Juiz de Fora falha quando o assunto é a política de atendimento da população infantojuvenil. Há quatro anos, a cidade caminha com dificuldades na área diante da ausência de um plano decenal de direitos humanos da criança e do adolescente que nortearia as ações no setor entre 2012 e 2022, por meio de diretrizes, objetivos e metas. O plano deveria ter sido construído a partir das deliberações da conferência municipal dos direitos da criança e do adolescente de 2011, mas, de lá para cá, o documento, cuja responsabilidade de elaboração é do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), não foi feito. Na prática, a cidade chega a mais uma conferência do setor – realizada de 25 a 27 no Hotel Premier -, sem saber o que sua infância e juventude realmente precisam e sem ter números e indicadores que ajudem a traçar um diagnóstico seguro dos problemas que mais afetam essa população.
A situação foi considerada “gravíssima” pelo doutor em sociologia Rudá Ricci. Consultor em políticas públicas, Rudá foi o conferencista convidado no primeiro dia do evento, considerado o principal fórum de participação popular. “A família, a sociedade e o Estado são os entes responsáveis pela prioridade absoluta na defesa e promoção de crianças e adolescentes. Se a cidade não tem um plano, significa que está em situação irregular, o que coloca em risco a orientação da Constituição Brasileira. Solicitei ontem (terça-feira), na mesa, que o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente fizesse uma intervenção em Juiz de Fora. Também o Ministério Público tem que tomar uma atitude junto ao município, pois as coisas não podem continuar do jeito que estão. Não há plano decenal e nem dados no município sobre suas crianças e adolescentes. Essas lacunas têm que ser corrigidas”, afirmou o sociólogo.
Em Juiz de Fora, porém, a Promotoria da Infância e Juventude segue sem titular até janeiro de 2016, já que o promotor designado para o cargo, Jorge Tobias de Souza, está à disposição da Procuradoria Geral de Justiça em Belo Horizonte. Enquanto isso, a promotora Carolina Borges de Matos está respondendo como substituta. Procurada ontem à tarde, ela estava em audiência.
Responsabilidade é de um conselho paritário
Já a presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, Valéria Martins Pereira, que assumiu o cargo em 2013, admitiu que, além da falta do plano decenal de direitos humanos da criança e do adolescente, não encontrou na entidade que preside o plano de gestão que baliza as peças orçamentárias para o setor . “O plano de ação que temos é anual, ou seja, de curto prazo. A responsabilidade de Juiz de Fora não ter um plano de ação decenal é de um conselho paritário, representado tanto pela sociedade civil, quanto pelo Poder Público. Isso reflete a fragilidade da entidade e também de uma sociedade civil que não se ocupa do seu papel, mantendo-se numa zona de conforto. É um indicador do desconhecimento da força de atuação que ela tem frente as políticas públicas. Onde nós estávamos que não ocupamos esse papel?”, questionou a presidente. Segundo Valéria, das 12 vagas com assento no conselho destinadas à participação da rede privada, – que em Juiz de Fora soma mais de 400 entidades não governamentais – somente sete foram ocupadas por representantes da sociedade civil, havendo cinco vacâncias.
A situação é realmente delicada. Se por um lado Valéria queixa-se da pouca participação da rede privada na elaboração de diretrizes no setor, por outro não se pode desconsiderar que mais 73% dos serviços de atendimento de crianças e jovens na cidade são executados pelas entidades privadas, segundo o último diagnóstico do setor em 2011. Significa que o Poder Público é responsável por apenas 27%. “Com certeza, a rede de proteção da infância e adolescência está desarticulada, e a questão da prioridade absoluta hoje é quase um poema”, criticou a presidente do CMDCA.
O vereador Jucelio Maria (PSB), presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, considera a situação preocupante. “O que a gente percebe em Juiz de Fora é que os serviços de atendimento na área da infância não são feitos, são superpostos e que há órgãos fazendo coisas que não são de sua competência. A rede de proteção não está só fragilizada, mas desconectada. Com isso, o trabalho de atendimento não tem continuidade.”
Secretário admite desafios, mas destaca avanços
O secretário de Desenvolvimento Social do município, Flávio Cheker, admitiu os desafios no setor, mas disse que houve avanços institucionais importantes na área, como o reordenamento das casas de acolhimento institucional para crianças em situação de vulnerabilidade social, o crescimento do projeto “Família acolhedora”, além de outras ações referentes à erradicação do trabalho infantil e ao combate da violência doméstica que, segundo ele, apontam para um avanço da gestão em relação ao passado recente. “O sistema de garantia de direitos tem avançado, mas a judicialização do Conselho Tutelar é um dos entraves para o seu funcionamento pleno”, afirma, referindo-se à ação na Justiça que impede a posse de novos conselheiros desde 2013. “Na concepção e na execução da política de proteção da criança e do adolescente, o Conselho Tutelar é uma peça-chave. A precarização do seu funcionamento tem, certamente, trazido prejuízos para o município”, acrescenta Cheker.
Já representantes do conselho colocam na conta da Prefeitura a desarticulação da rede e dizem que só estão no cargo até hoje por falta de substituto legal, uma vez que o processo de escolha dos novos conselheiros está sendo questionado na Justiça por vício na sua condução. A questão está sub judice.
Segundo Cheker, um dos desafios frente ao futuro é fazer com que a assistência social alcance o seu verdadeiro lugar. “É preciso fazer com que a assistência social rompa os muros da nossa rede e ganhe a sociedade de modo que ela veja os serviços não como benesses, mas como direitos, assim como já acontece na saúde e na educação. O país caminha hoje de um modelo paternalista e assistencialista para um modelo ditado pela política nacional de assistência social, no qual serviços, programas e ações devem ser encarados como direitos do cidadão.”
Em meio a este cenário, os principais afetados pelos problemas de funcionamento da rede de proteção têm o que dizer e querem ser ouvidos. “Sou de um bairro conhecido pela violência. Já tentaram me matar quando andava com o meu skate, mas sobrevivi e não me deixei intimidar. A gente precisa de um lugar melhor. Eu só quero paz”, disse Samuel, 13 anos, um dos participantes da VII Conferência Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Futuro
Sobre o futuro das políticas públicas, Valéria espera que a nova conferência possa sensibilizar os atores sociais. “A expectativa é que esse encontro possa provocar mobilização e fazer com que a sociedade civil e o Poder Executivo saiam dessa inércia e participem das comissões temáticas do conselho e das plenárias. Sem participação ativa, não há meio de fazer avaliação nem crítica do processo da política de atendimento da criança e do adolescente.”