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Do altar ao palanque: a disputa por espaço político entre as religiões

Emerson Silveira Felipe Couri
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Emerson Silveira acredita que a relação entre fé e política é inevitável, mas exige leitura crítica. (Foto: Felipe Couri)
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Na terceira e última reportagem da série “As Rotas da Crença – o novo mapa religioso de Juiz de Fora”, a Tribuna de Minas analisa como a presença pública das religiões tem moldado – e sido moldada por – o campo político em Juiz de Fora, a exemplo do país. A partir dos dados do Censo Demográfico 2022 e do cruzamento com a realidade eleitoral, o destaque é a consolidação evangélica nas urnas, a exclusão estrutural de tradições afro-brasileiras e a postura de cautela da Igreja Católica diante da crescente politização do discurso religioso. O resultado é um cenário marcado por tensões, disputas simbólicas e reconfigurações internas nas formas de engajamento religioso.

O impacto da política nas dinâmicas religiosas

O crescimento das Igrejas Evangélicas no Brasil tem ampliado sua presença pública, mas também acentuado tensões internas, especialmente nas intersecções entre religião e política. Para Emerson José Sena da Silveira, professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF, a associação direta entre púlpitos e discursos político-partidários, muitas vezes alinhados à extrema-direita, gerou desgastes nas congregações. “A politização dos púlpitos gerou ressentimento em muitas congregações. A associação entre religião e uma agenda conservadora afastou parte dos fiéis e comprometeu o discurso religioso como bem simbólico de salvação. Surgiu a dúvida: é fé ou é projeto político?”, analisa.

Segundo ele, a unidade que marcava o segmento evangélico quando era minoria deu lugar à fragmentação. “Com o crescimento, vieram as divergências, a fragmentação e o enfraquecimento de uma identidade comum. A política acelerou esse processo.”

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Fé nas urnas

Esse processo se reflete nas disputas eleitorais. Levantamento do Instituto de Pesquisa e Reputação de Imagem (IPRI), da FSB Holding, mostra que o número de candidaturas com identidade religiosa cresceu 225% entre 2000 e 2024 – de 2.215 para 7.206. No mesmo período, o total de candidaturas no país subiu apenas 14%.

Mais de 91% dessas candidaturas têm vínculos com o segmento evangélico. Em 2024, os termos mais comuns nos nomes de urna foram “pastor”, “irmão”, “pastora”, “irmã” e “missionária”. Termos ligados às religiões de matriz africana, como “pai” e “mãe”, tiveram presença muito menor. Candidaturas católicas, com uso de “padre”, também aparecem, mas em quantidade reduzida. 

Desigualdade de acesso e uso simbólico da fé

Para lideranças religiosas de matriz africana, o cenário reflete desigualdades históricas de acesso ao espaço público. O dirigente do Centro de Umbanda Pai Joaquim de Angola, Breno Peçanha, avalia: “A religião afro-brasileira é muito desassistida. Falta apoio do Estado, inclusive financeiro. Na época das eleições, muitos políticos aparecem prometendo apoio, mas depois somem. Usam a fé para angariar votos, não por compromisso com a causa religiosa.”

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Ele também questiona a autenticidade do crescimento religioso no país. “Esse crescimento das religiões hoje não se dá, necessariamente, por motivações espirituais. Na minha visão, está mais relacionado a interesses financeiros – há uma comercialização da fé por meio da religião.”

Na outra ponta, o pastor Bill Hudson da Igreja Bem-Vindos à Igreja defende a presença evangélica no debate público como legítima expressão cidadã. “Todo cristão é também um cidadão. Participar da política é um direito e, muitas vezes, um dever. A igreja deve se posicionar com sabedoria e amor, sem impor sua fé, mas testemunhando valores como justiça, verdade e dignidade. O evangelho é uma contracultura, que confronta o pecado e a injustiça.” Para ele, a meta não é o poder institucional. “Não buscamos um Estado religioso, mas uma sociedade onde os valores cristãos possam ser expressos com liberdade. Negar esse espaço à fé seria antidemocrático.”

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Preocupação com instrumentalização da fé

A Igreja Católica, por sua vez, mantém uma posição de cautela. O padre Elílio de Faria Matos Júnior, da Arquidiocese de Juiz de Fora, vê com preocupação a instrumentalização da fé. “Há uma preocupação legítima com o risco de que a fé seja instrumentalizada por ideologias ou partidos. A missão da Igreja é anunciar o Evangelho, defender a dignidade humana e promover o bem comum – isso pode incluir denúncias proféticas, mas nunca se confunde com adesão partidária. A fé cristã deve iluminar a vida pública com o espírito do Evangelho, mas sem se reduzir a slogans ideológicos. O Papa Francisco nos alertava contra o clericalismo, o moralismo e a tentação de dominar o espaço político com a religião. A Igreja, além da palavra religiosa que anuncia para quem se abre à fé, tem uma palavra de bom senso a dizer para toda a sociedade, para todas as pessoas de boa vontade, em nome da dignidade humana e do bem comum, com o propósito de contribuir para um mundo menos injusto, menos violento, mais amoroso e mais identificado com a virtude da solidariedade.”

O professor Emerson José Sena da Silveira também aponta tensões históricas no campo religioso, especialmente no catolicismo. “Por questões históricas, a Igreja sempre foi crítica ao capitalismo – por uma certa saudade do mundo feudal – com teologias populares, como a do Papa Francisco, que coloca em pauta a pobreza, a miséria e o abismo social.”

A relação entre fé e política, segundo o docente, é inevitável, mas exige leitura crítica. “Isso vai ser uma questão: se a religião vai para o espaço público, ela vai trazer a questão da política e da economia de uma forma ou de outra – mais ou menos – mas ela estará presente. Temos que evitar ver isso como um quadro congelado. Há evangélicos que representam essa visão crítica — apesar de serem minoria – e há grupos que vão na contramão dentro das religiões.”

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Reorganização silenciosa

O retrato religioso traçado pelo Censo Demográfico de 2022 revela um cenário em transição em Juiz de Fora – marcado menos por rupturas bruscas e mais por transformações graduais. A paisagem da fé na cidade indica uma reorganização silenciosa, em que velhas hegemonias cedem espaço a novas formas de crença, práticas e pertencimento.

A queda do catolicismo, embora ainda significativa, dá sinais de desaceleração. O crescimento evangélico, que já foi acelerado, mostra-se mais contido, consolidando sua presença sem repetir o ritmo das décadas anteriores. As religiões de matriz africana, historicamente marginalizadas, conquistam maior visibilidade e reconhecimento. O espiritismo, por sua vez, parece enfrentar o desafio de atrair novas gerações. E os “sem religião” se afirmam como uma categoria diversa e em expansão, marcada por trajetórias individuais e crenças desvinculadas de instituições.

Para Silveira, esse movimento não pode ser entendido apenas em termos estatísticos. “Se não houver nenhum fato disruptivo, as tendências locais devem seguir o padrão nacional: estabilização do crescimento evangélico, desaceleração da queda católica, afirmação das religiões afro e avanço mais lento dos sem religião”, afirma.

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Ele pondera, no entanto, que os números não esgotam a complexidade do fenômeno religioso. “As tendências não são matemáticas. São fenômenos sociais, sujeitos a influências políticas, culturais e históricas. A estatística é uma fotografia – ela mostra o quadro, mas não explica por que ele se formou. Para isso, é preciso olhar para os processos mais profundos que atravessam a vida religiosa no Brasil.”

*estagiária sob supervisão da editora Fabíola Costa

 

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