa. Significa não me sentir discriminado nas menores coisas.”
‘Decisão histórica’
O presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/JF), Júlio Mota de Oliveira, que é especialista em Relações de Gênero e Sexualidades pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e advogado do Centro de Referência LGBTQI da UFJF, ressalta que se trata de uma decisão histórica para a população LGBTQIA+, tendo em vista que não só homens gays e bissexuais eram impedidos de doar sangue em decorrência de sua orientação sexual, mas também mulheres trans e travestis, que tinham sua identidade de gênero ignoradas e, uma vez consideradas homens, também enfrentavam a mesma restrição.
“Essa decisão revela o avanço da aquisição dos direitos da população LGBTQIA+, ainda que por meio do ativismo judicial. Além disso, representa um reforço para as reservas dos bancos de sangue em todo o país, que tiveram seus estoques, bem como o número de doadores, reduzidos devido ao isolamento social decorrente da pandemia do novo coronavírus”, pontua Júlio.
De acordo com ele, o tratamento discriminatório de homens gays, travestis e mulheres trans se baseou, por muito tempo, no estigma de promiscuidade que era atribuído à população LGBTQIA+, que fazia com que ela fosse considerada um grupo de risco. Esse quadro induzia ao pensamento de que a taxa de infecção pelo vírus HIV acontecesse de forma concentrada nessa população. “No entanto, o que deve-se levar em consideração é o critério do ‘comportamento de risco’, que contempla toda a população, independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero.”
Sem impedimento
Caso um cidadão seja impedido de doar sangue em decorrência de sua identidade de gênero ou orientação sexual, conforme Júlio Mota de Oliveira, ele pode registrar um boletim de ocorrência, uma vez que a Constituição Federal prevê, em seu artigo 102, que todas as decisões do STF têm efeito vinculante para o Poder Executivo, e que a desobediência a esta norma gera responsabilidade, podendo ser considerado crime de desacato. “Além disso, o ofendido poderá entrar com uma ação judicial para que seu direito de doar sangue seja garantido e, se for o caso, poderá também uma indenização por danos morais.”
Expectativa de receber mais doadores
Além da relevância que a decisão tem para a população LGBTQIA+, a mudança representa também uma esperança de que o número de doações cresça, como salienta a gerente de Captação e Cadastro de Doadores da Fundação Hemominas, Viviane Guerra. “É um público que está disponível, que quer acrescentar e que lutou muito para que essa doação pudesse acontecer. Isso é muito positivo. Acreditamos que a mudança só se concretiza com a ação efetiva. Então é importante lembrar que a doação de sangue é uma causa social, extremamente necessária.”
Viviane salienta ainda que o ato de solidariedade exige grande responsabilidade por parte de toda a população, e, por isso, os exames e a avaliação clínica bem feitos são fundamentais nesse processo. “As pessoas precisam compreender que uma bolsa de sangue com qualidade, para um paciente que está com a saúde fragilizada requer muito cuidado.”
Como fazer
Durante a pandemia do coronavírus, as doações estão ocorrendo por meio de agendamentos prévios, para evitar aglomerações no Hemominas. Para isso, é preciso ligar para o número 155 ou marcar um horário por meio do site da Fundação. Para doar sangue, o candidato deve ter entre 16 e 69 anos, apresentar um documento original com foto, filiação e assinatura. É necessário ter mais de 50 kg. Para quem já é doador, há intervalos mínimos obrigatórios de doação de 90 dias para mulheres e 60 dias para os homens.
No dia da doação, o voluntário deve estar alimentado e em boas condições de saúde, sem apresentar sintomas de gripe ou resfriado. Ao chegar à unidade, ele passará por uma triagem clínica.
Em Juiz de Fora, a Fundação Hemominas fica na Rua Barão de Cataguases, no Centro, ao lado do Mergulhão. A sede funciona de segunda a sábado, das 7h ao meio dia.